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XXVI.
Tendo-se os dois exércitos
retirado para descansar no inverno, depois de terem combatido por muito tempo,
foram afinal criados dois novos cônsules (43), L. Paulo Emílio e C. Terêncio
Varrão, o qual tinha sido elevado da mais baixa condição até a dignidade de
cônsul, pelo favor do povo. Foi-lhes permitido organizar um exército maior que
não o haviam feito os generais precedentes. As legiões foram aumentadas,
acrescentando-se outras novas às que já existiam. Reunindo-se aos seus
exércitos, os cônsules, como eram de naturezas diversas, assim também adotaram
uma maneira diversa de governar. L. Paulo, que era homem prudente determinou
governar do mesmo modo que Fábio, procurando protelar a guerra e deter o
inimigo, sem querer combater. Varrão, ao contrário, era homem violento, ousado,
o qual outra coisa não desejava senão barulho. Assim foi que, algum tempo
depois, se conheceu o grande perigo e a desvantagem em que se encontrava a
cidade, que diferença havia entre a modéstia de Emílio e a arrogância de
Varrão. Aníbal, também, temendo que pela falta de víveres surgisse algum novo tumulto
no acampamento, partiu para Glereno, e passando pelos lugares mais quentes da
Apúlia veio acampar com todo o seu exército perto de uma aldeia que se denomina
Cannes (44) .

 

(43)      No ano 538 de Roma.
(44)     
Antigamente aldeia e
depois cidade da Apúlia, perto do rio Aufido.

 

XXVII. Foi,
porém, seguido pelos dois cônsules romanos, que também acamparam perto dele
separadamente, porém, mas bem perto um do outro, havendo entre eles apenas o
rio Áufido.

Este
no, como se diz, separa sozinho o monte Apenino e tem sua origem do lado da
montanha que está voltado para o mar, pelo que vai desembocar no mar Adriático.
L. Paulo vendo que era impossível a Aníbal, estabelecido em país estranho,
poder sustentar seu exército, que era tão grande e composto de homens de tantas
nações diversas, estava resolvido a atrasar e adiar a guerra, retardando-a,
pensando que era o único e verdadeiro meio de vencê-la, julgando que isso seria
de grande desvantagem para o inimigo, quanto útil e proveitoso para o bem
público. E de fato, se C. Terêncio tivesse sido da mesma opinião, era assaz
notório que o poder de Aníbal poderia ter sido vencido pelos romanos, sem se
mover. Mas como ele era de espírito irrequieto e de um natural desassossegado,
não se importava nem com o prudente conselho, nem com a autoridade de Paulo
Emílio: mas, ao contrário, o censurava e queixava-se diante dos soldados, de
que ele mantinha seus homens inativos e presos, enquanto o inimigo se preparava
para a luta. Quando chegou o dia em que lhe tocava a soberana autoridade sobre
todo o exército (pois eles eram comandantes supremos, cada um por sua vez), ao
amanhecer, ele passou o rio Áufido, e deu o sinal da batalha, sem avisar seu companheiro, que o seguia, contra
vontade e não de boamente, porque ele não lhe podia resistir.

 

XXVIII.
Aníbal rejubilava-se,
porque a ocasião de combater havia chegado, pois toda dilação lhe parecia
voltar-se contra as suas determinações e desígnios; fez passar o rio também ao
seu exército, que já estava todo preparado, em boa ordem e
equipamento: haviam na verdade feito grandes presas sobre os inimigos, para
bem se equipar. O exército dos romanos se havia voltado para o sul, e um vento
meridional, que os da região chamam de vulturno, vinha bater-lhe diretamente
nos olhos; os inimigos, ao invés, tinham o vento e o sol em seu favor, e seus
homens estavam dispostos nesta ordem: os africanos ocupavam os dois flancos,
os gauleses e espanhóis, o batalhão do meio. A cavalaria ligeira começou o
primeiro ataque, e depois dela, os outros soldados: e como o lugar entre o rio
e os soldados de infantaria era muito estreito, de modo que não podiam os
soldados espalhar-se comodamente, a refrega foi mais sangrenta que
longa. A cavalaria dos romanos foi desbaratada e os soldados da infantaria
sustentaram o ataque com tal ardor e coragem, que lhes parecia faltar o tempo
para combater. Mas o excessivo desejo de vencer levou-os a um fim triste e
infeliz, como no primeiro encontro lhes tinha obtido um próspero começo.
Pois os gauleses e espanhóis, que dissemos estarem colocados no batalhão do
meio, não podendo sustentar o ataque veemente dos romanos, retiraram-se para os
africanos, nas alas. Vendo isso, os romanos partiram em forte corrida contra os
inimigos perseguindo-os e acossando-os sempre, até que chegaram ao meio: os
cartagineses então, que conservavam os flancos, fecharam-nos incontinenti, sem
que eles tivessem tido tempo de se pôr de guarda.

XXIX.
Quinhentos cavaleiros
númidas, dissimuladamente, dirigiram-se para os cônsules, os quais os receberam
com humanidade, e os colocaram na retaguarda do seu exército. Estes, vendo que
tinha chegado a sua vez, fizeram-se ver, por trás dos inimigos, e os atacaram,
improvisamente. Foi então o exército romano desbaratado de todos os lados, e
Aníbal obteve a vitória. Lívio escreve que nesta batalha morreram quarenta mil
soldados de infantaria (45) e mais de dois mil e setecentos cavalos. Políbio
diz que o número de mortos foi ainda muito maior. Deixando essas divergências,
é certo que os romanos jamais tiveram tantas perdas, nem mesmo na primeira
guerra Púnica, nem na segunda, da parte dos cartagineses, do que nesta em Cannes. Nela ficou o cônsul Paulo, homem certamente digno de todo louvor, que se tinha
dedicado a todos os negócios do estado, até o último respiro; o cônsul Servilio, do ano precedente
também foi morto e vários outros cônsules, pretores, e de outras dignidades,
generais, oficiais, ainda muitos senadores e honrados cidadãos dos quais
morreram então grande número, que a crueldade mesma do inimigo ficou
satisfeita. O cônsul Terêncio, que tinha sido o causador da batalha, vendo que
o inimigo obtinha a vitória de todos os lados, salvou-se na fuga. E Tuditano, oficial
de um grupo de soldados, passando com um bom número de homens, pelo campo dos
inimigos, chegou a Canúsio. Lá se reuniram uns dez mil homens, que tinham
escapado das mãos dos inimigos, como de uma grande tempestade; com o
consentimento de todos, o comando do exército foi confiado a Áupio Púlquer e a P.
Comélio Cipião (que depois pôs termo a esta guerra) . Eis o fim da batalha que
se travou perto de Cannes.

(45) Plutarco
na Vida de Fábio Máximo diz 50 mil mortos, e uns 14 mil
prisioneiros. 1,’Écluse.

 

XXX.
A notícia do desastre logo chegou
a Roma e, embora tal calamidade, com muita razão, tivesse enchido toda a cidade
de luto e de tristeza, todavia o senado e o povo de Roma conservaram sempre sua
grandeza em tais contingências desastrosas, de modo que não somente ainda
tinham grande esperança de poder conservar sua cidade, mas ainda, puseram-se a organizar
um novo exército, convocando para as armas os moços, sem deixar, no entretanto,
desprovidas a Sicília e a Espanha, de tal medo que muito se há de admirar, ao se considerarem estas coisas, de como, em
tão grande calamidade, eles podiam ainda ter tanta prudência e tão corajosos
propósitos. Pois, omitindo as outras perdas que sofreram no Ticino, em Trébia e
no lago Trasimeno, que nação teria podido suportar esta última desgraça, pela
qual o poder dos romanos foi quase de todo esmagado"? E, no entretanto o
povo romano o suportou, e o suportou de tal modo, que com a atividade e o
prudente conselho, não lhes faltou coragem e ousadia. Além de que, Aníbal,
vitorioso, perdia o tempo descansando seus homens, refrescando suas tropas, e
assim deu ocasião aos vencidos de tomar ânimo e de se refazerem. Se ele, depois
de ter vencido, tivesse levado logo seu exército diretamente a Roma, os
romanos, sem dúvida alguma, estariam de todo perdidos, ou, pelo menos,
obrigados a se expor a todas as perigosas incertezas da fortuna. E diz-se
mesmo, que, muitas vezes, mais tarde, ele se arrependeu da sua demora,
queixando-se publicamente de ter obedecido ao conselho dos que lhe diziam que
devia dar uma folga aos soldados e deixá-los descansar, antes que a Maharbal,
comandante da cavalaria, que era de opinião que se deveria marchar
imediatamente contra Roma, como termo e complemento da guerra, e, vendo que
Aníbal se demorava, pronunciou, pelo que se diz, esta frase, que é agora muito
comum: "Aníbal, tu sabes vencer, mas não sabes aproveitar da
vitória"
. Ora! Todas as coisas (como diz Nestor Homérico) não foram dadas aos homens, ao mesmo tempo:
uns não tiveram a ciência de vencer, outros, não souberam aproveitar
prontamente da vitória, e outros, ainda, não souberam conservar o que haviam
conquistado. Pirro, rei do Épiro, que fez guerra aos romanos, foi um dos
soberanos generais, como jamais outro existiu: todavia, segundo o que
encontramos por escrito, embora tivesse sido muito feliz em conquistar os
reinos, não os soube defender nem conservar. Assim também, outros chefes
militares foram dotados de virtudes excelsas, mas eram destituídos de outras
não menos recomendáveis, a comandantes e a guerreiros, como se pode ver nas
histórias antigas.

 

XXXI. Depois
desta batalha de Cannes, os atelanienses, os calatinianos, os samnitas, depois
os brúcios, os lucânios e muitos outros povos da Itália, comovidos pela fama
dessa grande vitória, passaram para o lado de Aníbal. E a cidade de Cápua (o
que Aníbal há muito desejava) abandonando seus velhos amigos e confederados,
fez aliança e amizade com Aníbal, o que lhe deu grande crédito perante as
outras nações. Naquele tempo ela era cidade poderosa e muito populosa, talvez a
cidade mais considerada e importante de toda a Itália, depois de Roma. E para
compreendermos em poucas palavras tudo o que se narra, é certo que antes era
uma povoação dos etruscos, chamada Vulturno, e, depois, Cápua, do nome do
governador, que se chamava Cápio, ou então, como é mais provável, por causa dos
lugares campestres, que lhe estão em redor. Vêem-se nas vizinhanças belíssimos campos muito férteis e todas as espécies de terras, que em grego se dizem KÉPOI.
Toda a região é também rodeada de nações mui célebres. Do lado do mar estão os
suessâmos, os cumânios e os napolitanos. No meio das terras, do lado do
setentrião, estão os calentinianos e os calenianos. Do lado do oriente e do
sul, os daumanos e os nolanos. Além disso o lugar é muito abundante em
natureza; de um lado é cercado pelo mar e, do outro, tem grandes e contínuas
montanhas. Ora, naquele tempo, os campanianos estavam em plena prosperidade.
Vendo, então, que os romanos estavam quase de todo arruinados, pela batalha que
haviam perdido em Cannes, voltaram-se logo para o lado dos mais fortes, como
acontece o mais das vezes. E, além da aliança que fizeram com Aníbal,
receberam-no em sua cidade com grandes honras, esperando que, terminada a
guerra, eles seriam os mais poderosos e os mais ricos de toda a Itália. Eis
como muitas vezes acontece, que os homens são enganados em suas esperanças.
Logo que Aníbal entrou na cidade de Cápua, uma grande multidão de povo correu
para vê-lo, pela sua fama e renome, pois só se falava da grande vitória que ele
havia conseguido contra o inimigo.

 

XXXII Quando ele entrou na cidade, levaram-no ao
aposento de Pacúvio, seu amigo e familiar, que era um homem poderoso e de muito
grande autoridade, como não havia outro entre os campânios. Fizeram-lhe um
grande banquete, para o qual não foi convidado nenhum habitante da cidade,
exceto Vibélio Táurea, homem muito virtuoso, filho de Pacúvio (46), seu
hospedeiro, que se tinha reconciliado com Aníbal após inúmeras e grandes
dificuldades, por meio do pai, pois que Aníbal tinha um grande desdém contra
ele, por ter seguido o partido de Décio Mágio, o qual sempre havia resistido
aos romanos. Mas, consideremos um pouco, eu vos peço, como os grandes
personagens, às vezes, caem sem pensar em graves e vários perigos. Pois este
moço, fingindo ter-se reconciliado com Aníbal, esperava, porém, a ocasião para
prejudicá-lo; quando o banquete decorria com toda a alegria e cordialidade,
levou seu pai a um lugar bem afastado do salão, rogando-o de, com ele, resgatar
por algum grande benefício a amizade dos romanos, e as boas graças, que eles
haviam perdido, por sua grande maldade. Depois disse-lhe como havia imaginado
matar a Aníbal, inimigo de sua pátria e de toda a Itália. O pai que era homem
de grande autoridade, ficou admiradíssimo, ouvindo a proposta do filho,
abraçando-o e chorando copiosamente, rogou-lhe que lançasse longe a sua espada
e deixasse seu hóspede em segurança na sua casa, o que por fim conseguiu não
sem grande dificuldade. Eis como pouco faltou, para que Aníbal (que havia
escapado dos ataques do inimigo e das emboscadas dos gauleses, trazendo consigo
um enorme exército, desde o mar e os confins distantes da Espanha, por inúmeras
e extensas regiões) não fosse morto pela mão de um moço, enquanto estava
tranquilamente divertindo-se à mesa.

(46) Chamado Perolla.

 

XXXIII.
No dia seguinte, Aníbal foi
ouvido em pleno senado, onde fez muitas e belas promessas, e lhes propôs também
várias coisas, nas quais os campanianos acreditaram facilmente e, por isso,
prometiam-lhe o domínio de toda a Itália, mas eles se aborreceram muito. De
fato, haviam-se submetido francamente a Aníbal, parecendo mesmo que eles não
somente lhe haviam dado entrada em sua cidade, mas que o haviam recebido como
senhor, como quem não se importava, nem se lembrava da própria liberdade, como
se pode ver por um exemplo, que citarei dentre tantos. Aníbal pediu que Décio
Mágio, chefe do partido contrário, lhe fosse entregue, ao que o senado não
somente obedeceu com humildade, mas, o que foi pior, permitiu que, à vista de
todo o povo, fosse levado ao acampamento amarrado e manietado, aquele mesmo
que, não querendo deixar a antiga aliança dos romanos, tinha-se mostrado um dos mais devotados cidadãos à causa
pública do seu país, que não às nações bárbaras.

XXXIV. Enquanto estas
coisas se passavam em Cápua, Mago, irmão de Aníbal, foi a
Cartago, para levar as notícias aos seus concidadãos, da feliz vitória
conquistada, sobre os inimigos, e, ao mesmo tempo, expor na presença do senado
os altos feitos de armas de Aníbal: e, para confirmar as suas palavras, ele
espalhou, à entrada da corte, os anéis de ouro, conquistados aos nobres
romanos, os quais, segundo alguns, perfaziam mais de um alqueire e, como dizem
outros, mais de três e meio. Depois pediu reforços, o que lhe foi concedido com
mais alegria e satisfação pelo senado, do que lho foi depois enviado. Pois os
cartagineses, animados pelas demonstrações daquele momento imaginavam que o fim
da guerra seria também feliz, como o começo já o havia sido e, por isso, eram
de opinião que se prestasse todo o auxílio necessário aos empreendimentos de
Aníbal, recrutando mais soldados para continuar a guerra. Somente Hanno,
perpétuo adversário e inimigo do partido barcinonense, era contrário; mas os
cartagineses não se incomodaram com isso e desprezaram o seu parecer, que
tendia para a paz, embora fosse muito salutar, como já o tinha sido também
outras vezes.

 

XXXV. Depois que Aníbal firmou aliança com os
campanianos, estabeleceu seu acampamento diante da cidade de Nola, esperando
que ela se entregasse por si mesma, sem ser obrigada a isso. E sem dúvida teria
obtido o seu intento, se o pretor Marcelo, chegando repentinamente, não tivesse
detido o povo, acalmado a sedição e repelido o inimigo, que já entrava na
cidade, pelo ataque que moveu contra ele, por três portas diversas, repelindo-o
e derrotando-o até o seu campo, com grandes perdas. Era Marcelo, homem de bem e
muito experimentado na guerra, muito afamado na arte militar, o qual, com
grande magnanimidade, coragem e perícia, fez saber a todos que Aníbal não era
invencível. Aníbal julgou que era necessário no momento abandonar Nola, até outra
oportunidade e foi então para Acenes, tomou-a e saqueou-a, sem resistência.
Depois, dirigindo-se com mais veemência para Casilino, lugar muito apropriado
para hostilizar os capuanos, procurou conquistar os que eram da guarnição; mas,
vendo que nem suas belas promessas, nem as ameaças obtinham resultado, deixou
uma parte do exército cercando a cidade e levou o resto para invernar.
Escolheu, porém, para sua residência principal, a cidade de Cápua, muito bela e
rica de diversões e de toda a espécie de delícias. Foi aí que os soldados,
acostumados a dormir na terra dura, a sofrer pacientemente a fome, a sede e o
frio, de valentes, tornaram-se medrosos, de corajosos, tímidos, de ativos e espertos, fracos e efeminados, pela
voluptuosidade e pelos prazeres de que todos os dias gozavam, em abundância. Pois os prazeres da mesa e que atraem o homem a si mesmo corrompem a força e o
vigor da coragem, o valor da virtude, abastardam o espírito, privam do
conselho, coisas todas muito perigosas e fatais para os homens. Com muita
razão, Platão chama a voluptuosidade uma isca e um engodo para todos os males.
Certamente, nessa ocasião, as delícias da Campânia trouxeram mais dano aos
cartagineses que não os mais altos Alpes e todos os exércitos dos romanos. Pois
um único inverno, passado assim na dissolução e na volúpia dos prazeres, foi de
grande eficácia para extinguir o ardor e a coragem dos soldados, de modo que,
quando voltaram aos exercícios e ao acampamento no princípio da primavera, parecia
que eles se haviam completamente esquecido das virtudes e do valor militar.

XXXVI.
Passado o inverno, Aníbal
voltou a Casilino, esperando que seus habitantes se entregassem, mesmo contra
sua vontade, depois de terem suportado tão longo cerco. Mas eles tinham
deliberado sofrer todas as agruras, antes de se entregar à mercê de seu
inimigo, assaz cruel, embora os víveres lhes viessem a faltar. Alimentando-se,
então de algas primeiramente e, depois, de nozes que eles receberam dos
romanos, pelo rio Vulturno, puderam manter-se por muito tempo, e Aníbal, por
fim, envergonhado de demorar-se tanto, ali, no mesmo lugar, contentou-se de
receber a cidade em condições o que antes ele havia recusado. Ora, esta guerra,
na qual os cartagineses haviam sempre tido muita sorte, sem jamais ter recebido
perdas dignas de memória, entre tantas vitórias, começou nessa época a sofrer
várias modificações em seu curso, com várias alternativas. Pois a aliança que
havia sido feita com Felipe, rei da Macedônia, e o reforço que. havia sido
mandado de Cartago, a tomada de Petília, de Cosenza e de outras cidades da
região dos brúcios, mantinham a esperança dos cartagineses. Por outro lado, as
grandes vitórias que os romanos haviam conquistado sobre os inimigos, na
Espanha e na Sardenha, levantavam-lhes muito o ânimo, e davam-lhes esperança de
que suas empresas progrediriam cada vez mais. Eles tinham também escolhido
excelentes comandantes, Fábio Máximo, Semprônio Graco e M. Marcelo, homem digno
de todo louvor militar, o qual governava tão bem, que Aníbal percebeu que tinha
de combater contra um chefe não menos prudente e avisado, do que belicoso.
Pois, primeiramente, ele foi repelido das cercanias de Cumes, com grande perda
de homens, por Semprônio Graco, e obrigado a levantar o cerco; pouco depois foi
derrotado perto de Nola, por Marcelo. Aí, dizem, morreram mais ou menos mil
romanos (47) e seis mil cartagineses, mortos ou aprisionados na fuga. Pode-se
facilmente compreender de quão grande importância foi a mencionada batalha,
pois, de repente, Aníbal levantou o cerco de Nola e retirou-se para a Apúlia,
para fazer seu exército invernar.

XXXVII. E assim aconteceu que os romanos, restabelecendo-se como de uma doença,
lançaram-se violentamente contra o inimigo e não se contentaram somente de se
precaver contra o próprio, mas ousavam atacar e se lançar também sobre o dos
outros. Seu intento principal era sitiar a cidade de Cápua, por causa da
injúria que eles tinham recebido ainda há pouco, na pessoa dos capuanos, pois
imediatamente depois da batalha de Cannes, estes deixaram os romanos no momento
mais difícil da sua sorte e dos seus negócios e passaram-se para o lado de
Aníbal, vitorioso, esquecendo os grandes benefícios que sua cidade tinha
recebido dos romanos . Por outra parte, os campamanos, bem sabendo a falta que
haviam cometido e admirados do novo aparato dos romanos, mandaram à Apúlia
embaixadores a Aníbal, para rogá-lo que auxiliasse à sua cidade, a qual era do
número de suas aliadas, em sua grande necessidade. Ele partiu da Apúlia sem
tardar; em grandes jornadas, veio à Campânia e foi estabelecer o seu arraial
perto de Tifata, acima de Cápua, mais diferindo, por este meio» para um outro
tempo, o mal que devia suceder aos campanianos, do que impedindo-o. Mas
percorrendo as regiões circunvizinhas de Nápoles, ele retomou a esperança de se
apoderar da cidade de Nola, à traição. Pois sabia que, lá, o senado e o povo
estavam em divergência, bem como em outras cidades da Itália. O povo, cioso de
novidades, favorecia a Aníbal e os homens nobres e de autoridade, ao povo
romano. Quando então Aníbal ia tomar Nola, Marcelo apresentou-se diante dele,
com seu exército preparado para a luta, como ele já havia feito antes e não
fingiu atacar ao primeiro contato. Assim os romanos venceram e repeliram o
inimigo, com tanta violência e entusiasmo, que se os cavalarianos, que tinham
seguido outro caminho, tivessem acorrido em tempo, como Marcelo lhes havia
ordenado, ‘sem dúvida os cartagineses teriam sido derrotados.

(47) Plutarco na vida de M. Marcelo fala de L’cluse.

 

XXXVIII. Aníbal, depois de ter reconduzido seu exército ao acampamento, com
grandes perdas, partiu logo em seguida desse mesmo lugar e dirigiu-se para o
país dos salentinianos. Pois alguns jovens tarentinos, que haviam sido
aprisionados em batalhas anteriores, nas quais os romanos tinham sido
derrotados e foram, depois, libertados sem pagar resgate,, querendo mostrar-se
gratos, tinham dado esperança a Aníbal de lhe entregar a cidade de Tarento,
contanto que ele aproximasse o seu exército da mencionada cidade. Aníbal,
incitado pelas promessas, propôs-se logo iniciar tal empreendimento, para ter
alguma cidade marítima em seu poder, como havia há tanto tempo desejado. E de
fato, dentre as cidades marítimas, não saberia escolher outra melhor do que
Tarento, para ter o auxílio da "Grécia e para suprir o exército de tantas
coisas necessárias para cada dia. Embora a coisa se prolongasse por causa da
guarnição dos romanos, que resistia valentemente, todavia, Aníbal não desistiu
do seu intento, até que Nico e Filomeno, autores da traição, não lhe tivessem
entregado a cidade em suas mãos (48). Os romanos conservaram somente a
fortaleza, a qual é quase toda rodeada pelo mar; o único lado que se liga com a
terra firme estava bem defendido com fossas e muralhas. Aníbal, vendo que nada
obtinha por aquele lado, por causa da ótima defesa que havia, determinou
obstruir a embocadura do porto de Tarento, julgando ser esse o único meio de
obrigar os romanos a se entregar, quando os víveres lhes fossem cortados.
Todavia, a empresa parecia assaz difícil, porque os inimigos montavam guarda à
entrada do porto e os navios que deviam sitiar a entrada do mesmo estavam
encerrados num lugar muito acanhado, e era necessário tirá-los do porto, o qual
estava localizado bem perto da fortaleza e fazê-los passar ao mar próximo.
E como ninguém, dos tarentinos, sabia de outro meio capaz de levar a cabo esta
empresa, Aníbal, sozinho, notou que se podiam tirar os navios do porto com o
auxílio de algumas máquinas e depois carregá-los pela cidade, até o mar. Tendo
posto em ação um grupo de homens ativos e habilidosos, os navios em poucos dias
foram tirados do mar onde estavam e colocados em outro lugar, podendo-se
apresentar, então, diante da entrada do porto.

(48) No ano 542 de Roma.

 

XXXIX. Depois
da reconquista da cidade de Tarento, quase cem anos depois que ela tinha sido subjugada
pelos romanos, Aníbal, deixando a fortaleza sitiada por mar e por terra, voltou
a Sâmnio. Os cônsules romanos tinham surpreendido e saqueado os campanianos,
que haviam saído para buscar forragem e, tendo levado seu exército para diante
de Cápua, esforçavam-se por conquistar a cidade. Pelo que Aníbal, tomando muito
a peito o cerco de Cápua, veio com todo o seu exército ao encontro do inimigo
e, vendo pouco depois que os romanos não recusavam a batalha, ambos os
exércitos avançaram. Sem dúvida, havia probabilidade de que a refrega seria
duríssima, se o exército de Semprônio, que vinha da Campânia, sob o comando de
C. Cornélio, depois de ter perdido Semprônio Graco, no país dos Lucânios, não
os tivesse, no momento, separado. Pois vendo de longe esse exército, antes de
poder distinguir a quem pertencia,
os romanos e os cartagineses, ambos tiveram medo e se retiraram cada qual para
o seu acampamento. Logo depois, os cônsules também se retiraram para um lugar
diverso: um, para a Lucânia e outro, para Cumes, a fim de atrair Aníbal para a
parte posterior de Cápua, o qual foi para a Lucânia e encontrou ocasião de
combater contra M. Centênio, que cheio de ousadia e de temeridade fora
apresentar, diante do inimigo fino e cauteloso, o exército que o senado havia
totalmente entregue ao seu comando. Iniciada a luta, Centênio morreu
valorosamente combatendo e poucos outros escaparam. Sobreveio ainda outra
perda: Aníbal, voltando pouco depois à Apúlia, encontrou outro exército dos
romanos, que o pretor Fábio organizara e comandava, o qual ele surpreendeu com
emboscadas e retalhou em mil pedaços, de modo que, de vinte mil homens, com
muita dificuldade conseguiram escapar uns dois mil, que não foram passados a
fio de espada.

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