Cartas de Padre Antônio Vieira
CARTA LVII
Ao Marquês de Gouveia
1684 — agosto 5
EXMO. Sr. — Acho-me com muitas cartas de V. Exa., e com mil obrigações em cada uma delas, para beijar a mão a V. Exa. outras tantas vezes, como nesta faço, sem que os termos do agradecimento, por mais que se multipliquem, possam igualar o número, e muito menos a grandeza, de tantas e tão excessivas mercês. Palta-me porém o tempo e o alento para escrever, e também me pudera faltar o juízo, pelas causas, que sucintamente referirei a V. Exa., e será toda a matéria desta folha de papel, não cabendo a minha história ou tragédia em grandes volumes.
Estava eu no meu retiro, quando chegou o primeiro navio da frota, e nele uma carta em que S. M. (referia meu sobrinho) lhe tinha dito estas palavras formais: "Estou muito mal com seu tio António Vieira, porque descompôs o meu Governador". De maneira, Senhor, que sem eu dar outra ocasião ao Governador António de Sousa mais que dizer-lhe, como já dei conta a V. Exa., que levava uma petição, na qual me parecia que não só pedia mercê, mas fazia serviço a S. S., por ser matéria de justiça e consciência, sem chegar a declarar qual fosse a petição, me respondeu em vozes altas que tinha melhor consciência que os padres da Companhia, e cria melhor em Deus que eu, repetindo por vários modos esta mesma injúria, e chamando-me claramente de judeu; e eu fui o que descompus o Governador de S. M., e não o Governador de S. M. a mim, que só pelo carácter de sacerdote merecia de qualquer homem cristão ser tratado com diferente respeito!
Esperava eu que S. M. mandasse estranhar muito ao seu Governador este excesso, e que se me desse satisfação pública, pois o tinha sido a afronta. Mas, porque eu me não queixei, entendendo ser mais conforme ao meu hábito perdoar as injúrias que fazer queixa delas, o Governador e os que governavam (principalmente João de Góis, inimigo capital da Companhia e de meu irmão, e a mão com que António de Sousa escrevia), para me fazerem réu onde devera ser autor, com seus costumados falsos testemunhos, e já provados, informaram de tal sorte a S. M. que, sendo a justiça de S. M. tão acautelada em crer, como se experimentou nos excessos do Governador, não cridos senão depois de dois anos, pretendendo tantas informações de pessoas desinteressadas, bastou só a queixa da parte, e tal parte, para S. M. me sentenciar à sua desgraça, e notificar-me a sentença duas vezes, uma por Francisco da Costa Pinto, outra por Gonçalo Ravasco, não falando em outras execuções mais severas e rigorosas, que lá deviam de se ouvir e cá se têm divulgado, além das secretas que traz o sindicante, das quais, posto que me isenta a minha imunidade, se executarão em tudo o que me toca e a não tem.
Mas, antes de eu saber nem ouvir alguma coisa destas, bastou só ler a primeira nova, e que S. M. estava mal comigo, para no mesmo dia me sobrevir um grande acidente, que logo se declarou em sezões malignas, com perpétuos delírios, em que totalmente perdia o juízo, e estive em grande perigo de perder a vida. São já passados dois meses, em que me sobressaltam frequentes rebates do mesmo mal; e, porque passo as noites inteiras sem dormir, com pouca ou nenhuma vontade de comer, debi-litando-se as forças ao mesmo passo, são muito bem fundados os temores com que fico de alguma total e mortal recaída. Ordene Deus o que for servido, que o que eu somente sinto é que, vindo–me meter em um deserto para melhor me aparelhar para a morte, nem viver nem morrer me deixem, e que seja a causa de perder tão desconsoladamente a vida um filho daqueles mesmos reis por quem a arrisquei tantas vezes, e aquele mesmo rei por quem tanto trabalhei, como a V. Exa. é presente, e para que o fosse.
Chegou enfim a capitânia da frota, e nela o sindicante, que mostra bem ser eleição de V. Exa. Começou a tirar devassa do Governador, lançando primeiro bando para que todos os que tivessem que dizer do dito Governador, ou de bem ou de mal, recorressem a ele; e correu fama ao princípio que eram mais bem ouvidos os louvores que as queixas, com que, na primeira parte da devassa, dizem, vai canonizado, posto que muitos se abstiveram de ir jurar, contentando-se com o verem fora do posto.
Leva muitas cartas de aprovação, e dizem que vai pôr pleito a S. M. e pedir-lhe perdas e danos pelo tirar antes do triénio, prometendo que se há-de vir inteirar do terceiro ano que lhe falta. Eu, posto que conheço bem o tempo em que está o mundo, nem temo nem espero tanto; só digo a V. Exa. que, ainda que cessou a causa, continuam os efeitos, não tendo menos que recear os inocentes que os culpados; porque estes, fora da cidade e ocultos nos arredores de suas casas, vão dormir a elas, e os inocentes, contra quem em Lisboa se acharam testemunhas falsas, ou compradas entre os neutrais ou voluntárias entre os inimigos, lhes podem acrescer facilmente, e serem pronunciados; e, como o sindicante traz poderes para condenar e não para dar livramento nem absolver, mofinos dos que lhe caírem nas redes.
Eu lhe fui falar e, falando-lhe somente em mim, lhe pedi que, por serviço de Deus e de S. M. e me fazer mercê, suposto que não podia devassar de mim, ao menos, não como ministro, senão como pessoa particular, se quisesse informar dos capítulos que lhe levei em um papel, que ele aceitou, para que, ou de eá por escrito ou indo a Portugal em presença, pudesse dar a S. M. as verdadeiras notícias do que achasse.
Meu irmão, que está tão inocente no caso do Alcaide-Mor como eu, se considera em evidente perigo de ser pronunciado, acrescendo qualquer testemunho sobre o de um homem indigno de toda a fé, que testemunhou em Lisboa, não havendo na devassa que cá se tirou quem pusesse a boca nele; mas a parte, que por estas ruas anda triunfante a cavalo, com o muito favor que achou em Lisboa, é tão atrevido que, alegando suspeições contra o chanceler, articulou que ele também concorreu para a morte de seu irmão. E me afirmou pessoa que o podia saber, que o escrivão desta sindicatura trazia provisão de S. M. para ser provido de Secretário de Estado no ofício de meu irmão, com que é provável que lhe corra bem a pena, em qualquer coisa que se diga a favor deste antecipado e nunca visto provimento.
O Senhor Marquês das Minas, cujo governo está sumamente aplaudido, no mesmo dia em que chegou e se veio a hospedar a este colégio, me visitou na cama, e continua em me fazer mercê. Logo tratou das exéquias da Rainha nossa senhora, e encomendou a meu irmão a fábrica do túmulo, com desejo de que se fizesse com toda a magnificência possível, e assim estava desenhado; e quis também que eu fosse o pregador, de que ao principio me escusei com a presente enfermidade, falta de dentes e de voz, e todos os outros achaques da velhice, que há tantos anos me têm incapacitado para este exercício; porém, instando em que nisso levaria gosto S. M., esta só palavra bastou para que eu enten desse que não devia replicar, e assim aceitei, supondo-se que seria quando eu estivesse capaz, e que o tempo que se gastasse na fábrica me o daria para convalescer. Contudo hoje me man dou dizer que o estado da Fazenda Real não sofria tantos gas tos, e que se haviam de fazer as exéquias por todo este mês de agosto.
Eu me acho com poucas notícias das soberanas virtudes de tão grande sujeito; mas, ainda para dizer o que todos sabem, é mui desigual a minha compreensão à imensidade da matéria, e mais estando em parte onde sem aprovação de V. Exa., e com o juízo tão perdido, é força que exponha aos do mundo a última acção da minha vida. Sobretudo me temo do de S. M., para mim sem pre formidável, ainda quando não estava mal comigo. Eu lhe escrevo, não só com larga e exacta relação do caso, senão tam bém com ponderação da sentença; e espero da clemência e gran deza de S. M. que por justiça, e não por indulgência, me restitua à sua graça.
Pelo impedimento da doença, que me levou os dois meses últi mos, em que se havia de limpar o quinto tomo, que ja estava quase acabado, não vai nesta ocasião; mas, dando Deui vida, irá na nau do Rego, que se fica aprestando para ir neste ano. Sobre a aprovação do quarto, em que vejo tão demasiadamente encarecida a pobreza do meu engenho, não sei que diga V. Exa. A frase com que no Brasil se declara que os engenhos não moem é dizer que pejaram; e eu verdadeiramente tenho pejo de que se diga no frontispício do livro o que se não há-de achar nele. Já estava contente com que, tendo-se passado o nosso Arcebispo a este outro mundo, não haveria nesse quem tanto me envergo nhasse; mas V. Exa., pelo excesso da mercê com que sempre me honrou, não achando sobre a terra quem o fizesse, o foi desenco var nas serras da Arrábida. Se V. Exa. julgar que o autor não merece censura, senão graças, V. Exa. lhe as dê, pois a V. lixa. quis adular e não louvar-me a mim. E que dirá o mundo, vendo-me tão aprovado na Mesa do Paço, quando do paço, de que ela se denomina, só mereço repreensões?
Para encher o número do dito quarto tomo faltavam dois sermões, que agora vão. O primeiro é de S. Roque e tem por assunto : A homens, nem servir nem mandar; a Deus, e só a Deus, servir. Foi pregado na Capela Real, e parece que em profecia dos desenganos que agora experimento. O outro preguei também no mesmo lugar, quando cheguei com meus companheiros a Lisboa, lançado das missões do Maranhão por defender as leis do Rei e os injustos cativeiros dos índios 1. Agora nos tornaram a lançar de lá pelas mesmas causas, que assim acontece quando falta o castigo. Mas, se faltou o da terra, não faltou o do Céu; porque todos os motores daqueles sacrilégios morreram desastradamente e sem sacramentos. O Senhor Arcebispo, que hoje é de Braga, ouvindo este sermão, disse que entre os meus fora o menos mau. Devia de ser porque não fui eu o que preguei, senão o Evangelho, sem haver palavra em todo ele que não desse vozes ao Céu pela justiça e inocência daqueles miseráveis.
Tendo os missionários publicado na gentilidade as leis Reais, todos em confiança delas estavam já abalados para se descer, e receber a f é e vassalagem de S. M.; mas, quando vêem que se não guardam, se tornam para os matos. O único remédio é a constante observância das mesmas leis, o castigo exemplar dos rebeldes, e tais ministros do governo que não vão lá buscar os interesses injustos, senão o serviço de Deus e de S. M.; e que S. M. os premie com as rendas do seu património, e não com o sangue inocente e cativeiro dos que nasceram mais livres que nós, senhores absolutos das terras em que Deus os pôs e nós lhe tomamos, e sem sujeição alguma de vassalos ou súbditos, mais que a que eles voluntariamente aceitam, debaixo das condições e leis que lhes prometemos e não guardamos. Se estas injustiças continuarem, perder-se-á sem dúvida aquele Estado, e só nos ficará a estreita conta que Deus nos há-de pedir de infinitas almas, debaixo de cujo pretexto nos chamamos senhores dele.
Tão más novas como estas são as que posso dar a V. Exa. desta terra. As deste céu não sei se são melhores; V. Exa. o julgará pelos dois cometas que nele apareceram este ano, cujos retratos envio com esta. O primeiro foi visto desde 6 de maio até os 16, e vão mais exactamente notados os seus movimentos, porque o observou em Pernambuco um padre alemão, grande matemático, onde foi também visto de todos os padres daquele colégio. O segundo apareceu no Rio de Janeiro—em uma aldeia chamada Itinga, e observado primeiro dos índios e depois dos padres que nele residem, desde o primeiro do mesmo mês de maio até os 15. Aquele se via de dia, e partia o sol pelo meio» este de noite, e mostrava na cauda três estrelas; só, falta que vejamos algum sinal na lua para que se verifique o texto: Erunt signa in sole et luna et stellis.
Excelentíssimo Senhor, Deus guarde a V. Exa., como Portugal e os criados de V. Exa. havemos mister.
Bahia, 5 de agosto de 1684.
V. Exa. perdoe a mão alheia nesta segunda via, que apenas houve saúde e alento para a primeira. — Criado de V. Exa.
António Vieira
1 O sermão da Epifania.
Fonte: Clássicos Jackson.
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