Biografia de Aníbal de Cartago, por Plutarco – Vidas Paralelas

SUMÁRIO DA VIDA DE ANÍBAL

Aníbal é chamado por Asdrúbal à Espanha, depois da morte de Amílcar. II. É nomeado general do exército dos cartagineses na Espanha. III. Decide-se a empreender a guerra contra os romanos. IV. Obtém uma grande vitória sobre os carpentanianos e outros povos da Espanha. V. Sitia Sagunto. VI. Ruína de Sagunto. VII. Os romanos enviam embaixadores a Cartago para queixarem-se. VIII. Preparativos de Aníbal para vir ã Itália. IX. Atravessa os Pireneus. X. Vence os volscos. XI. Avança para os Alpes. XII. Passa os Alpes. XIII. Vence Cipião junto do Ticino. XIV. Alcança Semprônio perto de Trébia. XV. Derrota-o. XVI. Entra na Toscana. XVII. Chega ao lago do Trasimeno. XVIII. Obtém aí uma grande vitória sobre o cônsul Plamínio. XIX. Caráter de Aníbal. XX. Fábio nomeado ditador. XXI. Proceder deste novo general. XXII. Perigo em que Aníbal se encontra. XXIII. Estratagema pelo qual consegue escapar. XXIV. Vantagem obtida por Minúcio sobre uma parte do exército de Aníbal. XXV. Minúcio é vencido e salvo por Fábio. XXVI. Aníbal vem acampar perto de Cannes. XXVII. Imprudência de Terêncio Varrão. XXVIII. Trava-se a batalha. XXIX. Vitória completa de Aníbal. XXX. Firmeza dos romanos ante esta notícia. XXXI. Aníbal é recebido em Cápua. XXXII. Perolla é dissuadido por seu pai do projeto de assassinar a Aníbal. XXXIII. Décio Mágio entregue a Aníbal. XXXIV. Mago vai levar a Cartago a notícia da vitória. XXXV. Aníbal retira-se ao seu quartel de inverno em Cápua. XXXVI. Vários reveses sofridos por Aníbal. XXXVII. É vencido por Marcelo. XXXVIII. Apodera-se de Tarento. XXXIX. Vantagens obtidas por Aníbal. XL. Aníbal tenta inutilmente fazer levantar o cerco de Cápua, XLI. Vai acampar às portas de Roma. XLII. Retira-se. XLIII. Cápua rende-se aos romanos. XLIV. Aníbal vence o procônsulPúlvio. XLV. Batalha entre Aníbal e Marcelo. XLVI. Várias outras batalhas entre Marcelo e Aníbal. XLVII. Morte de Marcelo. XLVIII. Aníbal tenta em vão surpreender Salápia. XLIX. Cláudio Nero obtém várias vitórias sobre Aníbal. L. Derrota e morte de Asdrúbal. LI. Como Aníbal se mantém ainda por algum tempo na Itália. LII, Passa de novo à África. LIII. Determina tratar da paz com Cipião. LIV. Batalha de Zama. LV. Aníbal aconselha a paz aos cartagineses a qualquer condição. LVI. Retira-se para junto de Antíoco. LVII. Entrevista de Aníbal com Cipião. LVIII. Bons conselhos que êle dá a Antíoco, mas que não são ouvidos. LIX. Aníbal, à frente dos navios de Antíoco, ê vencido em Magnésia. LX. Retira-se para junto de Prúsias, rei da Bitínia. LXI. Vence o rei Eumenes com a frota de Prúsias. LXII. Envenena-se. LXIII. Diversas opiniões sobre o proceder de Flamínio.

Desde o ano 506, mais ou menos, até o ano 572 de Roma. antes do Jesus Cristo, ano 182.

Vida de Aníbal, por Plutarco


Tradução de Pe. Vicente Cardoso.

Se trouxermos à nossa memória a primeira guerra Púnica (1), que os
cartagineses travaram contra os romanos, encontraremos muitíssimos generais,
que, pela glória de seus grandes feitos, deixaram aos seus sucessores um alto
renome. Não encontraremos, porém, entre os generais cartagineses, um, que tenha
sido mais encomiado, pelos autores gregos e latinos, do que Amílcar, pai de
Aníbal, cognominado Barca, homem, sem dúvida, virtuoso e, para os tempos de
então, assaz experimentado na arte militar. Ele resistiu primeiramente na
Sicília, por mais tempo do que se poderia esperar, ao esforço dos romanos, os
quais tinham grandemente prejudicado aos negócios públicos do seu país. Depois,
na guerra da África, quando os soldados mercenários, pela sua rebelião, puseram
em grave risco os interesses públicos dos cartagineses, ele apaziguou com tanta
virtude a citada revolta, que, ao parecer de cada qual, fora ele unicamente o conservador do seu país.
Foi ao depois mandado como governador e general à Espanha (2) (quando ele
levou, segundo se diz, consigo, seu filho
Aníbal, ainda criança),
onde praticou vários feitos dignos de memória. Finalmente, nove anos depois de
ter chegado àquela província, morreu combatendo valentemente contra os vetões
(3). Depois de sua morte, Asdrúbal, seu genro, ao qual os cartagineses,
ajudados pelo favor da facção e partido Barciniano, tinham constituído
general-comandante de todo o exército, governou por uns oito anos. Ele chamou a
Aníbal para a Espanha, pouco depois da morte de seu pai, mesmo contra a vontade
dos chefes do partido contrário, a fim de que, como ele tinha sido iniciado
antes, desde a infância, na arte militar, vivendo ainda Amílcar, assim, do
mesmo modo, tendo crescido em idade, ele se fosse habituando aos perigos,
incômodos e a todos os exercícios da guerra.

(1) Começou
esta no ano 490 e terminou em 513 de Roma. antes, de Jesus Cristo, ano
241.No ano de 517 de Roma. Aníbal tinha nove anos.
(2)     
Foi morto num combate,
no ano 526 de Roma, 228. A. C, depois de ter governado por uns nove anos.

(3)
Os vetões eram um povo da Lusitânia ou
Portugal.

 

II. Embora, a
princípio, a memória de seu pai muito lhe servisse para conquistar as boas
graças dos soldados, todavia, depois, ele mesmo, por sua própria diligência e
habilidade, portou-se tão bem, que os batalhões antigos, esquecendo-se de todos
os outros comandantes, manifestaram a vontade de escolher a ele unicamente para
seu comandante. Viram todos que ele possuía os requisitos e todas as qualidades
que se poderiam desejar em um soberano-general. Tinha uma deliberação muito
pronta, em executar todos os grandes empreendimentos, unida à atividade e
coragem. Tinha um coração invencível a todas as adversidades e perigos do
corpo, que a muitos outros impede cumprir seu dever. Prestava seu tempo de
sentinela, como todos os outros, e estava pronto a executar todas as outras
atribuições exigidas, quer de um valente soldado, quer de um bom oficial.
Nessas condições esteve ele sob as armas, pelo espaço de três anos, sob o
comando de Asdrúbal. Durante esse tempo ele conquistou o coração de todo o
exército, de tal modo que, logo depois da morte de Asdrúbal (4), ele foi, de
comum acordo entre todos os soldados, escolhido para comandante supremo. Tal
prerrogativa militar foi aprovada sem contestação pelos cartagineses, mediante
o favor do partido Barciniano. Aníbal tinha vinte e seis anos (5), quando foi
declarado supremo comandante por seus soldados. Pois quando seu pai o levara à Espanha, ele tinha nove anos e, de então até a morte
de Asdrúbal, segundo Polibio, passaram-se dezessete anos.

(4)
Foi assassinado por um gaulês, para vingar, diz Tito Lívio, a morte de seu
senhor.
(5)
Cornélio Nepos diz que não tinha ainda vinte e cinco anos, Políbio não disse,
que eu saiba, em lugar algum, dezessete anos. Pode-se concluir isso,
reunindo-se os vários números. Mas pode-se também não deduzir que um pouco mais
de dezesseis e. por conseguinte, senão vinte e cinco para Aníbal.

III.
Apenas obtivera a superintendência sobre o acampamento e a administração dos
negócios do governo, ele determinou fazer a guerra aos romanos, como há muito
tempo já ele a vinha premeditando. Em primeiro lugar, como quase todos os
cartagineses, ele sentia um ódio profundo contra os romanos, por causa da perda
da Sicília e da Sardenha. Depois, em particular, nutria-lhes também grande
rancor, quase como uma herança de seu pai Amílcar, que fora o maior inimigo dos
romanos, dentre todos os generais cartagineses. A este respeito encontramos,
por escrito, que, quando ele se preparava para passar à Espanha, ele obrigou a
Aníbal, ainda criança, por um juramento, em um sacrifício que ofereceu, que
apenas chegado à idade adulta, ele se manifestaria inimigo dos romanos. A
recordação destas coisas renovava-se frequentemente na fantasia do moço, como
uma ideia do ódio paterno, e o impelia cada vez mais a procurar todos os meios
de arruinar o império romano. Ademais, o partido Barciniano não cessava de
estimulá-lo insistentemente a isso, para que ele se tornasse forte e poderoso
por. meio. das armas e da grandeza do seu estado. Estas causas, tanto públicas
como particulares, incitando Aníbal a empreender a guerra contra os romanos,
deram motivo ao orgulhoso jovem de empreender a realização desse objetivo.

IV. Naquele tempo os
saguntinos estavam como de permeio entre os cartagineses e os romanos, os quais
haviam sido deixado livres, pelo acordo e combinação da paz. Há muito eles eram
considerados do partido dos romanos e, por meio da aliança feita com eles, eram
tidos como muito fiéis ao império romano. Aníbal, então, pensou que não poderia
encontrar ocasião mais propícia para causar despeito aos romanos e acender a
mecha, para ele tão agradável, do que importunar, com a guerra, os saguntinos,
seus confederados. Mas, em vez de atacá-los abertamente, deliberou levar seu
exército contra os oleadas e outros povos do outro lado do rio Ibero; depois
que esses se tivessem rendido, buscaria um motivo de aborrecer os saguntinos,
para fazer parecer que a guerra tinha sido provocada por eles, do que de fato
motivada por ele. Portanto, depois de ter obrigado os oleadas a se renderem,
ele se lançou sobre os vaceanos, devastou suas planícies, atacou várias
cidades, tomando Hermandice e Arbócola, cidades mui opulentas. Tinha já ele
reduzido toda a região ao seu domínio, quando alguns fugitivos de Hermandice
(6), animando-se mutuamente conjuraram contra ele, reuniram mais homens e atraíram ao seu partido também os fugitivos
de Olcades. Depois persuadiram aos carpentanianos (7), que eram seus vizinhos,
a, de comum acordo, atacarem Aníbal de improviso, apenas ele estivesse de
volta. Todo o povo, não desejando outra coisa que combater, mesmo porque ainda
se ressentia das injúrias e ultrajes recebidos, facilmente aceitou esta
proposta, tomou das armas e se reuniu em grande número, (mais ou menos uns cem
mil ou mais) e foram atacar Aníbal à sua volta dos vaceanos, ao longo do rio
Tago. Ao chegar, o exército dos cartagineses parou de repente e, por toda a
massa dos soldados, passou uma onda de medo e de espanto. E não se deve duvidar
mesmo de que eles teriam recebido uma grande fenda, se, quando ainda
assustados, à chegada repentina dos inimigos e carregados de muitas e valiosas
presas de guerra, tivessem atacado homens tão furiosos. Considerando isso,
Aníbal, prudente general, como era, não quis combater, mas ordenou que
acampassem naquele lugar. Durante a noite fez passar seu exército, com o menor
ruído possível, para o outro lado do rio, deixando um lugar, por onde o inimigo
pudesse passar facilmente, deserto e sem guardas, a fim de que por um temor
simulado ele atraísse os bárbaros e os fizesse atravessar o rio, para aproveitar
a ocasião que se lhes apresentava. E, como ele era o general mais astuto e
inteligente do seu tempo, não foi enganado em sua tentativa e no feliz
resultado da sua iniciativa para iludir o inimigo. Os bárbaros, violentos por
natureza, confiando demasiado em seu número, julgando que os cartagineses se
tinham assustado, lançaram-se furiosamente à água. Encontrando-se então em
desordem e atrapalhados, antes que pudessem ter atravessado todo o no, foram
eles atacados pelos cartagineses, primeiro por alguns homens da cavalaria, e
depois por todo o exército, de sorte que muitos deles foram mortos e o resto se
pôs em debandada, fugindo.

(6) Ou Salmantica, hoje Salamanca, no reino de
Leão.
(7) Este povo estava mais ou menos no melo da Espanha, os oleadas, à sua
direita, um pouco para o sul. os vaceanos, à esquerda, um pouco para o
noroeste.

 

V. Depois dessa vitória, todos os outros povos e nações do outro lado do
rio Ibero entregaram-se a ele, menos os saguntinos: estes, embora vissem a
Aníbal tão perto de si, todavia confiando na amizade dos romanos, puseram-se na
defensiva: mandaram, porém, embaixadores a Roma para avisar o senado do grande
perigo em que se encontravam e para pedir socorro contra seu tão grande
inimigo, que os perseguia de tão perto. Apenas os embaixadores mandados a Roma
haviam saído da Espanha, Aníbal veio com todo o seu exército acampar mesmo
diante da cidade de Sagunto (8) . Em Roma soube-se logo disso e deliberaram
reunir um conselho para considerar os ultrajes feitos aos seus aliadas; os
senadores, com muita apatia, decretaram que P. Valério Flacco e Quinto Fábio
Panfílio partissem contra Aníbal, para intimá-lo a se retirar de diante da
cidade de Sagunto: em caso negativo, que eles fossem a Cartago exigir que lhe
entregassem Aníbal, seu general, como tendo quebrado a paz. Políbio narra que
esses embaixadores foram ouvidas por Aníbal, mas tiveram uma resposta muito
fria. Lívio, ao contrário, diz que jamais eles foram ouvidos, nem mesmo ousaram
penetrar em seu acampamento. Ambos, porém, estão de acordo nisto, que vieram
eles à Espanha, depois passaram à África, c foram a Cartago, onde, depois de
ter exposto a sua missão ao conselho, tiveram contra eles a facção Barcimana,
tanto que voltaram a Roma com pouca honra e, mesmo, sem nada ter feito.

(8) Na costa,
diante da Maiorca, fi mais ou menos o lugar onde se encontra hoje
Morviedro.

 

VI. Havia no senado
de Cartago dois partidos e facções contrárias. Uma das quais existia há muitos
anos, desde os tempos em que Amílcar, cognominado Barca, ainda governava e
tinha tocado como por sucessão hereditária ao filho Aníbal: depois cresceu e
aumentou tanto, chegando a tão alto grau de poder, que tanto no interior como
no exterior tinha preeminência e o primeiro lugar nas causas e julgamentos.
Hanno, era o chefe da outra, homem grave e de soberana dignidade, na mesma
república, mas que apreciava mais o descanso e a tranquilidade do que a guerra.
Segundo se diz, foi somente ele, que quando os embaixadores romanos vieram a
Cartago queixar-se dos ultrajes feitos aos seus aliados, contra a vontade do
senado inteiro, opinou que se devia conservar a paz, com eles, e aconselhou-os
a evitar a guerra, que seria, um dia, a causa da ruína da sua pátria.
Certamente se os cartagineses tivessem querido antes seguir o conselho de
Hanno, do que tomar em consideração a sua amizade, seguindo o autor da paz, e
não se iludir com os que aconselhavam a guerra, eles ter-se-iam sentido bem
melhor, mesmo com relação à sua república. Mas tendo-se deixado levar pelo furor
e cobiça de um simples jovem, eles deram ocasião a inúmeros males que ao depois
lhes advieram. Por isso, é de grande necessidade aos homens de governo, bons e
prudentes, ter sempre mais em consideração o princípio dos negócios do que o
seu fim, e deliberar todas as coisas com a prudência, antes que recorrer aos
expedientes da guerra. Ora; os saguntinos, vendo-se cercados por Aníbal, que
contra todo direito e razão lhes fazia a guerra, conseguiram sustentar o cerco
por alguns meses. Finalmente, não obstante Aníbal ter maior número de homens
(ele tinha, como se diz, em seu acampamento, cento e cinquenta mil combatentes)
e uma grande parte das muralhas tivesse sido abatida, eles preferiram esperar o
saque da sua cidade, do que se entregar à mercê de seu mortal inimigo. Alguns
dizem que Sagunto foi tomada oito meses depois de iniciado o cerco (9), com os quais parece que Lívio não concorda, e
mesmo declara que outro foi o tempo certo do dito cerco.

(9)
Políbio diz formalmente, no oitavo mês: ora, Políbio nasceu no ano 548 de Roma,
e Sagunto foi tomada no ano 535 de Roma, e Políbio tinha feito a viagem à
Espanha, como ele mesmo no-lo diz, para conhecer a fundo as coisas de
que ele deveria falar em sua história. Ê desta época que data o primeiro ano da
segunda guerra Púnica, concorrendo com o 536 de Roma, Sagunto teria sido tomada
no fim do ano precedente.

 

VII. A tomada desta
cidade, tão opulenta, muito serviu, e de vários modos, às empresas de Aníbal:
pois, abaladas pelo exemplo desse saque, várias cidades, que, por se
aborrecerem de estar sujeitas aos cartagineses, estavam a pique de se revoltar,
conservaram-se dentro do seu dever, e mesmo os soldados retomaram coragem,
vendo os ricos despojos que lhes eram repartidos no acampamento. Mandou depois
a Cartago valiosos presentes dos despojos da cidade de Sagunto, por meio dos
quais subornou os chefes e principais homens da cidade e os tornou mais fáceis
à guerra, que ele tinha deliberado fazer contra o povo romano, não na Espanha,
como muitos pensavam, mas na mesma Itália. Nesse ínterim os embaixadores
voltaram a Roma, de Cartago, e declararam, em pleno senado, a fria acolhida e a
resposta que lhes haviam dado, e quase ao mesmo tempo souberam do saque de
Sagunto. Pelo que os romanos muito se arrependeram (demasiado tarde) por não
ter dado auxílio e assistência aos seus amigos em tão extremo perigo. O senado,
então, juntamente com o povo, muito se comoveu e sentiu grande pena; bastante
irritados, repartiram os cargos das províncias aos cônsules, a saber: da
Espanha a P. Cornélio (10) e da África, juntamente com a Sicília, a T.
Semprônio. Depois, alguns dos maiores da cidade foram mandados como
embaixadores a Cartago, para fazer as suas declarações em pleno senado,
lastimando a trégua interrompida e pondo-lhes diante dos olhos as causas e a
origem da futura guerra, e ao mesmo tempo denunciar-lhes corajosamente a
guerra, depois de terem declarado o motivo e a causa daquele proceder da parte
deles. Tudo foi recebido pelos cartagineses com uma bravata semelhante. E
nisto, entretanto, andaram mal avisados, pois o efeito e o princípio da guerra
afinal, bem o declararam.

VIII. Depois
que Aníbal teve conhecimento do que se havia feito ao senado de Cartago, pareceu-lhe
que já era tempo de passar à Itália, como havia-lhe determinado desde o
princípio, e por isso mandou equipar, com grande urgência, toda a sua bagagem e
ter prontos os navios, pediu auxílio e reforço às cidades que lhe eram mais fiéis,
e ordenou que todos os grupos se reunissem em Cartago, a nova. Tendo chegado
a Gades (11), colocou guarnições nos lugares mais próprios e
cómodos da África e da Espanha, o que lhe parecia mais que tudo necessário,
para que, quando ele tivesse passado à Itália, os romanos não viessem
apoderar-se delas. Mandou então à África mil e duzentos soldados de cavalaria e
treze mil de infantaria, espanhóis. Fez vir de vários lugares da África quatro
mil soldados, aos quais entregou Cartago, em custódia, tendo assim reféns e
soldados. Deixou o governo da Espanha a seu irmão Asdrúbal, entregando-lhe uma
esquadra de cinquenta navios de guerra, quase dois mil cavaleiros e doze mil
soldados de infantaria. Essas foram as guarnições que ele deixou em duas
províncias: não por que pensasse que eram suficientes para resistir ao poder
dos romanos, pois o forte da guerra seria na Espanha ou na África: mas porque
assim ele julgava que estavam bem defendidas para impedir que o inimigo
conquistasse o país, até que, tendo levado seu exército por terra, tivesse
feito a sua entrada na Itália. Pois na verdade ele não ignorava que os
cartagineses eram bastante poderosos para organizar um novo exército onde
quisessem, e se se houvesse apresentado a necessidade de enviar-lhe novo
reforço para a Itália, Porquanto, depois que eles haviam deixado para trás aquela
tão perigosa guerra, suscitada pela indignação dos mercenários (12) tendo
depois, porém, sido vitoriosos, primeiro sob o comando de Amílcar, depois sob
o de Asdrúbal, e finalmente sob o de Aníbal, eles tinham de tal modo aumentado
o seu poderio, que, no tempo em que Aníbal chegou à Itália, seu império era já
de enorme extensão. Possuíam toda a costa da África, que está no mar
Mediterrâneo, desde os altares dos filemos, que não estão muito longe da grande
Sirte, até as colunas de Hércules e tem de extensão (13) dois mil passos. Tendo
passado o estreito que separa a Europa da África, tinham ocupado quase toda a
Espanha, até os montes Pireneus, que separam a Espanha das Gálias.

 

(10)     
Cipião que foi morto na
Espanha, depois de muitos êxitos brilhantes, bem como seu irmão Gneu Cipião, no
ano 542 de Roma.
(11)     
Hoje, Cádiz.
(12) Iniciada no ano 513 de Roma e terminada no ano 516.

 

IX. Postas
assim as coisas na África e na Espanha, Aníbal voltou a Cartago, a nova (14),
onde ele tinha seu exército já pronto e bem equipado . E não querendo mais
adiar, mandou reunir seus homens, encorajando-os com grandes promessas, elogiou
a fertilidade da Itália, e mostrou-lhes a importância da aliança e da amizade
dos gauleses. Finalmente disse-lhes que marchassem alegremente. No dia seguinte
partiu de Cartago e conduziu seu exército ao lcngo da praia, até o rio Ibero.
Diz-se que. na noite seguinte apareceu a Aníbal, em sonho, um jovem de aspecto
terrível, que por primeiro o incitava a segui-lo à Itália, mas. em seguida, ele
viu uma serpente de tamanho descomunal, que
fazia grande barulho: e como ele queria saber o que aquilo significava,
parecia-lhe ter entendido que era a destruição da Itália. Não nos devemos
admirar se, sua grande preocupação e solicitude pela guerra da Itália durante o
dia, lhe produzisse tais fantasmas e sonhos durante a noite, representando-lhe
ou a vitória, ou a destruição, incêndios e outras calamidades da guerra. Pois
muito frequentemente acontece, como diz o orador, que nossos pensamentos e
palavras geram, em repouso, as coisas, que o poeta Ênio escreve de Homero, isto
é, aquelas em que mais frequentemente ele pensava e de que falava.

(13) Este passo está corrompido.
1,’Ecluse. Veja as Observações. (14) Cartagena, no reino da Múrcia. à.
beira-mar.

 

X. Depois que Aníbal passou os
Pireneus e conquistou o coração dos gauleses à força de presentes, chegou em
poucos dias à margem do Ródano. O Ródano tem sua origem não muito longe da dos
nos Reno e Danúbio, e depois de ter percorrido mais ou menos quarenta e nove
léguas, precipita-se no lago de Genebra, depois, saindo de lá, volta-se para o
ocidente, e separando por um espaço o território dos gauleses, e recebendo
depois um acréscimo com as águas dos nos Saona e outros, vem finalmente
desembocar no mar, por várias ramificações, entre os volscos (15) e os
cavarianos (16). Os volscos ocupavam então as duas margens do Ródano, e eram
muito numerosos, e mesmo os povos mais ricos e mais poderosos dentre todas as
nações da Gália. Tendo eles sabido da vinda de Aníbal, passaram o rio,
armaram-se e postaram-se às suas margens, para impedir que os cartagineses
passassem. Embora Aníbal tivesse ganho à sua amizade todos os outros gauleses,
todavia não tinha conseguido com presentes, nem com ameaças, que
experimentassem a amizade dos cartagineses, que não a sua força. Vendo então
que era necessário tratar esse inimigo, de preferência com a astúcia, mandou a
Hanno, filho de Bomílcar, que passasse ocultamente o Ródano, com uma parte do
exército, e atacasse os gauleses de improviso. Este partiu logo, percorreu um
bom pedaço de estrada e passou o rio num lugar que era bastante acessível, e
apresentou-se perto do acampamento dos inimigos, antes de que eles o
percebessem, ou, mesmo, que eles pudessem saber quem eles eram. Os gauleses,
ouvindo gritos por trás deles e vendo-se apertados pela frente por Aníbal, que
já tinha vários barcos preparados para fazer seus homens passar, não tiveram
tempo de deliberar, nem de recorrer às armas, abandonaram o acampamento e
puseram-se a fugir em debandada. Tendo eles então sido impelidos para a outra
margem, o resto do exército dos cartagineses passou o rio sem perigo algum.

(15) Eles habitavam o Languedoc e o Rossillon. Não õe estendiam para
além do Ródano.
(16). Ocupavam
uma parte do Delfinado, Avinhão era sua metrópole.

 

XI. Nesse
ínterim, Públio Cornélio Cipião, que tinha chegado a Marselha um pouco antes,
ouvia continuamente notícias do exército de Aníbal. Para melhor se certificar,
mandou então um grupo de cavaleiros de elite, para observar e espiar e, se
possível, saber das intenções dos inimigos: caminhando rapidamente, estes, como
lhes havia sido ordenado, encontraram logo quinhentos cavaleiros númidas
enviados também por Aníbal para observar o exército dos romanos, aos quais eles
atacaram imediatamente, e, depois de uma luta corajosa de lado a lado, por fim
os romanos puseram os outros em fuga, não sem inúmeras perdas de seus soldados,
bem que todavia o maior número de mortos fosse do lado dos inimigos. Aníbal,
assim informado do lugar onde estavam os romanos, foi tomado de grande
indecisão, se devia ou não prosseguir para a Itália, ou levar seu exército
contra o do cônsul que estava perto, arriscando tudo à sorte e aguardando o
resultado. Finalmente, depois de longa alternativa de dúvidas e incertezas, a
respeito do que deveria decidir, os embaixadores dos boios (17) persuadi-ram-no
a deixar de lado todas as outras empresas e a passar logo à Itália. Pois, antes
de Aníbal ter passado os Pireneus, os boios, tendo aprisionado os embaixadores
romanos, com um ardil, tendo causado grande dano ao pretor Mânlio, e incitado
os insubrianos (18), revoltaram-se e juntaram-se a Aníbal, principalmente
porque os romanos tinham repovoado Plaisance e Cremona. Aníbal, então,
persuadido pelos seus conselhos, levantou o acampamento e iniciou a marcha pela
margem do no; chegou cm poucos dias ao lugar que os gauleses chamam de Ilha,
que é formada pelo Saona e pelo Ródano, os quais, passando entre várias
montanhas, ah se vão encontrar: aí está hoje a cidade de Lião, muito célebre na
Gália, que se diz ter sido há muito tempo edificada e construída por Planco
Munácio. De lá passou à região dos alóbrogos (19) e, tendo apaziguado a
controvérsia entre dois irmãos, por causa da realeza, passou à região dos
castimanos (20) e vocôncios, até Durance. Aqui há um rio, que, tendo sua origem
nos Alpes, e de lá descendo em grande rapidez, vem desembocar no Ródano: e como
frequentemente muda de curso, não se pode senão com grande dificuldade
atravessá-lo a vau. Todavia, tendo-o passado, levou seu exército até os Alpes
por lugares descobertos, avançando tanto quanto lhe foi possível.

(17) Havia uma parte deles entre
o Loire e o Àllier; outros do lado de Bordéus e de Auch.
(18) Habitantes do Milanês.
(19) Ocupavam parte do Delfínado
e parte da Sabóia.
(20)
Não conheço os castinianos. Mas encontro entre todos os geógrafos, à esquerda
do Ródano, entre o ísero e a Durance. os tricastinianos e ao seu oriente, os
vocôncios.

 

 

XII. Mas, ao que se diz, passando por aí recebeu grandes perdas, tão
grandes, que alguns contemporâneos afirmam ter ouvido do mesmo Aníbal, que ele havia perdido mais de trinta mil
homens, com a maior parte dos seus cavalos. Pois lhe fora de mister, não
somente combater os habitantes das regiões montanhosas, mas também forçar as
asperezas e dificuldades dos caminhos, de tal modo que, em alguns lugares, dos
mais altos e ásperos rochedos, ele fora obrigado a abrir passagem à força de
fogo e de vinagre. Tendo passado os Alpes, depois de quinze dias, ele desceu
perto de Turim. Parece-me muito possível e verossímil que ele passou o monte
vulgarmente chamado Genua (21) : que, de um lado, tem o rio de Durance e do outro,
inicia a sua descida para Turim. É bem difícil poder dizer-se, na verdade, que
número de homens ele tinha, depois de ter passado à Itália, pela diversidade de
opiniões. Pois alguns escrevem que ele tinha cem mil soldados de infantaria e
vinte mil de cavalaria: outros, vinte mil homens de infantaria e seis mil de
cavalaria, todos africanos e espanhóis. Mas outros, compreendendo os ligúrios e
os gauleses, citam o número de oitenta mil de infantaria e dez mil de
cavalaria. Todavia, é de se crer, que ele não teve tão grande exército, como
dizem os primeiros, depois de ter passado por tantos países, de ter recebido
tantas perdas e danos, nem do mesmo modo, número tão pequeno, como querem os
segundos, em seus escritos, se considerarmos as grandes empresas que ele, ao
depois, levou a cabo. E assim parece-me aproximar-se muito mais da verdade, a
opinião dos que conservam uma opinião média, entre os dois: pois ele levou à
Itália a maior parte dos oitenta mil homens de infantaria e dos dez mil de
cavalaria, os quais ele tinha reunido na Espanha, como é também muito notório,
que um grande número de ligúrios e de gauleses veio unir-se a ele, pelo grande
ódio que então essas nações votavam aos romanos, que não era mesmo menor que o
dos cartagineses.

(21)
Eu não conheço também o monte Gemia: mas aí eu vejo os Alpes Marítimos, entre a
Durance. o mar. Génova, à beira-mar. e acima, a vinte e cinco léguas, a
noroeste. Turim. .
….

 

Deixe um comentário

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.