Conquista do México e do Peru – Montaigne

Conquista do México e do Peru – Michel de Montaigne

Nosso mundo acaba de descobrir outro (e quem nos diz que seja o último, se os demônios, as sibilas e nós mesmos ignoramos esse até agora?) não menos grande, vasto e sólido do que o nosso. Mas tão novo e jovem que lüe ensinam ainda o abe. Há menos de cinqüenta anos não conhecia nem letras, nem pesos, nem medidas, nem roupas, nem trigo, e vinha; estava ainda nu no seio da mãe nu-triz… era um mundo criança. Se não o subjugamos e sujeitamos à nossa disciplina pelo nosso maior valor, 011 por vantagens naturais, tampouco o fizemos com justiça, bondade e magnanimidade. Suas respostas, em sua maioria, e as negociações levadas a efeito, testemunham que nada nos ficavam a dever em matéria de clareza de espírito natural e de pertinência. A assombrosa magnificência das cidades de Cusco e do México, bem como, entre outras coisas, o jardim daquele rei, em que todas as árvores, frutos e ervas, se reproduziam em ouro de conformidade com o seu tamanho natural, e ainda seu gabinete onde todos os animais nascidos em seu Estado e em seus mares assim também se representavam, além da beleza de suas obras de pedraria, pluma ou algodão, e mais as suas pinturas, mostram que nada nos ficavam a dever igualmente na indústria. Quanto à devoção, à observância das leis, à franqueza, vantajoso foi-nos não tê-las tanto quanto êles; por isso se perderam, vendendo-se, e se traindo a si próprios pelas suas próprias qualidades.



No que diz respeito ao arrojo, à coragem, à firmeza de caráter, à constância, à resistência às dores, à fome e à morte, não me parece excessivo comparar os exemplos encontrados entre êles com os mais famosos da antigüidade. Os que os subjulgaram não teriam oportunidade para tantas vitórias se lhes fossem retirados os engodos e o aparelhamento de que se serviram para enganá-los. Tanto mais quanto um compreensível assombro invadia tais povos ao verem chegar inesperadamente os conquistadores barbudos, de língua e religião tão diversas na forma e no conteúdo, vindos de plagas longínquas que nunca haviam imaginado fossem habitadas; e que chegavam montando grandes monstros, desconhecidos a quem jamais vira nem cavalos nem sequer nenhum outro animal que servisse para sustentar um liomem ou uma carga; e que surgiam vestidos de peles luzidias e duras, e armados com armas cortantes e res-plendentes, para jogar-se contra aquela pobre gente que trocava imensas riquezas de ouro e pérolas por um espelho brilhante ou uma faca e que não tinha nem ciência nem material com os quais atravessar o nosso aço. Acrescentem-se os raios ‘e trovões de nossos arcabuzes capazes de assombrar a César êle próprio (o qual fôra surpreendido em idênticas circunstâncias) dirigidos contra povos nus, cobertos apenas de tecidos de algodão e somente donos de arcos, pedras, cacetes e escudos de madeira; povos cm verdade iludidos pela falsa amizade e a má fé, atraidos pela curiosidade de ver coisas estranhas e desconhecidas.



Sem essa disparidade, já o disse, não teriam os conquistadores oportunidades para tantas vitórias. Quando penso nesse ardor indomável com que milhares de homens, mulheres e crianças se lançam contra perigos inevitáveis em defesa de seus deuses e de sua liberdade; quando vejo essa generosa obstinação em tudo sofrer, inclusive a morte, de preferência a se submeterem ao domínio dos que tão vergonhosamente os enganaram, aceitando muitos morrer de fome, quando prisioneiros, para nada receberem das mãos do inimigo vilmente vitorioso, sinto que se fossem atacados em igualdade de condições, de armas e de número, seriam tão perigosos, ou mais, quanto os de outra guerra a que assistimos.



Porque não coube a Alexandre ou aos antigos gregos e romanos tão nobre conquista! Porque não coube tão grande alteração de impérios e povos a tais mãos que, com cordura e bondade, teriam polido o que neles houvesse de seivagem, e cuidado da boa semente da terra, emprestando não só à agricultura e a cidades as suas artes mas ainda ministrando as virtudes gregas e romanas às do próprio pais. Que admirável coisa fora se os nossos primeiros exemplos e a nossa conduta nesse país houvessem incitado os povos à admiração e à imitação das virtudes e os tivessem unido a nós numa fraterna compreensão! Quão fácil fora tirar proveito de almas tão novas, tão esfomeadas de conhecimentos e com bases naturais tão excelentes em sua maioria! No entanto, valemo-nos de sua ignorância e inexperiência para impedi-los à traição, à luxúria, à avareza e a tôda sorte de desumanidades e de crueldades em obediência ao padrão de nossos costumes. Quem jamais vendeu tão caro as vantagens do comércio? Tantas cidades arrasadas, tantos povos exterminados, passados ao fio da espada, e a mais rica e bela parte do mundo subvertida pelo tráfico das pérolas e da pimenta, pobres vitórias! Jamais a ambição e a hostilidade levaram os homens a tão horríveis guerras e calamidades.



Costeando a terra em busca de minas alguns espanhóis aportam em país fértil e aprazível, muito habitado, e fazem ao povo suas costumeiras advertências: que eram gente pacífica, chegada de remotas terras, mandada pelo rei de Castela, o maior príncipe do mundo, ao qual o papa, representante de Deus no universo, dera o domínio das índias; que se lhes quisessem ser tributárias seriam muito benignamente tratados; que lhes pediam víveres para seu alimento e ouro para a necessidade de alguma medicina; ademais recomendavam a crença num só Deus e a verdade de nossa religião que lhes aconselhavam aceitarem; e, acrescentavam algumas ameaças. Eis a resposta: que quanto a serem pacíficos não o pareciam, se é que o eram; quanto a seu rei, devia ser indigente, posto que pedia; quanto àquele que fizera a distribuição das terras, amava sem dúvida a discórdia pois dava a outrem o que não lhe pertencia e provocava assim hostilidades com os verdadeiros donos; quanto aos víveres, que os dariam; quanto ao ouro, que pouco possuíam e era coisa de menor valia tanto mais quanto inútil à vida que cuidavam de tornar feliz e aprazível; que tomassem portanto de todo o que encontrassem salvo o destinado aos serviços dos deuses; quanto ao Deus único, agradara-llies a afirmação, mas não desejavam mudar de religião, já que lhes servira a que tinham durante tão longos anos; quanto aos conselhos, que não estavam acostumados a aceitá-los senão de amigos e conhecidos; quanto às ameaças, parecia-lhes loucura que as dirigissem sem conhecimento dos meios de defesa. Que em vista disso saíssem imediatamente do lugar, pois não estavam acostumados a levar em consideração os propósitos de gente armada e estranha; e que se não se retirassem fariam com eles o que haviam feito com outros, como o provaram com as cabeças de alguns homens justiçados perto da cidade.



Eis um exemplo das promessas dessa infância…



Dos dois mais poderosos monarcas dessa terra, e talvez desta também, reis de tantos reis e dos últimos destronados, o seguinte ocorreu com o do peru. Feito prisioneiro em uma batalha e tendo pago fielmente o exorbitante resgate exigido, deu por suas palavras demonstração de coragem franca, leal e constante, de uma inteligência clara e bem ordenada. Mas os vencedores, depois de lhe extorquirem um milhão e trezentos e vinte e cinco mil e quinhentos pesos de ouro, além da prata e de outras coisas de igual valor, a tal ponto que até os cavalos os tinham ferrados de metal maciço, sentiram desejo de, ainda que ao preço de uma deslealdade, saber qual podia ser o restante do tesouro do rei. Forjaram pois contra êle a falsa acusação, apoiada em falsas provas, de estar tentanto sublevar as suas províncias para alcancar a liberdade. E então, por julgamento daqueles mesmos que arquitetaram a traição, condenaram-no a ser enforcado publicamente, obrigando-o a resgatar pelo batismo o suplício de ser queimado vivo. Tão horrível e incrível acidente êle o suportou sem desfalecimentos nem palavras vãs, com atitude e gravidade verdadeiramente reais. Em seguida, para ob-nubilar os povos assombrados com tão estranha cena, simularam grande dor e ordenaram-lhe suntuosos funerais…



(Livro III, Cap. 6: Dos Coches).

Tradução de Sérgio Milliet


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