DANTE ALIGHIERI – VIDA NOVA
Tradução: Atena Editora
PREFÁCIO
Não é
possível, nas poucas palavras de prefação a este pequeno volume, expor a vida
de Dante, tãc movimentada e rica de acontecimentos, e ainda menos dar, mesmo em
resumo, um conceito completo das suas obras. Quem quisesse conhecer uma e as
outras poderia fazê-lo bem facilmente: não se trata senão de escolher, pois que
sobre Dante foram publicados milhares e milhares de volumes, como talvez, sobre
nenhum outro escritor, estudando-o sob todos os pontos–de-vista. Serão,
assim, estas minhas poucas palavras indispensáveis para dar uma idéia geral do
significado e do valor deste trabalho juvenil do nosso poeta aos profanos da
obra dantesca.
Dante
Alighieri viveu quase a cavaleiro de dois períodos históricos, entre a Idade
Média e a Idade Moderna (1265-1321), quando a consciência humana sentia os
primeiros estímulos de rebelião que deviam preparar a época moderna, através o
humanismo. Sua cidade natal, Florença, a Itália, todo o mundo ocidental eram
profundamente agitados e sacudidos pelas lutas comuns a todos os períodos de
transição. Dante, homem
em toda a expressão da palavra, não simplesmente poeta, que vive a vida do seu
tempo, reflete em si e em sua obra o drama que aflige o seu século. Sem tolerar
qualquer restrição que pudesse limitar-lhe o pensamento,
cuja grandeza plenamente conhecida, inimigo de quanto era ou pensava
ser injusto, ávido de luz e de verdade, torna-se-lhe logo insuportável o jugo
de parte, inseparável sempre de todos os partidos, e, des~
vencilhando-se dos empenhos que o ligavam à parte güelfa, não passa
propriamente à parte guibelina, como em geral se acredita, não obstante sua
doutrina imperial, mas faz parte de si mesmo, não tendo em mira senão
alcançar a liberdade e a justiça. Profundamente religioso, como poucos o foram
em todos os tempos, não hesita em formar contra os papas, quando estes lhe
parecem inimigos da fé e da Igreja que deturpam com seus atos.
Com
uma consciência tal, não podia Dante, com facilidade,
merecer a graça dos poderosos, nem tranqüilidade em lugar algum. Daí sua vida
errante de exilado, peregrinando de terra em terra, aprendendo através a
miséria e a infelicidade.
………………………. come sa
di sale
Lo pane altrui e come è duro calle
Lo scendere e salir per l’altrui scale.
E morre no exílio!
Uma série
ininterrupta de dores, de sofrimentos, de lutas pela justiça e pela liberdade.
Eis a vida de Dante.
*
A obra
literária de Dante não é somente ampla: é enciclopédica; como de resto era a
tendência do seu tempo. Teologia, filosofia, astronomia, matemática, ciências
físicas e naturais, história, geografia, arte, ciências ocultas o trívio e o
quadrívio completos, tudo o que foi o saber medieval encontra lugar na obra
dan-tesca; sobretudo no poema.
Al guale han posto mano cielo e terra.
E’
que, se o conteúdo direto da Divina Comédia é constituído dos três
reinos ultramundanos, segundo a religião católica: Inferno, Purgatório e
Paraíso, na realidade, porém, serve-se Dante desse esboço para expor o que era
o patrimônio intelectual do seu tempo, para "dar fundo ao universo",
como ele próprio o diz, numa admirável enciclopédia.
Essa
exposição,, desenvolve-a Dante através suas obras. Com efeito, além da Divina
Comédia, pela qual é geral e quase exclusivamente conhecido, e da Vita
Nuova, que o íeitor aqui encontrará em seguida, o ghibellin
fuggiasco deixou outros escritos, em verso e em prosa, em italiano e em
latim.
São obras italianas de Dante, além das precedentes, o Convite?, composto1 em
verso e prosa, no qual serve esta de comentário, de explicação, de guia
às canções filosóficas que, exceto o primeiro, abrem os quatro tratados de
que a obra se compõe; o Canzoniere, coletânea de poesias várias,
reunidas sob esse título, e a tradução de alguns salmos.
Em latim,
Dante escreveu um tratado sobre a língua vulgar, como ele chama ao italiano, De
Vulgar Eloquentia, no qual discorre sobre as línguas neolati-nas, especialmente o italiano ou língua do si,
para distingui-la da língua d’oc ou língua provençal,
e da língua d’oií ou antigo francês; o tratado sobre a Monarquia, De
Monarchia, que encerra o pensamento político do poeta; as epístolas, Dantis
Epistulae, dirigidas a reis, príncipes, prelados e cidades, tratando de
argumentos políticos e religiosos; a disputa acerca da água e da terra,
Quaestio de aqua et terra; e as Ectogae.
*
A Vita
Nuova, a vida juvenil, o átrio da obra dantesca.
Que
é a Vita Nuova? E’ ela a narração da vida juvenil do poeta, como êle
próprio o diz no princípio do livro, ou é um romance simbólico, no qual,
sob a forma metafórica, pretende expor a doutrina daquele tempo relativa ao
amor? E’ Beatriz uma mulher real, Bice Portinari, como muitos o afirmaram e o
afirmam baseados em Boccacio, ou é um
símbolo, o símbolo do amor-perfeição?
Muito
se discute a esse respeito e se aduziram provas em abono de uma e outra tese. A
questão não foi ainda resolvida, e talvez jamais o seja. Destino das grandes
concepções. Não será, pois, em poucas linhas de prefácio que se poderá
resolvê-la. Não o tentaremos tampouco.
Aludisse ou não Dante,
na Vita Nuova, a uma mulher real, o que não padece dúvidas ó que, acima
da mulher real, está o símbolo da mulher e do amor ideal, tão comum naquela
idade, que vinha já da poesia provençal e das cortes desamor, para as quais
amor é espelho de perfeição, no qual sentimento e paixão se apuram. Amor
che nella mente mi ragiona: a sede" do amor já não é o coração, mas a
mente. Amor se torna fonte de gentileza, ou antes, confunde-se e unifica-se
com a própria gentileza: Amore e cor gentil sono una cosa. Entre amor,
gentileza e perfeição não há diferença. Quanto mais o amor se eleva tanto mais
se aperfeiçoa, até chegar ao grande amor, ao amor único, universal, que é Deus.
L’amor che muove il sole e 1’altre stelte.
Assim
entendido, o amor dantesco não sofre interrupções, e a Beatriz da Vita
Nuova é a mesma Beatriz do Convito e cia Divina Comédia: é o
amor universal pelo qual o espírito humano se aperfeiçoa.
*
Traduzir
Dante é empresa dificílima, quase impossível: porque a língua dantesca é tão
distante do italiano moderno, que reclama um estudo especial, corno o reclama
o grego de Homero para quem conhece c grego ático; e em virtude da profundeza
do pensamento e da forma metafórica própria de Dante.
Por
essas razões, quando me falaram da tradução da Vita Nuova e me foram apresentadas
as provas tipográficas para que eu escrevesse estas poucas linhas de prefácio,
fiquei na dúvida quanto à possibilidade de dar uma versão aceitável do
trabalho juvenil do poeta florentino.
A leitura
das provas, porém, convenceu-me de que a maior parte das dificuldades foram
superadas, e de que o texto fora em geral bem interpretado, respeitando-se
sempre o sentimento dantesco, tão profundamente religioso, de uma
religiosidade pura e sincera. Não é coisa perfeita, pretensão impossível sempre
de conseguir-se em matéria de traduções. É contudo, quanto de melhor se podia
fazer. E não me parece pouco.
A. PICCAROLO
I
Naquela
parte do livro da minha memória, diante da qual pouco se poderia ler, acha-se
uma rubrica que diz: Incipit vita nova. Sob a qual rubrica eu acho
escritas as palavras que é meu intento transcrevei neste livro; e, se não
todas, ao menos a sua sentença.
II
Nove
vezes já, depois do meu nascimento, tornara o céu da luz (1) quase a um mesmo
ponto, quanto à sua própria giração (2), quando aos meus olhos apareceu
primeiro a gloriosa senhora da minha mente, a qual foi chamada por muitos
Beatriz, que não sabiam senão assim chamar-lhe. Ela nesta vida já estivera
tanto que, no seu tempo, o céu estrelado movera-se para a parte do oriente das
onze partes uma de um grau (3), de maneira que quase no princípio do
seu nono ano me apareceu, e eu a vi quase no fim do meu nono. Apareceu vestida
de nobilíssima cor, humilde e honesta, sangüínea, cingida e ornada à guisa que
à sua juveníssima idade convinha. Naquele ponto, digo com verdade que o espírito da vida (4), que habita a
secretíssima câmara do coração, começou a tremer tão fortemente que aparecia de
modo horrível nas menores pulsações; e, tremendo, disse estas palavras: Ecce
Deus fortior me, qui veniens, dominabitur mihi. Naquele ponto, o espírito
animal, que habita a alta câmara (G) à qual todos os espíritos
sensitivos levam as suas percepções, começou a maravilhar-se muito e, falando
especialmente aos espíritos visuais, disse estas palavras: Apparuit iam
beatitudo vestra. Naquele ponto, o espírito natural, que habita a parte
onde se ministra a nossa nutrição, começou a chorar e, chorando, disse estas
palavras: Heu miser, quia frequeníer tmpeditus ero deinceps. Doravante
digo que Amor se apoderou de minha alma, a qual foi por ele tão depressa
desposada, e começou a tomar sobre mim tanta segurança e tanta senhoria pela
virtude que lhe dava a minha imaginação, que me convinha satisfazer completamente
todos os seus prazeres. Êle mandava-me muitas vezes que procurasse ver esse
anjo juveníssimo, de modo que eu na minha meninice muitas vezes a andei
procurando, e a vi com tão nobres e louváveis aparências que, certo, dela se
podia dizer a palavra do poeta Homero: "Não parecia filha de homem mortal,
mas de Deus". E, se bem que a sua imagem, que continuamente estava comigo,
fosse audácia de Amor a se apoderar de mim, todavia era de tão nobre virtude
que nenhuma vez tolerou que Amor me regesse sem o fiel conselho da razão nas
cousas em que tal conselho fosse útil ouvir. E, se bem que sobrestar às paixões
e atos de tanta juventude pareça um falar fabuloso, eu me afastarei deles; e,
passando por muitas cousas que se poderiam tirar do modelo onde nascem,
chegarei às palavras que estão escritas na minha memória sob maiores
parágrafos.
III
Depois
que se passaram tantos dias que se completaram justamente os nove anos após a
aparição acima descrita daquela gentilíssima, no último desses dias aconteceu
que a admirável mulher me apareceu vestida de côr branquíssima, no meio de duas
gentis mulheres, as quais eram de mais longa idade; e, passando por uma rua,
volveu os olhos para a parte em que eu estava muito receoso e, com a sua
inefável cortesia, que é hoje merecida no grande século (6), saudou-me
muito virtuosamente, tanto que me pareceu então ver todos os termos da
beatitude. A hora que o seu dulcíssimo saudar me alcançou era sem dúvida a
nona daquele dia; e, como fosse a primeira vez que as suas palavras se moveram
para vir aos meus ouvidos, tomei tanta doçura que como inebriado deixei a
multidão e me dirigi a um lugar solitário do meu quarto, onde me pus a pensar
naquela cortesíssima. E, pensando, me sobreveio um sono suave, no qual tive uma visão maravilhosa: parecia-me
ver no quarto uma névoa da côr do fogo, dentro da qual eu discernia a figura
de um senhor cujo aspecto causava medo a quem a olhasse; e me parecia tão alegre de si
mesmo que era admirável; e nas suas palavras dizia muitas cousas, das quais eu
não entendia senão poucas; entre as quais entendia estas: Ego dominus tuus. Nos
seus braços, parecia-me ver uma pessoa dormir nua, apenas ligeiramente envolta
num pano sangüíneo, a qual, olhando muito atentamente, conheci ser a mulher da
saudação, que no dia anterior eu me dignara de saudar. E numa das mãos me
parecia segurar uma cousa, que ardia toda; e parecia dizer-me estas palavras: Vide
cor tuum. E, quando ele parava um pouco, parecia-me que despertava aquela
que dormia, e tanto se esforçava em seu engenho que a fazia comer o que lhe
ardia na mão e que ela comia receosa. Depois disso, pouco demorou para que a
sua alegria se convertesse em amaríssimo pranto; e, assim chorando, recolheu a
mulher nos braços, e com ela me pareceu que ia para o céu; por isso, eu padeci tão
grande angústia que o meu leve sono não pude sustentar, mas se interrompeu e
fui despertado. Imediatamente comecei a pensar, e verifiquei que a hora na
qual tivera essa visão fora a quarta da noite; assim, aparece manifestamente
que foi a primeira hora das nove últimas horas da noite. Pensando eu no que me
aparecera, propus-me fazê-lo sentir a muitos, os quais eram famosos trovadores
naquele tempo: e, como fosse cousa que eu já tivesse visto por mim mesmo a
arte de dizer palavras com rima, propus-me fazer um soneto, no qual saudasse
todos os fiéis de Amor; e, pedindo-lhes que julgassem a minha visão,
escrevi-lhes o que vira no meu sono. E comecei então este soneto:
Em cada alma gentil, presa de ardor,
Que tomar ciência do dizer presente,
Pra que me escreva parecer urgente,
Saúdo o seu senhor, isto é Amor.
Eram três horas e um fatal fulgor
Havia em cada estrela resplendente,
Quando surgiu Amor subitamente,
Cuja essência lembrar me dá horror.
Alegre Amor me parecia, tendo
Meu coração; e nos seus braços ia,
Envolta, minha amada adormecendo.
Quando a acordou, do coração ardendo,
Medrosa, humildemente ela comia;
E êle chorava, desaparecendo.
Esse soneto
se divide em duas partes: na primeira parte, saüdo e peço resposta; na
segunda, significo a quem se deve responder. A segunda começa ali: Eram
três horas.
Esse
soneto foi respondido por muitos e com diversas sentenças; entre os quais foi
respondedor aquele que eu chamo primeiro dos meus amigos (7), o
qual disse então um soneto, que começa: Viste, ao meu parecer, todo valor. E esse foi quase o princípio da amizade entre êle e mim, quando êle
soube que eu era quem aquilo lhe mandara. O verdadeiro juízo do dito sonho não foi visto então por ninguém, mas agora
é manifestíssimo aos mais simples.
IV
Dessa visão em diante, começou o meu espírito natural a ser impedido na sua operação, pois que a alma
estava toda entregue ao pensamento daquela gentilíssi-ma; por isso, eu me
tornei, pouco tempo depois, de tão frágil e débil condição que a muitos amigos
pesava o meu aspecto; e muitos, cheios de inveja, já procuravam saber de mim
o que eu queria de todo ocultar a outrem. E eu, percebendo a malvada pergunta
que me faziam, por vontade de Amor, que me comandava segundo o conselho da
razão, respondia-lhes que Amor era aquele que assim me magoara. Dizia de Amor,
pois trazia no rosto tantas de suas insígnias que isso não se podia esconder. E
quando me perguntavam: "Por quem assim te destruiu esse Amor?", eu
sorrindo os olhava, e nada lhes dizia.
V
Um dia,
aconteceu que aquela gentilíssima estava sentada em parte onde se ouviam loas à
Rainha da glória, e eu estava em lugar do qual via a minha beatitude: e, entre
ela e mim, em linha reta, estava sentada uma gentil mulher de aspecto muito
agradável, a qual me olhava repetidas vezes, maravilhando-se com o meu olhar,
que parecia a ela dirigir-se. Por isso, muitos se aperceberam do seu mirar, e
tanto nisso foi posta a mente que eu, afastando-me desse lugar, escutei dizer
atrás de mim: "Vede como tal mulher destrói a pessoa daquele"; e,
nomeando-a, eu entendi que se tratava daquela que meio fora na linha reta que
partia da gentilíssima Beatriz e terminava nos olhos meus. Então me confortei
muito, assegurando-me de que o meu segredo não fora comunicado naquele dia a
outrem por minha vista. E imediatamente pensei em fazer da gentil mulher escudo
da verdade; e tanto o mostrei em pouco tempo que o meu segredo foi julgado
sabido pelas mais pessoas que de mim falavam. Por meio dessa mulher me
dissimulei alguns anos e meses; e, para tornar mais crentes os outros, fiz
para ela umas rimas que não é meu intento escrever aqui, senão quando ocorra
tratar da gentilíssima Beatriz; e, por isso, as deixarei todas, salvo alguma
cousa que escreverei por me parecer em louvor dela.
VI
Digo que,
nesse tempo em que essa mulher era escudo de tanto amor quanto o da minha
parte, me veio uma vontade de tentar recordar o nome daquela gentilíssima e
acompanhá-lo de muitos nomes de mulheres, e especialmente do nome dessa gentil mulher. E
tomei os nomes das sessenta mais belas mulheres da cidade onde minha dama foi
posta pelo altíssimo Senhor, e compus uma epístola sob a forma de serventese (8),
a qual não escreverei: e disso não teria feito menção, senão para dizer aquilo
que, compondo-a, maravilhosamente aconteceu, isto é, que em nenhum outro número
pôde o nome da minha dama estar, senão sobre o nove, entre os nomes dessas
mulheres.
VII
A
mulher por meio da qual eu tanto tempo ocultara a minha vontade (9)
conveio em afastar-se da supradita cidade e dirigir-se para país muito
longínquo: de modo que eu, quase desanimado da bela defesa que se me desfalecera,
muito me desconfortei, mais do que eu mesmo teria antes acreditado. E pensando
que, se de sua partida não falasse um pouco dolorosamente, as pessoas mui
depressa se aperceberiam do que eu escondia, propus-me fazer uma lamentação
num soneto, o qual escreverei, por isso que a minha dama foi causa imediata de
certas palavras que no soneto estão, assim como aparece a quem o entende. E então
disse este soneto (10):
Vós, que a via de Amor vejo seguir,
Procurai distinguir
Se há dor alguma, quanto a minha, grave;
E consenti apenas em me ouvir,
Para então decidir
Se não sou da desgraça abrigo e chave.
Amor, não pelo bem que em mim se vir,
Mas que nele existir,
Pôs-me em vida tão doce e tão suave
Que escutei, muitas vezes, proferir:
"Por que o vejo sempre ir,
Contente, sem tristeza que o agrave?"
Agora já perdi minha ousadia,
Que somente em amor tinha razão;
Infeliz dizer quão
Permaneço, difícil me seria.
Assim, por ser me esforço1 como o são
Os que escondem a sua vilania:
Sou por fora alegria
E por dentro amargor no coração.
Esse soneto tem duas partes
principais: na primeira, entendo chamar os fiéis de Amor por aquelas palavras
do profeta Jeremias que dizem: O vos omnes qui transítis per viam, attendite
et videte si est dolor sicut
dolor meus, e pedir que consintam em ouvir-me; na segunda, narro
onde Amor me pusera, com outra intenção que as extremas partes do soneto não
mostram, e digo o que perdi. A segunda
parte começa ali: Amor, não pelo bem.
VIII
Após a
partida da gentil mulher, aprouve ao Senhor dos Anjos chamar à sua glória uma
mulher jovem e de mui gentil aspecto, que
foi muito querida na supradita cidade; cujo corpo eu vi jazer sem alma
no meio de muitas mulheres, que choravam piedosamente Então, recordando-me de
que já a vira fazer companhia àquela gentilíssima, não pude conter as
lágrimas; ao contrário, chorando, propus-me dizer umas palavras sobre a sua
morte, em galardão de que algumas vezes a vira com a minha dama. E sobre isso
insinuei alguma cousa na última parte das palavras que a respeito disse, assim
como aparece manifestamente a quem o entende. E disse então estes dois sonetos,
dos quais começa o primeiro: Chorai,
amantes; e o segundo: Morte vilã.
Chorai, amantes, pois que chora Amor
Ouvindo qual razão o faz chorar.
Amor ouve mulheres a clamar,
Pelos olhos mostrando amarga dor,
Porque a morte vilã, causando horror,
Pôs em peito gentil seu trabalhar,
Gastando o que no mundo é de louvar,
Numa gentil mulher, mais do que o honor.
Tão profunda de Amor foi a amargura
Que lamentar-se o vi de forma vera
Sobre a pálida imagem atraente;
E olhava para o céu constantemente,
Onde aquela alma abrigo já tivera,
Que dona foi de tanta formosura.
Esse
primeiro soneto se divide em três partes; na primeira, chamo e solicito os
fiéis de Amor a chorar, e digo que o senhor dêles chora; e digo ouvindo qual
razão o faz chorar, para que se disponham mais a escutar-me; na segunda,
narro a causa; na terceira, falo de honras que Amor prestou a essa mulher. A
segunda parte começa ali: Amor ouve; a terceira, ali: Tão profunda.
Morte vilã, da piedade inimiga
E da dor mãe antiga,
Juízo incontrastável e gravoso;
Deste matéria ao peito doloroso,
E disso estou queixoso;
De te exprobrar a língua se fatiga.
Se de graça eu te quero ver mendiga (11),
É preciso que diga
De quanto erro é teu erro criminoso;
Não que ele à gente seja misterioso,
Mas p’ra ver desgostoso
Quem doravante o amor louve e bendiga.
Do século (12) apartaste a cortesia
E o que na mulher vale por virtude:
Em gaia juventude
Destruíste a amorável alegria.
Dizer não quero qual mulher seria
Senão por dotes a que o mundo alude.
Quem não tiver saúde (13)
Jamais espere a sua companhia.
Esse
soneto se divide em quatro partes: na primeira parte, chamo a morte por certos
nomes que lhe são próprios; na segunda, falando a ela, digo a causa por que me
movo a exprobrá-la; na terceira, a vitupero; na quarta, passo a falar de pessoa
indefinida, se bem que no meu entendimento esteja definida. A segunda começa
ali: Deste matéria; a terceira, ali: Se de graça; a quarta, ali: Quem
não tiver saúde.
IX
Alguns
dias depois da morte dessa dama, aconteceu cousa pela qual me conveio partir da
supradita cidade e ir em direção ao lugar onde estava a gentil mulher que
fora minha defesa, embora nem tão longínquo fosse o termo do meu andar. E, se
bem que estivesse visivelmente em companhia
de muitos, o andar me desgostava tanto que quase os suspiros não podiam
desafogar a angústia que o coração sentia por me afastar da minha beatitude.
E, então, o dulcíssimo senhor que me dominava pela virtude da gentilíssima
dama, na minha imaginação apareceu como peregrino ligeiramente vestido de
panos vis. Parecia-me desanimado e olhava a terra, salvo quando, às vezes, os
seus olhos se volviam para um rio belo e claríssimo, corrente ao longo do
caminho em que eu estava. Pareceu-me que Amor me chamava e me dizia estas
palavras: "Venho de parte da mulher que foi tua longa defesa, e sei que o
seu regresso não se dará tão breve; e, por isso, o coração que eu te fazia ter
com êle, eu o tenho comigo, e o levo à mulher que será tua guarda, como a outra
o era". E nomeou-ma pelo nome, de modo que a conheci bem. "Mas,
todavia, dessas palavras que eu te disse, se alguma cousa a respeito disseres,
dize-as de modo que por elas não se discirna o simulado amor que mostraste a
ela e que te convírá mostrar a outros". E, ditas essas palavras,
desapareceu essa minha imaginação subitamente, pela grandíssima parte que Amor
pareceu dar-me de si; e, quase mudado na vista minha cavalguei aquele
dia muito pensativo e acompanhado de muitos suspiros. Depois desse dia,
comecei, a propósito, este soneto:
Cavalgando eu seguia o meu destino,
Queixoso do trajeto que fazia,
Quando encontrei Amor em meio à via,
Com hábito vulgar de peregrino.
De aspecto parecia-me mofino,
Como houvesse perdido senhoria;
E suspirando a meditar seguia,
Cabisbaixo, sem de outrem dar-se tino.
Quando me viu, chamou-me pelo nome,
E disse: "Eu venho de longínqua parte,
Onde o teu coração deixei viver.
Levo-o, agora, a servir novo prazer."
Então, dele tomei tão grande parte
Que sem que eu visse, se despede e some.
Esse soneto tem três partes: na primeira
parte, digo como encontrei Amor, e quem me parecia; na segunda, digo o que
êle me disse, se bem que não completamente, por temor de descobrir o meu
segredo; na terceira, digo como me desapareceu.
A segunda começa ali: Quando me viu; a terceira: Então, dele tomei.
X
Após
a minha volta, pus-me a procurar a mulher que o meu senhor me nomeara no
caminho dos suspiros; e, para que o meu falar seja mais breve, digo que em
pouco tempo a fiz minha defesa, de tal maneira que muita gente falava disso
além dos termos da cortesia; o que muitas vezes me pesava duramente. E, por isso,
isto é, por causa da excessiva murmuração que parecia me infamar de vicioso,
aquela gentilíssima, que foi destruidora de todos os vícios e rainha das virtudes,
passando por certo lugar, negou-me a sua dulcíssima saudação, na qual estava
toda a minha beatitude. E, saindo um pouco do propósito presente, quero dar a
entender aquilo que o seu saudar em mim virtuosamente operava.
XI
Digo
que, quando ela aparecia em alguma parte, pela esperança da admirável saudação,
nenhum inimigo me ficava; antes me atingia uma chama de caridade, que fazia
perdoar a quem quer que me tivesse ofendido; e quem então me tivesse
perguntado alguma cousa, a minha resposta teria sido somente "Amor", com o rosto
vestido de humildade. E, quando ela ia saudar-me, um espírito de amor,
destruindo todos os outros espíritos sensitivos, lançava fora os débeis espíritos
visuais, e dizia-lhes: "Ide honrar vossa amada"; e ficava no lugar
deles. E quem tivesse querido conhecer Amor, fazê-lo podia mirando o tremor
dos meus olhos. E, quando a gentilíssima salvação saudava, não que Amor fosse
meio que pudesse obumbrar-me a irresistível beatitude, mas quase por excesso
de doçura, se tornava tal que o meu corpo, que então estava todo sob o seu
governo, muitas vezes se movia como cousa grave inanimada. Assim, aparece
manifestamente que, nas suas saudações, habitava a minha beatitude, a qual
muitas vezes passava e excedia a minha capacidade.
XII
Agora,
tornando ao assunto, digo que, depois que a minha beatitude me foi negada, me
atingiu tanta dor que, afastando-me das gentes, em solitária parte fui banhar a
terra de amaríssimas lágrimas; e, depois que um pouco me aliviou esse lagrimar,
fui para o meu quarto, onde podia lamentar-me sem ser ouvido. E ali, clamando
misericórdia à dama da cortesia, e dizendo "Amor, ajuda o teu fiel",
adormeci como um menino batido que chora. Ocorreu, quase no meio do meu dormir,
que me pareceu ver no quarto, junto a mim, sentar-se um jovem vestido de
branquíssimas vestes e de aspecto muito pensativo, que me fitava onde eu jazia;
e, quando me havia olhado um pouco, parecia-me que suspirando me chamava e me
dizia estas palavras: Fili mi, tempus est ut praetermiítantur simulacra
nostra (13–A). Então me pareceu que o conhecia; pois
me chamava como muitas vezes nos meus sonhos me havia já chamado; e,
observando-o, pareceu-me que chorava piedosamente, e parecia esperar de mim
alguma palavra; então, animando-me, comecei a falar com ele: "Senhor da nobreza,
por que choras tu?" E êle me disse estas palavras: Ego tanquam centrum
circuli, cui simili modo se habent circumferentics partes; tu autem non sic (18–B).
Então, pensando em suas palavras, me pareceu que havia falado muito
obscuramente, de modo que me esforcei por falar e lhe disse estas palavras:
"Que é isso, senhor, de que me falas com tanta obscuridade?" E êle me
disse em palavras vulgares (14): "Não perguntes mais do que
útil te seja". E, por isso, comecei a falar com êle sobre a saudação que me
foi negada, e perguntei-lhe a causa; ao que desta maneira por êle me foi
respondido: "A nossa Beatriz ouviu, de certas pessoas que de ti falavam,
que a mulher que te nomeei no caminho dos suspiros recebeu de ti um
aborrecimento; e, por isso, essa gentilíssima, que é contrária a todos os
aborrecimentos, não se dignou de saudar a tua pessoa, temendo fosse
fastidiosa. Por isso, como seja fato que, na verdade, ela conhece um pouco do
teu segredo por longa consuetude, quero que digas alguns versos nos quais compreendas a força que tenho sobre ti graças
a ela, e como imediatamente foste seu desde a tua infância. E disso pede
testemunho aquele que o sabe, e, como rogas, êle que o diga: e eu, que sou
este, voluntariamente lhe falarei disso; e assim saberá ela a tua vontade, e,
sabendo-a, conhecerá as palavras dos enganados. Faze que esses versos sejam
quase um meio, de modo que não lhe fales diretamente, o que não convém; e não
os mandes ao destino sem mim, a fim de que possam ser entendidos por ela, mas
faze-os adornar de suave harmonia, na qual estarei todas as vezes que
fôr mister". E, ditas essas palavras, assim desapareceu, e o meu sono foi
interrompido. Por isso, recordando-me, verifiquei que essa visão me aparecera
na nona hora do dia; e, antes de sair do quarto, propus-me fazer uma balada,
na qual executasse o que o meu senhor me havia imposto; e fiz, pois, esta
balada:
Balada, eu quero que, encontrando Amor,
Com êle vás perante minha dama,
Para que minha escusa, que rantares,
Junto com ela o meu senhor comente,
O teu modo, balada, é tão cortês
Que até sem companhia
Tu poderias ir a toda parte;
Mas, se queres seguir com. segurança,
Procura Amor primeiro,
Que não convém, talvez, sem êle andar;
Porquanto aquela que te deve ouvir,
Segundo creio, está comigo irada:
Se a sua companhia dispensasses,
Bem poderia ver-te com desdém.
Com doce som, estando já com êle,
Começa
estas palavras,
Após
piedade haveres implorado:
"Senhora,
aquele que me manda a vós,
Se
vos apraz, deseja
Que
por mim seja exposta sua escusa.
Eis
Amor, que por vossa formosura
Quis
fazer que êle assim mudasse a vista;
E,
como olhar uma outra o tenha feito,
Pensais
tenha mudado o coração".
Dize-lhe mais: "Senhora, êle tem sido De tão firmada fé
Que
em vos servir emprega toda idéia:
Cedo
foi vosso e nunca esmoreceu".
Se
ela não te der crédito,
Dize-lhe
que interrogue Amor, que sabe:
Com
humilde pede-lhe, depois,
Que, se o perdão
lhe causa algum desgosto,
Por mensageiro
ordene-me que morra,
E se verá com zelo
obedecer.
E dize a Amor, que é chave da piedade,
Quando te despedires,
Que lhe mostre ser justa a minha causa:
"Por graça desta música suave,
Fica ainda com ela,
E do seu servo o que desejas pede;
E, se ela, por teu rogo, lhe perdoa,
Que um belo rosto lhe anuncie paz."
Gentil balada minha, se quiseres,
Parte quando julgares mais honroso.
Essa
balada em três partes se divide: na primeira, digo-lhe aonde deve ir, e
conforto-a para que vá mais seguro, e digo
que companhia lhe convém, se quer seguramente andar e sem perigo algum;
na segunda, digo o que a ela pertence fazer entender; na terceira, permito-lhe
que vá quando queira, recomendando-a aos braços da Fortuna. A segunda parte
começa ali: Com doce som; a terceira, ali: Gentil balada.
Poderia já
alguém objetar-me que não sabe a quem seja dirigido o meu falar em segunda
pessoa, pois que a balada não é outra senão essas palavras que falo; e, por
isso, digo que essa dúvida eu a entendo sol-ver
e esclarecer neste livrinho em parte ainda mais duvidosa; e então entenda
aí quem aqui duvida, ou quem aqui queira objetar-me desse modo.
XIII
Depois
da visão acima descrita, já tendo dito as palavras que Amor me havia imposto
que dissesse, muitos e diversos pensamentos começaram a me combater e a
tentar, cada um quase indefensàvelmente; entre os quais pensamentos, quatro me
pareciam perturbar mais o repouso da vida. Um dos quais era este: boa é a
senhoria de Amor, pois desvia o entendimento do seu fiel de todas as cousas
vis. O outro era este: não é boa a senhoria de Amor, pois que, quanto mais fé o
seu fiel lhe tem, tanto mais graves e dolorosos obstáculos deve vencer. O outro
era este: o nome de Amor é tão doce de ouvir que impossível me parece que a sua
ação não seja nas mais cousas também doce, por isso que é fato que os nomes
seguem as nomeadas cousas, assim como está escrito: Nomina sunt consequentia
rerum. O quarto era este: a mulher por quem Amor te prende assim não é como
as outras mulheres, que ligeiramente se mova do seu coração (15). E
cada um me combatia tanto que me fazia estar quase como aquele que não sabe por
que via tome o seu caminho, e que quer ir e não sabe aonde vá; e, se tentava
procurar uma via comum àqueles, isto é, na qual todos concordassem, essa via
era muito inimiga para comigo, isto é, de chamar e de meter-me nos braços da
Piedade. E, nesse estado demorando, me veio vontade de escrever, a respeito, palavras
rimadas; e a respeito disse, então, este soneto:
Os pensamentos meus falam de Amor
E têm em si tão grande variedade,
Que um me faz desejar-lhe potestade,
Outro — louco — discute o seu valor,
Outro, neste esperar, me traz dulçor,
Outro chorar me faz sem caridade;
E só concordam em pedir piedade,
Meu coração enchendo de pavor.
Não sei, por isso, a que matéria ater-me:
Quero falar, não sei o que falar;
Assim me encontro em meio de discórdia.
E, se desejo procurar concórdia,
Minha inimiga me é mister chamar,
Dona Piedade, para defender-me.
Esse soneto em quatro partes se
pode dividir: na primeira, digo e suponho que todos os meus pensamentos são de
Amor; na segunda, digo que são diversos, e narro a sua diversidade; na terceira
digo em que todos parecem concordar; na quarta, digo que, querendo falar de
Amor, não sei de que parte tome matéria, e, se a quero tomar de todas, devo
chamar minha inimiga, dona Piedade; e digo "dona" quase por
desdenhoso modo de falar. A segunda parte começa ali: E têm em si; a
terceira, ali: E só concordam; a quarta, ali: Não sei, por isso.
XIV
Após
a batalha dos diversos pensamentos, aconteceu que aquela gentilíssima veio à
parte onde muitas damas gentis estavam reunidas; à qual parte fui conduzido
por pessoa amiga, que julgava causar-me grande prazer conduzindo-me aonde
tantas mulheres mostravam a sua beleza. Por isso, quase não sabendo para que
era conduzido, e fiando-me na pessoa que conduzira um seu amigo quase ao
extremo da vida (16), eu lhe disse: "Por que viemos ter a estas
mulheres?’ Então, ele me disse: "Para fazer de modo que sejam servidas
dignamente". E a verdade é que ali estavam reunidas na companhia de uma
gentil mulher que des-posada fora nesse dia; e, por isso, segundo o costume da
supradita cidade, era mister que em sua companhia se sentassem à primeira mesa
posta na mansão do seu novel esposo. De maneira que eu, julgando causar prazer
a esse amigo, propus-me estar ao serviço das damas em sua companhia. E, ao fim
do meu propósito, me pareceu sentir um admirável tremor começar na parte
esquerda do meu peito e estender-se de súbito por todas as partes do meu
corpo. Então, digo que pousei a minha pessoa, dissimuladamente, em uma pintura
que circundava a mansão; e, temendo que os outros se apercebessem do meu
tremor, levantei os olhos e, fitando as mulheres, vi entre elas a gentilíssima
Beatriz. Então, foram tão destruídos os meus espíritos, pela força que Amor tomou
ao ver-se em tanta proximidade da gentilissima dama, que não restaram com vida
mais que os espíritos visuais; e ainda estes ficaram fora dos seus instrumentos (17), pois Amor
queria estar no seu nobilíssimo lugar para ver a admirável mulher. E, se
bem que eu estivesse outro que não antes, muito me doía por esses
espiritozinhos, que se lamentavam forte e dizia: "Se êle, com o seu
fulgor, não nos pusesse assim fora do nosso lugar, nós poderíamos estar a ver
a maravilha dessa mulher, assim como estão os outros nossos pares (18)." Digo que muitas dessas mulheres, apercebendo-se
da minha transfiguração, começaram a maravilhar-se
e, conversando, escarneciam de mim com aquela gentilíssima: por isso, o
enganado amigo, de boa fé, me tomou pela mão e, tirando-me fora da vista daquelas
mulheres, perguntou-me o que eu tinha. Então, tendo repousado um pouco, e,
ressurgidos os meus espíritos mortos, e retornados os expulsos à suas possessões,
eu disse ao meu amigo estas palavras: "Tive os pés naquela parte da vida
além da qual não se pode ir com a intenção de retornar". E, afastando-me
dele, voltei para o quarto das lágrimas; no qual, chorando e envergonhado,
disse comigo mesmo: "Se essa mulher soubesse a minha condição, não creio
que assim escarnecesse a minha pessoa; antes creio que muita piedade lhe
viria". E, nesse pranto estando, propus-me dizer palavras nas quais,
falando-lhe, significasse o motivo da minha transfiguração e dissesse que sei
bem que não é conhecido e que, se o fosse, creio que a piedade atingiria a
outrem (19); e propus-me dizê-las desejando que chegassem porventura
à sua audição (20). E, então, disse este soneto:
Com outras damas, vendo-me a figura.
De mim zombais, que para ver-vos vim;
E porque mudo não pensais, enfim,
Quando contemplo a vossa formosura
Se o soubésseis, seria ação bem dura
Manter a usada prova contra mim,
Que Amor, ao ver-me junto a vós, assim,
Tanta ousadia toma e tão segura,
Que ataca os meus
espíritos medrosos,
Exterminando uns e outros repelindo,
Até ficar sozinho a vos olhar:
Pois sinto em outrem me transfigurar,
Porém não tanto que não fique ouvindo
Dos expulsos os gritos tormentosos.
Esse soneto
eu não divido em partes, pois a divisão não se faz senão para abrir a sentença
da cousa dividida; por isso, sendo cousa assaz manifesta em virtude
da causa exposta, não se faz mister a divisão. Verdade é que, entre as
palavras onde se manifesta a causa desse soneto, se escrevem dubitosas
palavras quando digo que Amor mata todos os meus espíritos, e os visuais
permanecem com vida, embora fora dos seus instrumentos. E essa dúvida é
impossível de solver por quem não seja em semelhante grau fiel de Amor; e, para
os que o são, é manifesto o que solveria as dubitosas palavras: e, destarte, não
me convém esclarecer tal dúvida, por isso
que o meu esclarecimento seria inútil ou demasiado.
XV
Após a
singular transfiguração, veio-me um pensamento forte, que, longe de se afastar
de mim, continuamente me repreendia, tendo comigo este diálogo: "Se tomas
tão escarnecível aspecto quando estás perto dessa mulher, por que ainda
procuras vê-la? Posto que fosses solicitado por ela, que terias que responder,
supondo que tivesses livre cada virtude tua, à medida que lhe
respondesses?" E a esse respondeu outro humilde pensamento, que disse:
"Se eu não perdesse as minhas virtudes e fosse tão livre que lhe pudesse
responder, dir-lhe-ia que, tão logo imagino a sua admirável beleza, tão logo
me vem u,m desejo de vê-la, o qual é tão forte que mata e destrói aquilo que,
na minha memória, pudesse erguer-se contra êle: e, por isso, os desgostos
passados não me impedem de procurar a visão dela". Destarte, movido por
tais pensamentos, propus-me dizer certas palavras nas quais, escusando-me
junto a ela por motivo de tais repreensões, pusesse também um pouco daquilo que
me sucede diante dela; e disse este soneto:
Em minha mente morre todo ardor,
Quando, formosa jóia, vos vou ver;
E, quando me aproximo, escuto Amor,
Que diz: "Foge, se temes perecer."
Do coração o rosto mostra a côr,
A ponto de sentir-me esmorecer;
E, pela embriaguez de tal tremor,
"Morre, morre!" — ouço as pedras me dizer.
Decerto peca quem, então me vendo,
Minh’alma sem alento não conforta,
Ao menos pena demonstrando ter,
Ante o amargor que estais escarnecendo
E que se estampa na aparência morta
Dos olhos que desejam só morrer.
Esse soneto se divide em duas partes: na primeira,
digo a causa por que, não’ me privo de ir perante essa mulher; na segunda, digo o que me acontece por ir à presença dela;
esta parte começa ali: E, quando me aproximo. E essa segunda parte
também se divide em cinco, segundo cinco diversas narrações: na primeira, digo
o que Amor, aconselhado pela razão, me diz quando estou perto dela; na
segunda, manifesto o estado do coração pela expressão do rosto; na terceira,
digo como toda segurança se me desfalece; na quarta, digo que peca aquele que
não demonstra ter piedade de mim, por isso que poderia ser-me de algum
conforto; na ultima, digo por que outros deveriam ter piedade, e isso por
causa do lastimável aspecto que tomam os meus olhos; o qual aspecto lastimável
é destruído e não aparece aos outros, em virtude dessa mulher que conduz a
procedimento semelhante aqueles que talvez percebessem essa amargura. A
segunda parte começa ali: Do coração o rosto; a terceira, ali: E,
peta embriaguez; a quarta: Decerto peca; a quinta: Ante o
amargor.
XVI
Depois de
haver dito esse soneto, tomou-me o desejo de dizer também palavras nas quais
dissesse mais quatro cousas que me parecia não terem sido ainda manifestadas
por mim. A primeira das quais é que muitas vezes me queixei quando a memória
levava a fantasia a imaginar em quem Amor me transformava.’ A segunda é que
Amor, freqüentes vezes, de súbito me assaltava e tão fortemente que dentro de
mim não ficava com vida senão um pensamento que falava dessa mulher. A
terceira é que, quando essa batalha de Amor assim se travava em mim, eu partia,
quase inteiramente descorado, para ver essa mulher, julgando que a visão dela
me defendesse dessa batalha e esquecendo o que me sucedia ao aproximar-me de
tanta gentileza. A quarta é de como tal visão não somente não me defendia,
mas, afinal, derrotava a minha pouca vida. E, por isso, disse este soneto:
Muitas vezes invadem minha mente
As condições fatais que Amor me cede;
E o sinto tanto que freqüentemente
Digo: "Pobre! Tal cousa a alguém
sucede?"
Amor me vem tão subitaneamente
Que a vida de mim quase se despede:
Vivo resta um espírito somente,
E resta porque nele tendes sede.
Depois me esforço e quero me suster;
E assim desfigurado, sem valor,
Vou ver-vos, esperando me curar.
E se levanto os olhos para ver,
No coração começa-me um tremor
Que faz a alma dos pulsos me escapar.
Esse
soneto se divide em quatro partes, segundo as quatro cousas que nele são
narradas; e, como são explicadas acima, não me detenho senão para distinguir
as partes pelos seus começos. Por isso, digo que a segunda parte começa ali: Amor;
a terceira, ali: Depois me esforço; a quarta, ali: E se
levanto.
XVII
Após
ter dito esses três sonetos, nos quais falei a essa mulher, pois foram
narrativas de quase todo o meu estado, julgando calar-me e não falar mais,
porquanto me pareceu haver manifestado bastante sobre mim mesmo, embora sempre
evitasse dizer-lhe isso, achei conveniente retomar matéria nova e mais nobre
do que a passada. E, de vez que a causa da nova matéria é agradável de
ouvír-se, eu a direi tão brevemente quanto possível.
XVIII
Como
fosse fato que, pelo meu aspecto, muitas pessoas tinham compreendido o segredo
do meu coração, certas mulheres, que se haviam reunido para entre si se
deleitarem, conheciam bem o meu coração, pois cada uma estivera em muitas das
minhas derrotas; e, passando perto delas, como que tangido pela sorte, fui chamado
por uma dessas gentis mulheres. A mulher que me havia chamado era dona de muito
amável falar; por isso, quando cheguei diante delas e verifiquei que minha
gentilíssima dama não estava, tranqüilizei-me e saudando-as, perguntei o que
lhes aprazia. As mulheres eram muitas, entre as quais havia algumas que se
riam. Outras havia que me olhavam, esperando o que eu diria. Outras havia que
conversavam. Uma das quais, volvendo os
olhos para mim e chamando-me pelo nome, disse estas palavras: "Para
que fim amas tu essa mulher, se não podes sustentar a sua presença?
Dize-no-lo, pois certamente o fim de tal amor há de ser estranhíssimo,".
E, depois de haver dito essas palavras, não somente ela, mas todas as outras
começaram a dar mostras de que esperavam a minha resposta. Então, eu lhes disse
estas palavras: "Senhoras, o fim do meu amor já foi a saudação dessa
mulher, que talvez saibais quem seja; nessa saudação residia a beatitude,
porque era o fim de todos os meus desejos. Mas, desde que lhe aprouve negar-ma,
o meu senhor Amor, por sua mercê, pôs toda a minha beatitude naquilo que não
me pode faltar". Então, essas mulheres começaram a falar entre si; e,
assim como às vezes vemos cair a água mesclada de bela neve, assim me parecia
ouvir as suas palavras saírem mescladas de suspiros. E, depois de um pouco
haverem falado entre si, ainda me disse aquela mulher, que antes havia falado
comigo, estas palavras: "Nós te rogamos que nos diga onde se encontra
essa tua beatitude". E eu, respondendo-lhe, disse apenas: "Nas
palavras que louvam a minha dama". Então, respondeu-me aquela que me
falava: "Se nos dissesses a verdade, as palavras que nos disseste ao notificar
a tua condição, tu as terias composto com outra intenção". Por isso,
pensando nessas palavras, quase envergonhado, me afastei delas, e ia dizendo
comigo mesmo: "Desde que há tanta beatitude nas palavras que louvam a
minha dama, por que outro tem sido o meu falar?" Propus-me, então, tomar
por matéria do meu falar, de uma vez para sempre, aquilo que fosse louvor dessa
gentilíssima; e, pensando muito nisso, pareceu-me haver empreendido tarefa alta
demais para mim, de maneira que não ousava começar; e assim demorei uns dias,
com desejo de dizer e medo de começar.
XIX
Sucedeu
depois que, passando por um caminho, ao longo do qual seguia um rio muito
claro, me veio tanta vontade de falar que comecei a pensar no modo de o fazer;
e pensei que não convinha falar dela senão a mulheres, em segunda pessoa, e
não a toda mulher, mas somente às que são gentis e não apenas fêmeas. Digo que,
então, minha boca falou como que movida por si mesma, e disse: Gentis
mulheres que entendeis de amor. Essas palavras eu as guardei na memória com
grande júbilo, pensando tomá-las para meu começo; por isso, voltando à
supradita cidade e pensando alguns dias, iniciei uma canção com esse começo,
ordenada como se verá abaixo, em sua divisão. A canção começa assim:
Gentis mulheres que entendeis de amor,
Eu quero vos falar de minha dama,
Não que o louvor entenda completar-lhe.
Mas discorrer, para expandir a mente.
Digo que, quando o seu valor medito,
Amor tão doce se me faz sentir,
Que, se não fora me faltar a audácia,
Encantaria a gente declamando:
E eu não quero falar assim tão alto
Que me tornasse, por temor, cobarde;
Mas tratarei do estado seu gentil,
Num tom bem simples, a respeito dela.
Convosco só, mulheres amorosas,
Que não é cousa que se fale a outrem.
Um anjo clama na razão divina,
E diz: "Senhor, entende-se, no mundo,
Que seja maravilha o que provém
De uma alma tal que até no céu resplande."
E o céu, que não possui outro defeito
Que
o de não tê-la, ao seu senhor a pede,
E
cada santo grita por mercê.
Só
Piedade defende nossa parte,
Que
fala Deus, pensando em minha amada:
"Diletos
meus, sofrei agora em paz
Que
o vosso enleio esteja, como quero,
Onde
alguém vive que perdê-la teme
E
que dirá no inferno: "Oh malnascidos,
Eu
vi a esperança dos aventurados."
Minha
amada deseja-se no céu:
Quero,
pois, que saibais sua virtude.
Quem
queira gentil dama parecer,
Com
ela à rua vá, que, quando passa,
Coloca
Amor em peito vil um gelo,
Pelo
qual todo sentimento morre;
E
quem à vista sua resistisse
Se
tornaria nobre ou morreria.
E,
quando encontra alguém que seja digno
De
olhá-la, esse a virtude lhe conhece,
Vendo o que lhe
concede salvação
E o torna tão
humil que olvida ofensas:
E
Deus, por maior graça, concedeu-lhe
Que
não acabe mal quem lhe falou.
Dela
pergunta Amor: "Cousa mortal
Como ser pode tão ornada e pura!"
E, após a contemplar, jura consigo
Que Deus fazer entenda maravilha.
Tem ela a côr das perlas, como assenta
À mulher, e não fora de medida;
Ela é quanto bem pode a natureza;
Por seu exemplo o belo se avalia.
E dos seus olhos, quando acaso os move,
Partem de amor espíritos flamantes
Que, os olhos penetrando a quem a mire,
Dentro do peito o coração alcançam:
Vedes Amor pintado no seu rosto,
Onde ninguém suporta olhá-la fixo.
Canção, eu sei que tu falando irás
A mil mulheres quando eu te lançar.
Quero, pois, te advertir, pois te eduquei
Como filha de Amor, jovem e simples,
Que digas, suplicando, onde chegares:
"Ensinai-me o caminho, que me mandam
A quem de cuja loa me adornaram."
E, não querendo agir com leviandade,
Não fiques onde houver gente vilã;
Empenha-te, se podes, em ser franca
Só com mulheres ou varões corteses,
Que te conduzirão por via fácil.
Tu acharás Amor e ela com êle;
Recomenda-me a êle como deves.
Essa canção, para que seja melhor entendida, eu a
dividirei mais artificiosamente do que as outras cousas acima. Assim, preliminarmente, eu a divido em três partes: a
primeira parte é proêmio das palavras seguintes: a segunda trata da sua
intenção; a terceira é quase uma serviçal das palavras precedentes. A segunda
começa ali: Um anjo clama; a terceira, ali: Canção, eu sei que. A
primeira parte divide-se em quatro: na primeira, digo com quem desejo falar de
minha dama, e por que desejo falar; na segunda, digo o que me parece sentir em
mim mesmo quando penso no seu valor, e como falaria se não perdesse a audácia;
na terceira, digo como julgo falar dela, para não ser impedido pela cobardia;
na quarta, tornando a falar também a quem tenciono falar, digo a causa por que
5hes falo. A segunda começa ali: Digo que; a terceira, ali: E não
quero falar; a quarta: Convosco só. Depois, ao dizer: Um anjo
clama, começo a tratar dessa mulher. Divide-se essa parte em duas: na
primeira, digo o que dela se pensa no céu; na segunda, o que dela se pensa na
terra, ali: Minha amada. Essa segunda parte se divide em duas: na
primeira, falo do que se refere à nobreza da sua alma, citando algumas
das ações virtuosas que da sua alma procedem; na segunda, falo do que se refere
à nobreza do seu corpo, citando algumas de suas belezas, ali: Dela pergunta
Amor. Essa segunda parte se divide em duas: na primeira, falo de algumas
belezas que se referem a toda a sua pessoa; na segunda, falo de algumas belezas
que se referem a determinadas partes da pessoa; ali: Das seus olhos. Essa
segunda parte se divide em duas; em uma, falo dos olhos que são princípio de
amor; na segunda, falo da boca, que é fim de amor. E, para afastar daqui todo
pensamento vicioso, lembre-se quem nos lê de que está escrito acima que a
saudação dessa mulher, que era obra da sua boca, era fim dos meus desejos,
enquanto pude recebê-la. Depois, quando digo: Canção, eu sei que tu, acrescento
uma estrofe quase como auxiliar das outras, na qual digo o que desejo dessa
minha canção; e, como essa última parte seja fácil de entender, não me preocupo
com tais divisões. Digo também que, para melhor abrir o entendimento de tal
canção, conviria usai divisões mais minuciosas; todavia, quem não possui tanto
engenho que por estas não possa entendê-la, não me desgosta que ma deixe em
paz, pois certamente recearia haver comunicado a muitos a sua intenção, mesmo
somente com as divisões que foram feitas, se acontecesse que muitos pudessem
ouvi-las.
XX
Depois que
essa canção foi um tanto divulgada entre as gentes, como fosse certo que um
amigo a ouvira, veio-lhe desejo de rogar-me lhe dissesse o que é Amor, tendo
talvez, em relação a mim, e em virtude das palavras ouvidas, esperança
extremamente honrosa. Assim, pensando que, após
tratar disso, era belo tratar um pouco de Amor, e pensando que o amigo era
digno de ser servido, propus-me dizer palavras nas quais tratasse de Amor; e,
então disse este soneto:
Amor e coração são uma cousa
Tal como diz o sábio (21) em seu refrão.
E, assim, sem o outro, um existir só ousa
Como a alma racional sem a razão.
A natureza fá-los, amorosa (22),
De Amor senhor, do coração mansão,
Dentro da qual êle a dormir repousa
Por breve ou por durável estação.
Surge, então, na mulher, a formosura
A qual seduz de tal maneira o olhar,
Que o desejo no peito nasce, ardente;
E nele, às vezes, tanto tempo dura
Que o espírito de Amor faz despertar.
E assim faz na mulher o homem valente.
Esse soneto se divide em duas partes: na
primeira, falo dele, enquanto está em potência; na segunda, falo dele, quando
de potência se reduz a ação. A segunda começa ali: Surge, então. A
primeira divide-se em duas: na primeira, digo em que sujeito existe essa potência;
na segunda, como esse sujeito e essa potência são produzidos, e como uma
governa o outro como a torna à matéria. A segunda começa ali: A natureza
fá-los. Por fim, quando digo: Surge, então, digo como essa potência
se reduz a ação; e, primeiro, como se reduz a homem; depois, como se reduz a
mulher, ali: E assim faz na mulher.
XXI
Depois que tratei de Amor nas supraditas
rimas, veio-me desejo de dizer, ainda em louvor dessa gentilíssima, palavras
pelas quais mostrasse como por ela desperta esse Amor; e, como não somente
desperta onde dorme, mas onde não existe em potência, ela, agindo
miraculosamente, fá-lo chegar. E, então, eu disse este soneto:
Nos olhos leva minha amada Amor,
Porque se faz gentil o que ela mira;
Toda a gente, ao passar, p’ra a ver se vira,
E em quem saúda ao peito dá tremor,
Tal que, baixando o rosto, é só temor
E todo seu defeito então suspira:
Ante ela fogem a soberba e a ira.
Mulheres, ajudai-me, em seu louvor.
Toda doçura e pensamento humil
Quem a escuta falar no peito sente,
Sendo louvado quem primeiro a viu.
E o que parece, quando a alguém sorriu,
Não se pode dizer nem ter em mente,
Tão estranho é o milagre e tão gentil.
Esse
soneto tem três partes. Na primeira, digo como essa mulher reduz a potência à
ação, segundo a nobilissima parte dos seus olhos; na terceira, digo isso
mesmo, segundo a nobilissima parte de sua boca: e, entre essas duas partes,
existe uma partezinha, que é quase suplicante de ajuda à parte precedente e à
parte seguinte, que começa ali: Mulheres, ajudai-me. A terceira
começa ali: Toda doçura. A primeira se divide em três: na primeira digo
como tem a virtude de tornar gentil tudo aquilo que vê, o que vale dizer que
induz Amor à potência onde êle não existe; na segunda, digo como reduz Amor à
ação nos corações de todos quantos vê; na terceira, digo como, depois, opera virtuosamente em seus corações. A segunda começa
ali: Toda a gente; a terceira, ali: E em quem saüda. Depois,
quando digo: Mulheres, ajudai-me, dou a entender com quem tenho a intenção
de falar, chamando as mulheres para que me ajudem a honrar essa mulher. Depois,
quando digo: Toda doçura, digo aquilo mesmo que está dito na primeira
parte, segundo duas ações de sua boca, uma das quais é o seu duícíssimo falar,
e a outra o seu admirável sorriso; e só não digo como este último opera nos
corações alheios, porque a memória não o pode reter, nem a sua operação.
XXII
Ainda não
eram passados muitos dias, quando aprouve ao glorioso senhor, o qual nem a si
poupou a morte, que o genitor de tanta maravilha quanta se via ser a
nobilíssima Beatriz, saindo desta vida, para a glória eterna partisse
verdadeiramente. Então, como tal partida seja dolorosa para os que ficam e
foram amigos daquele que se foi; não sendo nenhuma amizade tão íntima como a
de bom pai a bom filho e de bom filho a bom pai; e, como a bondade dessa mulher
fosse em grau altíssimo, e seu pai, segundo muitos crêem e é verdade, fosse
bom em alto grau, — é manifesto que ela estivesse amarissimamente cheia de dor.
E como, na supradita cidade, mulheres com mulheres e homens com homens
costumassem reünir-se a tais tristezas, muitas mulheres se reuniram ali, onde
Beatriz chorava de inspirar piedade: então, vendo algumas mulheres virem de
onde ela estava, ouvi-as falar dessa gentilíssima, e de como se lamentava;
dentre as suas palavras, ouvi que diziam: "Certo, ela chora tanto que quem a mirasse deveria morrer de piedade."
Quando essas mulheres se afastaram, fiquei tão triste que-‘ as lágrimas, por
vezes, me banhavam o rosto, fazendo-me levar as mãos constantemente aos olhos:
e, se não fosse esperar ouvir ainda falar a seu respeito, pois estava em
lugar por onde passava a maior parte daquelas mulheres que se afastavam dela,
ter-me-ia ocultado incontinênti, pois as lágrimas me haviam assaltado. Permaneci,
pois, no mesmo lugar, e outras mulheres passaram perto de mim, dizendo entre
si estas palavras: "Quem de nós pode ser jamais alegre, se ouvimos essa
mulher falar tão piedosamente?" Atrás dessas, vinham outras mulheres que
diziam: "Esse que aí está chora, nem mais nem menos, como se a tivesse
visto, como nós a vimos". Outras, após, diziam de mim: "Vede aquele,
que não parece o mesmo, tal se tornou.’ E assim, ao passarem
essas mulheres, ouvi palavras a respeito dela e de mim, do modo que ficou dito.
Mais tarde, pensando, propus-me fazer uns versos, pois tinha motivo digno para
fazê-los, nos quais resumisse tudo o que ouvira dessas mulheres; e, como de bom
grado eu as teria interpelado, se tal não me parecesse repreensível, tomei
tanta matéria para falar como se as tivesse interrogado e elas me houvessem
respondido. E fiz dois sonetos, no primeiro dos quais pergunto do modo que
desejei perguntar; no outro, digo a resposta, tornando o que ouvira delas como
se mo tivessem dito respondendo. E começa o primeiro: Oh vós que
tendes o semblante humil; e o outro: Ês tu aquele que freqüentemente.
Oh vós que tendes o semblante humil
E os olhos baixos, demonstrando dor,
De que lugar chegais, que a vossa côr à da pidedade se tornou simil?
Vistes, acaso, uma mulher gentil
Banhar no rosto seu, de pranto, Amor?
Dizei-mo, oh vós senhoras, por favor,
Pois que vos vejo andar sem ato vil (23).
Se de tanta piedade vós chegais,
Dignai-vos de ficar comigo um quanto,
E o que lhe sucedeu não me encubrais.
Eu vejo os olhos vossos que têm pranto,
E tão desfiguradas regressais
Que o coração me treme de ver tanto.
Esse soneto se divide em duas partes: na
primeira, chamo e pergunto a essas mulheres se vêm da casa dela, dizendo-lhes
que assim o creio, pois voltam como que mais gentis; na segunda, rogo-lhes que
me falem dela. A segunda começa ali: Se de tanta piedade.
És tu aquele que freqüentemente
De uma mulher conosco tens tratado?
És, pela voz, com êle assemelhado,
Mas de rosto pareces diferente.
E por que choras tão sentidamente
Que por outrem vens sendo lamentado?
Viste-a chorar, que, tão amargurado,
Nada consigas esconder à mente?
Deixa-nos seguir, tristes, a chorar
(Quem não nos confortasse, pecaria),
Que no seu pranto a ouvimos suspirar.
Tem tal piedade na fisionomia,
Que quem a houvesse desejado olhar,
Chorando diante dela morreria.
Esse
soneto tem quatro partes, segundo os quatro diferentes modos de falar das
mulheres a quem respondi; e, como sejam muito manifestos acima, não me
preocupo de narrar a significação das partes; por isso, eu somente as distingo.
A segunda começa ali: E porque choras; a terceira: Deixa-nos seguir;
a quarta: Tem tal piedade.
XXIII
Poucos
dias depois, sucedeu que, em uma parte da minha pessoa, me veio uma dolorosa
enfermidade, pela qual sofri continuamente, por nove dias, amarissima pena; a
qual me levou a tanta debilidade que eu era obrigado a ficar como aqueles que
não podem mover-se. Digo que, no nono dia, sentindo-me doer quase intolera
velmente, me pus a pensar em minha amada. E, já tendo pensado nela um pouco, voltei a pensar em minha debilitada
vida; e vendo quão lábil era a sua duração, ainda que sadia, comecei a
lamentar-me comigo mesmo por tanta miséria. Então, suspirando forte, disse comigo:
"Necessariamente a gentilíssima Beatriz morrerá um dia." Por isso,
veio-me tão forte perturbação que fechei os olhos e comecei a atormentar-me
como tresloucado e a imaginar desse modo; e, no começo do errar de minha
fantasia, apareceram-me certos rostos de mulheres desgrenhadas que me diziam:
"Tu também morrerás." E, depois dessas mulheres, apareceram-me
certos rostos estranhos e horríveis de serem vistos, os quais me diziam:
"Estás morto." Começando assim a errar a mínha fantasia, cheguei a um
ponto em que não sabia onde me encontrava; e me parecia ver mulheres
desgrenhadas ir chorando pela rua, assombrosamente tristes; e parecia-me ver o
sol obscurecer-se tanto que as estrelas se mostravam de côr que me fazia
julgar que choravam; e parecia-me que os pássaros, voando pelo ar, caíam mortos, e que havia grandíssimos terremotos.
E, maravilhando-me de tal fantasia e receando demasiado, imaginei que um amigo
viera dizer-me: "Ainda não sabes que a tua admirável dama partiu deste
mundo?" Pus-me, então, a chorar muito piedosamente, e não chorei somente
na imaginação, mas chorei com os olhos, banhando-me de lágrimas verdadeiras.
Imaginei olhar o céu e pareceu-me ver multidões de anjos que voltavam para o
alto e tinham à sua frente uma névoa branquíssima. Pareceu-me que esses anjos
cantavam gloriosamente e que as palavras do seu canto eram estas: Hosana in
excelsis; e outra cousa não me pareceu ouvir. Nisto, pareceu-me que o
coração, onde estava todo esse amor, me dizia: "É verdade que morta jaz a
nossa dama.’ E por isso me pareceu caminhar para ver o corpo no qual estivera
aquela alma nobilíssima e beata; e foi tão forte e enganosa visão, que cheguei
a vê-la morta; e me pareceu ver mulheres lhe cobrirem a cabeça com um véu
branco; e tinha no rosto um tal aspecto de humildade que parecia dizer:
"Estou a ver o princípio da paz.’ Nessa imaginação, tanta humildade me
veio por vê-la, que chamei a Morte’e disse: "Morte dulcíssima, vem a mim e
não sejas vilã, pois deves ser gentil, tendo estado em tal companhia. Vem a
mim, que te desejo muito; bem vês que já tenho a tua côr." E, quando
vi cumprirem-se
todos os dolorosos misteres que se usam fazer com os corpos dos mortos,
pareceu-me voltar ao meu quarto e aí olhar para o céu; e tão forte, foi a minha imaginação que, chorando, comecei a dizer com
verazes palavras: "Oh! alma belíssima, abençoado aquele que te
vê!" E, dizendo essas palavras entrecorta-das de soluços, e pedindo à
Morte que viesse a mim, uma jovem e gentil mulher que estava perto do meu leito,
julgando que minhas palavras e meu pranto fossem causados somente pela dor de
minha enfermidade, com grande pavor começou a chorar. Então, outras mulheres,
que estavam no aposento, perceberam que eu chorava, pelo pranto da jovem; e,
fazendo que ela, que era minha consangüínea muito próxima, se afastasse de mim,
vieram em minha direção para despertar-me, julgando que eu estivesse sonhando,
e disseram-me: "Não durmas mais" e "Não te desconfortes".
E, falando-me assim, cessou a minha forte fantasia no ponto em que eu ia dizer:
"Oh! Beatriz, bendita sejas!"; e já dissera: "Oh!
Beatriz", quando, despertando, abri os olhos e vi que estava
enganado. E, se bem que tivesse chamado por aquele nome, minha voz estava tão
embargada pelos soluços, que essas mulheres não puderam escutar-me, segundo é
meu parecer; e, embora muito envergonhado, por exortação de Amor volvi-me para
elas. E, quando me viram, começaram a dizer: "Parece morto", e a dizer entre si: "Procuremos
confortá-lo"; e me disseram muitas palavras de conforto; e, às vezes, me
perguntavam o que eu receara. Por fim, estando um pouco confortado e tendo
reconhecido minha falaz imaginação, respondi-lhes: "Eu vos direi o que
tive." Então, do princípio ao fim, disse-lhes o que vira calando o nome
da gentilíssima. Depois, sanado da enfermidade, propus-me dizer palavras sobre
o que me sucedera, pois me pareceu ser cousa agradável de ouvir-se; e disse
esta canção:
Mulher piedosa e de novel idade,
Ornada assaz de gentileza humana,
Que estava onde eu chamava tanto a Morte.
Percebendo a piedade dos meus olhos
E as minhas vãs palavras escutando,
Pôs-se a chorar, com medo, fortemente;
Então, outras mulheres, que me viram
Em companhia da que assim chorava,
Fizeram-na afastar-se
E se apressaram logo a despertar-me.
Dizia uma: "Não durmas",
E outra dizia: "Por que estás tão
triste?"
Deixei, então, a estranha fantasia,
E o nome proferi de minha amada.
Tão
dolorosa estava minha voz,
Cortada
pela angústia do meu pranto,
Que
só no coração ouvi seu nome;
E, não obstante o aspecto de vergonha
Que
no momento me tomava o rosto,
Amor
fêz que para elas me voltasse.
Tão
profunda era a minha palidez
Que
até lembrava a morte aos que me viam.
"Oh!
vamos consolá-lo",
Imploravam-se,
humildes, entre si;
E
diziam-me, então:
"Que
viste, p’ra perderes a coragem?"
E,
quando confortado estava um pouco,
Respondi-lhes:
"Mulheres, vou contar-vos.
"Pensava
em minha vida transitória
E
via quanto o seu durar é breve,
Quando
em meu coração Amor chorou;
Minh’alma,
então, senti tão abatida
Que
murmurei comigo, num suspiro:
— Um dia, minha
amada morrerá! —
E
o meu abatimento foi tão grande
Que
os meus olhos, pesados, se fecharam,
E,
cheios de terror,
Erraram
meus espíritos no espaço;
E
a delirar, depois,
De
entendimento e de verdade fora
Vi
rostos aflitivos de mulheres
Dizendo:
— Hás de morrer! Hás de morrer!
"Vi
depois, muitas cousas duvidosas No vâo imaginar que me tomara; Pareceu-me que
estava em um lugar Onde as mulheres iam, desgrenhadas, Pela rua, entre lágrimas
e gritos Que de tristeza dardejavam fogo. E, a pouco e pouco, ver me pareceu
Turbar-se o sol e virem as estrelas, £ chorarem um e outras ; Tombarem no ar os
pássaros em vôo, E estremecer a terra; E vir um homem, rouco e descorado,
Dizendo-me: — Que fazes? Não soubeste? Tua amada morreu, que era tão bela. —
"Os olhos levantei, lacrimejantes,
E vi, como uma chuva de maná,
Quando voltavam para o céu, os anjos
Tendo
à frente uma névoâ, atrás da qual
Seguiam
todos a gritar: — Hosana! —
E,
se ai tivessem dito, eu vos diria.
Disse-me,
então Amor: — Não mais te oculto;
Vem
ver comigo nossa dama inerte. —
O
meu falaz delírio
A ver levou-me
minha amada morta;
E,
quando a divisei,
Vi
mulheres cobríndo-a com um véu;
E,
na sua humildade verdadeira,
Parecia
dizer.- — Estou em paz. —
"Em minha dor, tornei-me tão humilde,
Vendo nela a humildade tomar forma,
Que disse: — Morte, julgo-te mais doce;
Tu deves, doravante ser gentil,
Pois que tu minha amada possuíste;
E deves ter piedade e não desdém.
Bem
vês que tal desejo eu manifesto
De ser teu, que semelho até contigo.
Vem, minh’alma te pede. —
E parti, após tudo consumado;
Quando me vi sozinho,
Disse, volvendo o olhar para o alto reino:
— Abençoado, alma bela, quem te fita! —
E por vossa mercê me despertastes."
Essa canção tem duas partes: na primeira,
falando com pessoa indefinida, digo como fui tirado de uma vã fantasia por
certas mulheres, e como lhes prometi narrá-la; na segunda, digo como lhes
falei. A segunda começa ali: Pensava eu. A primeira parte se dividi: em
duas: na primeira, digo aquilo que certas mulheres, e uma só, disseram e
fizeram segundo a minha fantasia, antes de eu voltar à verdadeira condição; na
segunda, falo sobre o que essas mulheres me disseram depois que deixei esse
delírio; e começa essa parte ali: Tão dolorosa. Depois, quando digo: Pensava
eu, digo como lhes falei dessa minha imaginação. E em tôrno disso faço duas partes: na primeira, narro, pela
ordem, essa imaginação; na segunda, dizendo em que momento me chamaram,
agradeço-lhes indiretamente; começa ali essa parte: E foi então.
XXIV
Após essa vã imaginação, sucedeu um dia que, sen-tando-me pensativo em certo lugar, senti começar um
tremor no coração, como se estivesse na presença dessa mulher. Então, digo que
me veio uma imaginação de Amor; pareceu-me vê-lo chegando da parte onde estava
a minha dama, e pareceu-me que dizia, alegremente, dentro do coração:
"Pensa em abençoar o dia em que me apoderei de ti, pois o deves
fazer." E, certo, pareceu-me ter o coração tão alegre que não me pareceu
fosse o meu, por causa da sua nova condição. E, pouco depois dessas palavras
que o coração me disse pela boca de Amor, vi aproximar-se de mim uma mulher gentil,
que era de famosa beleza, e que fora por muito tempo dama do meu
primeiro amigo (24). Chamava-se Giovanna, mas, por sua beleza, como
êle o julgava, lhe fora imposto o nome de Primavera; e assim era chamada. E vi
que atrás dela vinha a miraculosa Beatriz. Essas mulheres assim passaram perto
de mim, uma atrás da outra; e pareceu-me que Amor falava em meu coração,
dizendo-me: "A primeira é chamada Primavera só por causa da sua vinda de
hoje; pois induzi aquele que lhe impôs o nome a chamar-lhe Primavera, isto é,
”primeira virá" (25) no dia em que Beatriz se mostrai depois da imaginação do seu fiel. E, se quiseres considerar também o
seu primeiro nome, verás que é o mesmo que dizer: "primeira virá",
porque o seu nome Giovanna vem daquele João que precedeu a luz verdadeira,
dizendo: Ego vox damantis in diserto: parate viam Domini." E,
depois, pareceu-me ter dito também estas palavras: "Quem desejasse
considerar mais sutilmente, chamaria Amor a Beatriz, pela grande semelhança
que tem comigo." Então, tornando a pensar, propus-me escrever em verso ao
meu primeiro amigo, calando certas palavras que me pareceu dever calar, por
julgar que o seu coração visasse ainda à beleza da gentil Primavera; e disse
este soneto:
No coração senti-me despertar
Espírito amoroso que dormia;
E vi, depois, de longe Amor chegar,
Tão alegre que eu mal o conhecia,
Dizendo: "Pensa em honras me prestar";
E, tais palavras ao dizer, sorria.
Pouco ali meu senhor devia estar
Quando, olhando o lugar do qual partia,
Vi dona Vanna e dona Beatriz.
Em direção aonde eu me pusera,
Virem, uma após outra maravilha;
E, tanto quanto a mente mo rediz,
Amor me disse: "Aquela é Primavera.
E aquela Amor, que tanto me similha."
Esse soneto tem muitas partes: a
primeira das quais diz como eu me senti despertar o tremor habitual no coração,
e como se me afigurou que Amor me apareceu alegre no coração, vindo de parte
longínqua; a segunda diz como me pareceu que Amor me falava no coração, e
quem me pareceu; a terceira diz como, depois que se demorou comigo algum tempo
e em que condições, eu vi e ouvi certas cousas. A segunda parte começa ali: Dizendo:
"Pensa; a terceira, ali: Pouco ali meu senhor. A terceira parte
se divide em duas: na primeira, digo quem vi; na segunda, quem ouvi. A segunda
começa ali: Amor me disse.
XXV
Pessoa digna de ser esclarecida em
qualquer dúvida poderia duvidar quando falo de Amor como se fosse uma cousa
por si, e não somente substância inteligente, mas também substância corpórea:
cousa que, segundo a verdade, é falsa, pois Amor não existe por si como substância, mas é um acidente em substância. E que eu fale dele como se fora corpo, e também como se fora homem, aparece por
três cousas. Digo que o vi chegar; ora, como seja fato que o chegar indica movimento
local, e como, segundo o Filósofo (26), somente o corpo é localmente
móvel por si, resulta que admito ser o Amor um corpo. Digo, também que êle
sorri, e também que fala: cousas que parecem ser próprias do homem,
especialmente o riso; e por isso parece que admito ser êle homem. Para
esclarecer tal cousa, como convém presentemente, deve entender-se, primeiro,
que não existiam, antigamente, dizedores de amor em língua vernácula, ao
contrário, eram dizedores de amor certos poetas da língua latina; digo que,
entre nós (embora isso talvez acontecesse e aconteça ainda entre outros povos,
como na Grécia), tratavam dessas cousas, não os poetas vernáculos, mas os
literatos. E não faz muitos anos que apareceram, pela vez primeira, esses poetas
vernáculos; pois rimar em vernáculo é tanto como versejar em latim, mantidas as
devidas proporções. E sinal de que faz pouco tempo é que, se quisermos procurar,
não encontraremos, na língua do oco (27) e na do si (28),
cousas ditas cento e cinqüenta anos antes da época presente. E o motivo por que
certos poetastros tiveram fama de saber dizer (29) é que foram quase
os primeiros que disseram em língua do si. E o primeiro que começou a
dizer como poeta vernáculo foi a isso levado porque quis tornar suas palavras compreendidas
por mulher difícil de compreender versos latinos. E isso é contra aqueles que
rimam sobre outra matéria que não a amorosa, de vez que tal modo de falar foi
criado para falar de amor. Destarte, como seja fato que se concede aos poetas
maior licença no falar do que aos prosadores, e que esses rimadores não passam de
poetas vernáculos, é digno e razoável que lhes seja concedida maior licença no
falar do que aos outros faladores vernáculos; logo, se alguma figura ou côr retórica
é concedida aos poetas, concedida é igualmente aos rimadores. Portanto, se
vemos os poetas falarem às cousas inanimadas, como se estas tivessem senso e
razão, e fazê-las falarem também, — e não somente cousas verdadeiras, mas ainda
cousas não verdadeiras, isto é, dizerem que falam cousas que não existem, e oizerem
que muitos acidentes falam, como se fossem substâncias e homens, — digno é
o rimador de fazer o mesmo, e não sem razão alguma, mas com razão que, depois,
seja possível esclarecer pela prosa. Que os poetas tenham falado daquele modo,
vê-se em Virgílio, o qual diz que Juno, isto é, uma deusa inimiga dos troianos,
falou com Eolo, senhor dos ventos, no primeiro livro da Eneida: /Eole,
namque tibi, e que esse deus lhe respondeu: Titus, o regina, quid optes
explorare labor; mihi jussa capessere fas est. Segundo esse mesmo poeta,
a cousa que não é animada fala às cousas animadas, no terceiro da Eneida:
Dardanidae duri. Por Lucano, fala a cousa animada à cousa inanimada: Multam,
Roma, íamen, debes áviiibus armis. Por Horá-cio, fala o homem à sua própria
ciência, como a outra pessoa (30), e não somente são palavras de
Horácio, mas ainda ele as diz como que recitando à maneira do bom Homero, em sua Poetrict: Dic mihi, Musa, viram. Por Ovidio, fala Amor, como se
fosse pessoa humana, no princípio do livro que tem o nome de Livro do Remédio
de Amor, ali: Bella mihi, video, bella paraníur ait. E com isso pode
ser esclarecido quem tem dúvida em algumas partes destes meu livro. E, a fim de
que não se afoite algum poetastro, digo que nem os poetas talavam assim sem
razão, nem os que rimam devem falar assim sem ter alguma razão para o que
dizem; pois sofreria grande vergonha aquele que rimasse sob a roupagem de
figura ou côr retórica e, depois, interpelado, não soubesse desnudar as suas
palavras dessa roupagem, de maneira a terem significação real. E esse meu
primeiro amigo e eu conhecemos diversos que assim estultamente rimam.
XXVI
Essa gentilissima
mulher, de quem se tratou nas palavras precedentes, entrou tanto na graça do
povo, que, ao passar pela rua, as pessoas acorriam para vê-la; vinha-me, então,
grande júbilo. E, quando ela se encontrava perto de alguém, vinha ao coração
deste tanta honestidade que não ousava levantar os olhos nem responder à sua
saudação; e muitos, que tal experimentaram, poderiam testemunhá-lo a quem não
o acreditasse. Ela andava coroada e vestida de humildade, não mostrando nenhum orgulho do que via e ouvia. Ã
sua passagem, muitos diziam: "Não é uma mulher, mas um dos
belíssimos anjos do céu". E outros diziam: "É uma maravilha; bendito seja o senhor, que tão mira culosamente
soube criar!" Eu digo que ela se mostrava tão gentil e tão cheia de todos
os prazeres, que os que a miravam se sentiam possuídos de uma doçura tão honesta
e suave, que a não sabiam recordar; e não havia ninguém que pudesse fitá-la sem
logo ser obrigado a suspirar. Essas e outras cousas ainda mais milagrosas dela
procediam, tal era o seu poder; foi pensando nisso que, desejando retomar o
estilo do seu louvor, me propus dizer palavras nas quais fizesse entender as
suas ações admiráveis e excelsas, a fim de que não somente os que puderam vê-la em pessoa, mas também
os outros, saibam a respeito dela aquilo que as palavras podem fazer
compreender. Então, eu disse êste soneto:
Tão honesta e gentil, ao nos saudar,
Minha amada aparece em nossa vida,
Que toda boca treme, emudecida,
E os olhos a não ousam contemplar.
Ela se vai, sentindo-se louvar,
Humildemente, de pudor vestida;
Parece que no céu foi escolhida
Para à terra um milagre revelar.
Tão amável se mostra a quem a mira
Que no peito desperta uma doçura
Que só pode entender quem a conhece;
E dos seus lábios emanar parece
Um espírito cheio de ternura
Que vai dizendo ao coração; "Suspira!"
Esse soneto é tão fácil de
entender, pelo que foi narrado antes, que não necessita nenhuma divisão: poi
isso, deixando-o digo que minha dama conquistou tanta graça, que não somente
ela era honrada e louvada, mas, por ela eram honradas e louvadas muitas outras.
Vendo isso e desejando manifestá-lo a quem não o via, propus-me, também, dizer
palavras em que o explicasse; e disse então este outro soneto, o qual narra
como tinha a virtude de influir sobre as outras:
Perfeitamente vê toda ventura
Quem vê, entre outras damas, minha amada;
E toda dama sente-se levada
A agradecer a Deus graça tão pura.
Tem tal virtude em sua formosura
Que nunca foi por outras invejada,
oda mulher fazendo andar trajada
De amor, de gentileza e de ternura.
A vista sua tudo torna humil,
E a si, não só, faz parecer prazente,
Mas a todas, por ela, presta honor.
E é nos seus atos todos tão gentil
Que ninguém pode recebê-la em mente
Sem com doçura suspirar de amor.
Esse soneto tem três partes: na
primeira, digo entre que espécie de pessoas essa mulher parecia mais admirável;
na segunda, digo como era apreciada a sua companhia; na terceira, falo sobre o
que tinha a virtude de despertar nas outras pessoas; a segunda parte
começa ali: E toda dama; a terceira, ali: Tem tal virtude. Essa
última parte divide-se em três: na primeira, digo o que se produzia nas
mulheres, isto é, no seu íntimo; na segunda, digo o que elas despertavam nos
outros; na terceira, digo o que admiravelmente se produzia não só nas mulheres,
mas em todas as pessoas, e não somente em sua presença, mas à sua lembrança. A
segunda começa ali: A vista sua; a terceira, ali: E é nos seus atos.
XXVII
Dias depois, comecei a pensar
sobre o que dissera a respeito de minha amada, isto é, nos dois sonetos precedentes;
e, verificando que não dissera o que então se produzia em mim,
pareceu-me haver falado imperfeitamente. Por isso propus-me dizer palavras nas
quais dissesse como me parecia estar disposto à sua influência e como operava
em mim a sua virtude; e, crendo não poder narrá-lo na brevidade de um soneto,
comecei então uma canção, que começa:
Tão longamente me reteve Amor
E acostumou-me à sua tirania,
Que, se a princípio parecia rude,
Suave agora me habita o coração.
Assim, quando me tira tanto as forças
Que os espíritos vejo me fugirem,
Então a minha frágil alma sinto
Tão doce, que o meu rosto empalidece.
Pois Amor tem em mim tanto poder
Que faz os meus suspiros me deixarem
E saírem chamando
A minha amada, para dar-me alento.
Onde quer que eu a veja, tal sucede,
E é cousa tão humil que não se crê.
XXVIII
Quomodo
sedei sola civitas plena populo! fada est quasi vidua domina gentium. Encontrava-me ainda no propósito de compor essa
canção, e já tinha acabado de escrever a estância acima, quando o senhor da
justiça chamou essa gentilíssima para gozar da glória sob a insígnia da
bendita rainha Virgem Maria, cujo nome mereceu grandíssima reverência nas
palavras da beata Beatriz. E, embora fosse apropriado tratar um pouco da sua
partida dentre nós, não é minha intenção tratar disso aqui, por três razões: a
primeira é que não é isso do presente propósito, se quisermos observar o
proêmio que precede este lívrinho; a segunda é que, posto que o fosse, minha
língua ainda não seria suficiente para fazê-lo como conviria; a terceira é que,
embora existissem uma e outra cousa, não me ficaria bem tratar disso, pois
significaria louvar-me a mim mesmo, o que é inteiramente reprovável; por isso,
deixo tal assunto para outro glosador. Todavia, como o número nove foi muitas
vezes repetido nas palavras acima, parecendo não ser sem razão, e, como parece
que tal número teve muita influência em sua partida, é conveniente dizer
alguma cousa, pois que parece convir ao propósito. Por isso, falarei antes de
como apareceu na sua partida e, depois, assinalarei algumas razões pelas quais
esse número lhe foi tão favorável.
XXIX
Segundo o costume
da Arábia, a sua alma nobilís ssíma partiu na primeira hora do nono dia do mês;
segundo o costume da Síria, partiu no nono mês do ano, por isso que o
primeiro mês é, ali, Tixirim, o qual, para nós, é outubro (31); e,
segundo o nosso costume, partiu no ano de nossa indicção, isto é, dos anni
Domini em que o número perfeito (32) se manifestara nove vezes
durante o centenário no qual ela foi posta neste mundo, e ela foi cristã do
décimo terceiro. Poderia haver uma razão por que esse número lhe foi tão
favorável: como seja fato que, segundo Tolomeu (33) e a verdade
iristã, são nove os céus que se movem, e, segundo a comum opinião astrológica,
os ditos céus exercem sua influência cá embaixo segundo a sua conjunção, esse
número lhe foi favorável para fazer compreender que, ao ser ela gerada, todos
os nove céus móveis se combinavam perfeitissimamente. Essa é uma das razões;
mas, pensando mais sutilmente, e segundo a verdade infalível, ela mesma foi
esse número; falo por semelhança, e assim o entendo. O número três é a raiz de nove, porque, sem nenhum
outro, por si mesmo produz nove, como vemos manifestamente que três vezes três
são nove. Se pois, três é por si mesmo fator de nove, e o fator dos milagres
é, por si mesmo, três, isto é, Pai, Filho e Espirito Santo, os quais são três
em um, essa mulher foi acompanhada por esse
número nove para fazer compreender que ela era um nove, isto é, um
milagre, cuja raiz, isto é, a do milagre, é somente a miraculosa Trindade.
Pessoa mais sutil talvez encontrasse ainda mais sutil razão; essa é, porém, a
que vejo e que mais me satisfaz.
XXX
Depois
que ela partiu deste mundo, ficou toda a supradita cidade como que viúva
despojada de toda dignidade; por isso, ainda vertendo lágrimas nessa desolada
cidade, escrevi algo sobre sua condição aos príncipes da terra, tomando o
começo do profeta Jeremias, que diz: Quomodo sedet sola civitas. E digo
isso para que outros não se admirem de que eu o tenha alegado acima, como
intróito da nova matéria que vem depois. E se alguém pretender repreender-me
pelo fato de não escrever aqui as palavras que se seguem às que foram citadas,
escuso-me, pois a minha intenção não foi, desde o começo, escrever outra cousa
que não vernáculo; e, como seja fato que as palavras que se seguem àquelas
citadas são íôdas latinas, ficaria fora de minha intenção escrevê-las. E sei
que semelhante intenção teve o meu primeiro amigo a quem escrevo: isto é, que
eu lhe escrevesse somente em vernáculo.
XXXI
Depois
que meus olhos choraram algum tempo, e estavam tão fatigados que não mais
podiam desafogar a minha tristeza, pensei querer desafogá-la com algumas
palavras dolorosas; propus-me, então, escrever uma canção na qual, chorando,
falasse dela, para quem tanta dor se transformara em destruidora da minha alma;
e comecei uma canção, que começa: Os olhos, lastimando o coração. E, para
que essa canção pareça mais viúva ao finalizar, dividi-la-ei antes de
escrevê-la; e tal critério manterei daqui por diante.
Digo
que essa desventurada canção tem três partes: a primeira é proêmio; na segunda,
falo dela; na terceira, falo à canção piedosamente. A segunda parte começa ali:
Dirigiu-se Beatriz; a terceira, ali: Piedosa canção minha. A
primeira parte divide-se em três: na primeira, digo porque me disponho a falar;
na segunda, digo com quem quero falar; na terceira, digo de quem quero falar. A segunda começa ali: E
como me recordo; a terceira, ali: E dela falarei. Depois, quando
digo: Dirigia-se Beatriz, falo dela; e em torno disso faço duas partes:
primeiro, digo a causa por que nos foi tirada; depois, digo como outrem chora
por causa da sua partida, e começa esta parte ali: Da formosa pessoa. Essa
parte divide-se em três: na primeira, digo quem não a chora; na segunda, digo
quem a chora; na terceira, falo de minha condição. A segunda começa ali: Mas
tristeza e vontade; a terceira, ali: Forte angústia. Depois, quando
digo: Piedosa canção minha, falo a essa canção, designando-lhe as
mulheres a quem deve dirigir-se e dizendo-lhe que fique com elas.
Os olhos, lastimando
o coração,
Tanto
a pena sofreram de "chorar,
Que se deram, agora, por vencidos.
Se quero, pois, desafogar a dor
Que a pouco e pouco me conduz à morte,
Devo falar soltando os meus lamentos,
E, como me recordo que falei
De minha amada, enquanto ela viveu,
Convosco, gentis damas, de bom grado,
Falar não quero a outrem
Senão a coração gentil de dama;
E dela falarei chorando, pois
Que se foi para o céu subitamente
Deixando Amor a padecer comigo.
Dirigiu-se Beatriz para o alto céu, Para o reino onde os anjos gozam
paz, E assim, mulheres, vos abandonou. Não no-la arrebatou do gelo o frio, Nem
o calor, como sucede a outras, Mas a sua bondade e nada mais; Que da sua
humildade a luz intensa Atravessou os céus com tanta força Que ao eterno senhor
fêz maravilha Tal que o doce desejo Lhe veio de chamar tanta virtude; E fê-la
ir habitar junto de si, Pois viu que esta vida tormentosa Não merecia cousa tão
gentil.
Da formosa pessoa
despediu-se
Aquela
alma gentil cheia de graça,
E
reside, gloriosa, em digno poiso,
Quem
não na chora, quando nisso pensa,
Tem
coração de pedra e tão perverso
Que
não recebe espírito benigno.
Não
tem as almas vis tão alto engenho
Que
consigam, sequer, imaginá-la:
Por
isso, de chorar não têm desejo.
Mas,
tristeza e vontade
De
suspirar e de morrer de pranto,
A
própria alma privando de conforto,
Tem
aquele que pensa, alguma vez,
Quem
ela foi e por que foi levada.
Forte angústia produzem-me os suspiros,
Quando a razão me traz à mente triste
Aquela que partiu meu coração;
E, pensando na morte, muitas vezes
Dela me vem desejo tão suave,
Que se transmuda a côr do meu semblante.
E, quando o meu delírio é muito intenso,
Tão profundo desgosto me domina
Que até desperto pela dor que sinto.
E me transformo tanto
Que das gentes me afasto de vergonha.
Depois, chorando, só, no meu lamento,
Chamo Beatriz e digo: "Estás tu morta?"
E, enquanto assim a chamo, me consolo.
Chorar de dor e suspirar de angústia
Me abatem tanto quando estou sozinho,
Que se desgostaria quem me ouvisse:
E qual tem sido a vida minha, após
Sua partida para o novo século (34),
Língua alguma dizê-lo poderia.
Assim, senhoras, mesmo que eu quisesse,
Não vos diria bem o que ora sou:
Tanto me faz penar a vida acerba,
Que me parece ouvir
Cada homem me
dizer:
"Eu te abandono",
Ao notar os meus lábios descorados.
Mas, quanto sofro, minha amada o sabe,
E, por isso, ainda espero a sua graça.
Piedosa canção minha vai chorando,
Ao encontro das damas e donzelas,
Às quais tuas irmãs
Tinham por hábito levar deleite;
E tu, agora, filha da tristeza,
Parte, desconsolada, a estar com elas.
XXXII
Feita essa
canção, veio procurar-me quem, segundo os graus da amizade, c meu amigo
imediatamente depois do primeiro; e que era consangüíneo tão próximo dessa
gloriosa que ninguém o era tanto. E, a conversai comigo, rogou-me que
escrevesse alguma cousa sobre uma mulher que morrera; e falava
dissimuladamente, a
fim de parecer que se referia
a outra, que realmente morrera. Então, compreendo que falava somente dessa
abençoada, disse-lhe que lhe faria o que me recomendava o seu pedido.
Pensando, pois, nisso, propus-me fazer um soneto, no qual me lamentasse
um pouco, e dá-lo a esse amigo, a fim de parecer que o fizera para êle; e disse
então este soneto, que começa: Vinde, vinde os suspiros meus ouvir. O
qual tem duas partes: na primeira, chamo
os fiéis de Amor, para que me escutem; na segunda, trato de minha mísera
condição. A segunda começa ali: Se não partissem.
Vinde, vinde os suspiros meus ouvir,
Oh corações gentis, penalizados:
Se não partissem, tão desconsolados,
À dor eu deveria sucumbir;
Muito mais do que posso consentir,
Os meus olhos seriam obrigados
A ficar de chorar tão fatigados
Que minha dor lograssem expandir.
Ouvi-los-ei chamar constantemente
Minha gentil senhora, assim partida
Para o céu, que a virtude sua encerra;
E desprezar, às vezes, esta vida
Em nome de minh’alma descontente,
Por ela abandonada aqui na terra.
XXXIII
Depois
de dizer esse soneto, considerando quem era aquele a quem eu tencionava dá-lo
como se fosse feito para êle, percebi que era pobre e nu o serviço que
prestaria a pessoa tão ligada àquela gloriosa. Por isso, antes de dar-lhe o
soneto supra-escrito, escrevi duas estâncias de uma canção, uma realmente para
êle, e a outra para mim, embora, a quem não observe sutilmente, pareçam
ambas escritas para uma pessoa; mas, quem as observe sutilmente, vê bem que
falam pessoas diferentes, pois uma não lhe chama sua dama, e a outra, sim,
como aparece manifestamente. Dei-lhe essa canção e o soneto, dizendo-lhe que os
fizera só para êle.
A canção começa: Todas as vezes, e
tem duas partes: em uma, isto é, na primeira estância, lamenta-se esse meu
querido amigo e íntimo dela; na segunda, isto é, na outra estância que começa: E
se recolhe, então, lamento-me eu. E, assim, é manifesto que nessa canção se
lamentam duas pessoas, uma das quais se lamenta como irmão, a outra como servo.
Todas as vezes pobre! — que me lembro
Que não verei jamais
A mulher por quem vivo tão dolente,
Tanta dor acumula no meu peito
A mente dolorosa,
Que chego a alma dizer; "Por que não partes?
Os tormentos que ainda sofrerás
No mundo, que já tanto te desgosta,
Tornam-me pensativo e apavorado."
Chamo, por isso, a Morte,
Para ser-me repouso doce e suave,
E digo: "Vem a mim!", com tanto amor
Que me torno invejoso dos que morrem.
E se recolhe, então, nos meus suspiros,
Um sopro de piedade
Que vai chamando a Morte sem cessar,
Para ela os meus desejos se dirigem,
Desde que minha dama
Foi colhida por sua crueldade;
Pois o prazer de tanta formosura,
Da nossa vista desaparecendo,
Tornou-se grande e espiritual beleza
Que pelo céu expande
De amor um lume que saüda os anjos
E o seu alto e sutil entendimento
Enche de admiração, de tão gentil.
XXXIV
Naquele
dia em que se completava um ano que essa mulher se tornara cidadã da vida
eterna, estava eu sentado em lugar no qual, lembrando-me dela, desenhava um
anjo sobre umas tàbuazinhas; e, enquanto desenhava, volvi os olhos e vi, perto
de mim, uns homens aos quais devia prestar honras. Olhavam para o que eu fazia;
e, segundo me disseram depois, já estavam ali algum tempo antes que eu os
percebesse. Quando os vi, levantei-me e, saudando-os, disse: "Outro esteve
há pouco comigo, e por isso estava pensando". Então, depois que
partiram, voltei à minha obra, isto é, a desenhar figuras de anjos. E,
fazendo-o, veio-me a idéia de fazer versos, como para aniversário, e dedicá-los
àqueles que me haviam visitado; e disse, então, êsíe soneto que começa: Apareceu.
O qual tem dois começos, razão por que o dividirei segundo um e segundo o
outro.
Digo
que, segundo o primeiro, esse soneto tem três partes: na primeira, digo que
essa mulher já estava em minha memória; na segunda, digo como Amor agia sobre
mim; na terceira, falo dos efeitos de Amor. A segunda começa ali: Amor,
que; a terceira, ali: Saíam-me, a gemer. Essa parte divide-se em
duas: na primei; ra, digo que todos os meus suspiros saíam falando; na segunda,
digo que alguns diziam certas palavras diferentes dos outros. A segunda começa
ali: E os que. Desse mesmo modo se divide segundo o outro começo, salvo
que, na primeira parte, digo quando essa mulher viera à minha memória, e isso
não digo no outro.
PRIMEIRO COMEÇO
Apareceu em minha mente, um dia, A gentil
dama que, por seu valor, Foi posta pelo altíssimo senhor Na celeste morada de
Maria. . .
SEGUNDO COMEÇO
Apareceu em minha mente, um dia,
A gentil dama por quem chora Amor,
Precisamente quando o seu valor
Vos induziu a ver o que eu fazia.
Amor, que na memória a pressentia,
Despertou no meu peito, com fervor.
E, por sua ordem, cheio de amargor,
Cada suspiro, então, de mim partia.
Saíam-me a gemer do coração,
Com voz que muitas vezes faz brotar
Dolente pranto no semblante triste,
E os que saíam com maior pesar
Iam dizendo; "Angélica razão!
Faz hoje um ano, para o céu subiste!".
XXXV
Algum tempo depois, como
estivesse em lugar no qual me recordava do tempo passado, fiquei muito
pensativo e com pensamentos tão dolorosos que faziam transparecer o meu
terrível desalento. Percebendo o meu cismar, ergui os olhos para ver se alguém
me via. Então, vi uma mulher gentil, muito bela e jovem, que me observava de
uma janela, com aspecto tão piedoso que toda a piedade parecia estar reunida
nela. Por isso, como seja fato que os sofredores, quando vêem que outros se
apiedam deles, logo se põem a chorar, como se tivessem piedade de si mesmos,
senti que meus olhos queriam chorar; então, temendo mostrar minha triste vida,
afastei-me dos olhos daquela gentil; e disse, então, comigo: "Não pode
ser que, com essa piedosa mulher, não exista amor nobilíssimo." E me
propus dizer um soneto, no qual lhe falasse e resumisse tudo o que foi narrado
acima. E, como é bastante manifesto, não o dividirei.
Viram meus olhos que expressão dolente
Tínheis em vossa angélica figura,
Ao notardes os modos e a postura
Que a dor me faz tomar freqüentemente.
E, ao ver que vos passavam pela mente
As condições de minha vida obscura,
Comoveu-me a patética tremura
De revelar o que minh’alma sente.
E me afastei de vós, depois, notando
Que as lágrimas corriam com fervor,
Por me haver vossa vista comovido.
Eu disse então, comigo, entristecido:
"Anima essa mulher o mesmo Amor
Que ora me faz andar assim chorando."
XXXVI
Sucedeu, depois, que onde quer que essa
mulher me encontrasse, o seu rosto tomava uma expressão piedosa e uma côr
pálida, quase como de Amor; por isso, muitas vezes me lembrei de minha
nobilíssima dama, que sempre se mostrava com semelhante côr. E, como muitas
vezes não pudesse chorar nem desafogar a minha tristeza, procurava ver essa
mulher piedosa, que parecia tirar as lágrimas dos meus olhos com sua vista.
Por isso, veio-me vontade de dizer também palavras dirigidas a ela, e disse
este soneto, que começa: Côr de amor. E é simples, sem dividi-lo, pela razão
precedente.
Côr de amor e piedade no semblante
Jamais mostrou, tão portentosamente,
Uma mulher, por ver freqüentemente
Olhar gentil ou pranto torturante,
Como vós mesma, toda vez que diante
De vós me vedes a expressão dolente;
E assim, por vós, me vem tal cousa à mente
Que o coração receio se quebrante.
Não posso ter nos olhos a ansiedade,
Que não vos queiram muitas vezes ver,
Pela vontade de chorar imensa:
E tanto essa ânsia lhe
fazeis crescer,
Que se consomem todos de vontade;
E as lágrimas vos fogem à presença.
XXXVII
Cheguei a
tal ponto por ver essa mulher, que meus olhos começaram a deleitar-se demasiado
em vê-la; por isso, muitas vezes me
desgostei comigo mesmo, e me considerei assaz pusilânime. E, muitas
vezes, censurei a vaidade dos meus olhos, e lhes disse em pensamento: ‘inda há
pouco, costumáveis fazer chorar quem visse vossa dolorosa condição, e, agora,
parece que quereis esquecê-lo por essa mulher que vos mira; que não vos mira
senão na medida em que lhe dói a perda da gloriosa "mulher por quem
costumáveis chorar; mas, fazei o que quiserdes, que eu vo-la recordarei
constantemente, olhos malditos, que jamais, senão depois da morte, deveríeis
estancar vossas lágrimas." E, depois de haver assim falado comigo mesmo
aos meus olhos, os suspiros me assaltaram, profundos e angustiosos. E, para
que essa batalha íntima não ficasse conhecida somente pelo infeliz que a
travava, propus-me fazer um soneto e exprimir essa horrível condição. E disse
este soneto, que começa: O amargurado pranto. E tem duas partes:
na primeira, falo com meus olhos, assim como falou o coração dentro de mim
mesmo: na segunda, removo algumas dúvidas, esclarecendo quem é que assim fala;
e começa essa parte ali: E, assim dizendo. Poderia bem receber mais
divisões, mas seriam inúteis, pois está manifesto pela razão precedente.
"O
amargurado pranto em que vivestes,
Olhos meus, por tão longa duração,
Induzia a chorar de compaixão
Outras pessoas, como o percebestes.
E, agora, eu vos diria que o esquecestes,
Se fosse, por meu turno, tão felão
Que não viesse tirar-vos a razão,
Lembrando-vos aquela que perdestes.
Vossa vaidade faz-me meditar,
Causando-me um receio muito forte
Do rosto de uma dama que vos mira.
Por nenhuma razão, senão por morte,
Vosa amada devíeis olvidar.”
E, assim dizendo, o coração suspira._
XXXVIII
Tornei
a ver aquela mulher em tão extraordinárias condições,
que muitas vezes nela pensei como em pessoa que muito me
agradava; e nela pensava assim: "E’ mulher
gentil, bela, jovem e sábia, aparecida, talvez por vontade de Amor, para
que a minha vida repouse." E, muitas vezes, pensava ainda mais
amorosamente, e tanto que o coração consentia nisso, isto é, em pensar. E, depois de o haver consentido, tornava a pensar como que movido pela razão, e dizia
comigo mesmo: ‘"’Deus, que pensamento é esse, que de modo tão vil quer consolar-me
e não me deixa nenhuma outra idéia?" Depois, vinha outro pensamento, que
me dizia: "Se ficas-te tão atribulado, por que não evitas tanta amargura?
Vês que isso é uma inspiração de Amor, que põe diante de nós os desejos
amorosos, e que. provém de parte tão gentil como o são os olhos da mulher que
tão piedosa se mostrou". Então, tendo lutado comigo mesmo repetidas vezes,
quis dizer ainda algumas palavras; e, como na batalha dos pensamentos, venciam
aqueles que falavam dela, pareceu-me que convinha falar-lhe, e disse este
soneto, que começa: Pensamento gentil. E digo "gentil" porque
se relacionava com mulher gentil, pois, quanto ao resto, era vilíssimo.
Nesse soneto, faço duas partes de
mim, segundo a divisão dos pensamentos. Chamo a uma parte "coração",
isto é, o apetite; chamo à outra "alma", isto é, a razão: e digo como
um fala com o outro. E que seja próprio chamar ao apetite coração e à razão
alma, c bastante manifesto àqueles a quem me apraz que isso seja esclarecido.
E’ verdade que, no soneto precedente, coloco a parte do coração contra a dos
olhos, e isso parece o contrário daquilo que digo no presente; por isso, digo
que, onde falo do coração, também entendo o apetite, pois o desejo de
lembrar-me da minha gentilíssima dama era ainda maior do que o de ver essa
mulher, embora já tivesse algum desejo disso, mas que me parecia fraco: assim,
transparece que um dito não é contrário ao outro.
Esse soneto tem três "partes:
na primeira, começo a dizer a essa mulher como o meu desejo se volve todo para
ela; na segunda, digo como a alma, isto é, a razão, fala com o coração, isto é,
com o apetite; na terceira, digo como êle lhe responde, a segunda parte começa
ali: Diz a alma; a terceira, ali: E êle responde.
Pensamento gentil, que vos recorda,
Costuma me assaltar constantemente,
E me fala de Amor tão docemente
Que de bom grado o coração concorda.
Diz a alma ao
coração: "Quem vos acorda,
Para vir consolar a nossa mente?
E será sua força tão potente
Que de outro pensamento em nós discorda?"
E êle responde: "Oh alma cuidadosa,
Esse e um novo espírito de Amor,
Que me traz seu desejo ao sentimento;
E sua vida e todo o seu valor
Provêm dos olhos da mulher piedosa
Que se turba por nosso sofrimento."
XXXIX
Contra esse adversário da razão,
levantou-se em mim um dia, quase na hora nona, uma forte imaginação;
pareceu-me ver a gloriosa Beatriz com a roupagem sangüínea com que apareceu
pela primeira vez aos meus olhos; e me parecia jovem, da mesma idade na qual a
vi primeiro. Então, comecei a pensar nela. E, recordando-me dela, segundo a
ordem do tempo decorrido, meu coração começou a arrepender-se dolorosamente do
desejo pelo qual se deixara possuir tão vilmente poi uns dias, contra a
constância da razão; e, expulsando esse malvado desejo, todos os meus
pensamentos se voltaram
para a sua gentilíssima Beatriz. E digo que, daí por diante, comecei a pensar
nela com o coração cheio tía vergonha que os suspiros tantas vezes manifestavam,
pois todos como que diziam, ao sair, aquilo que no coração eu sentia, isto é,
o nome daquela gentilíssima c de como partiu dentre nós. E, muitas vezes,
sucedeu que tanta dor um pensamento tinha em si, que eu me esquecia dele e de
mim mesmo. Com esse reacender-se dos suspiros, reacendeu-se o abrandado pranto,
de tal maneira que meus olhos pareciam duas cousas que desejassem sempre
chorar; e, muitas vezes, sucedia que, pela longa continuação do pranto, ao
redor deles se fazia uma côr purpúrea, que sói aparecer quando se sofre algum martírio. Vê-se, pois, que foram
merecidamente punidos por sua vaidade; e de tal forma, que, daí por
diante, não puderam mirar ninguém que os olhasse de forma a poder levá-los a
semelhante tentação.
Por
isso, desejando que esse malvado desejo e vã tentação parecessem destruídos, de
modo que a nenhuma dúvida pudessem induzir as palavras rimadas que dissera
antes, propus-me escrever um soneto em que resumisse a sentença daquela razão.
E disse, então: Pobre! Por força desse suspirar; e disse
"pobre" porque me envergonhava de
que os meus olhos tivessem assim devaneado.
Este soneto
eu não o divido, porque o seu conteúdo é bastante manifesto.
Pobre! Por força desse suspirar
Que sai do coração com amargor,
Os olhos cedem e não têm valor
De se volverem para alguém fitar.
Parecem dois desejos de chorar
E de fazer ver toda a sua dor,
Vertendo tantas lágrimas que Amor
Os cerca de coroas de pesar.
Esses suspiros, em que assim me agito,
São no meu coração tão dolorosos
Que desfalece o próprio Amor, que é forte;
E’ que eles têm em si, os pesarosos,
De minha amada o doce nome escrito,
E muita cousa sobre a sua morte.
XL
Depois dessa atribulação, sucedeu,
naquele tempo em que muita gente ia ver a imagem bendita que Jesus Cristo nos
deixou como exemplo da sua belíssima figura, a qual minha amada vê
gloriosamente, que uns peregrinos passavam por uma rua quase no centro da
cidade onde nasceu, e viveu, e morreu a gentilíssima mulher. Os peregrinos
iam, segundo me pareceu, muito
pensativos, de modo que
eu, pensando neles, disse comigo mesmo:
"Esses peregrinos me parecem vir de parte longínqua, e não creio
que já tenham ouvido falar dessa mulher, nem que algo saibam a respeito;
antes, seus pensamentos são sobre cousas diversas das daqui; pois pensam,
talvez, em seus amigos distantes, que não conhecemos." Depois, disse
comigo mesmo: "Sei que, se fossem de cidade próxima, de algum modo se mostrariam
perturbados, passando pelo meio da cidade dolente." Depois, disse comigo
mesmo: "Se eu os pudesse entreter um pouco, fá-los-ia chorar também, antes
de saírem desta cidade, pois diria palavras que fariam chorar quem quer que as
ouvisse." Por fim, quando desapareceram de minha vista, propus-me fazer um
soneto, que começa: Oh peregrinos que a cismar passais. E disse
"peregrinos" segundo a larga significação do vocábulo; pois
peregrinos se podem entender de dois modos, largo e estreito: largo, quando
por peregrino se entende quem quer que esteja fora de sua pátria; de modo
estreito não se entende por peregrino senão quem vai à casa de São Tiago (35)
ou de lá regressa. E’, porém, conveniente saber-se que de três maneiras se
chamam, propriamente, as pessoas que andam ao serviço do Altíssimo: chamam-se palmeiros
quando vão a ultramar (36), aonde muitas vezes levam as palmas;
chamam-se peregrinos quando vão à casa de Galiiza, pois a sepultura de
São Tiago é mais distante de sua pátria do que a de qualquer outro apóstolo;
chamam-se romeiros quando vão a Roma, para onde iam esses aos quais
chamo peregrinos.
Esse soneto eu não o divido, pois é muito
manifesta a sua razão.
Oh. peregrinos que a cismar passais,
Talvez por cousa que não está presente,
Provindes vós de tão longínqua gente,
Como por vosso aspecto o demonstrais,
Que sem nenhum lamento caminhais
No centro da cidade descontente,
Como pessoas que completamente
Alheias fossem aos seus tristes ais?
Se quisésseis parar, para o saber,
O suspiroso coração me diz
Que sairíeis, certo, a soluçar.
A cidade perdeu sua Beatriz (37),
E o que a respeito possa alguém dizer
Tem a virtude de fazer chorar.
XLI
Mandaram, depois, duas mulheres gentis, a
rogar-me que lhes mandasse essas minhas palavras rimadas; então, pensando na
sua nobreza, propus-me mandá-las e fazer cousa nova, que mandaria junto com outras,
a fim de satisfazer os seus rogos mais honrosamente. E disse, pois, um soneto
que narra o meu estado, e o enviei acompanhado do soneto precedente, e com
outro que começa: Vinde, vinde os suspiros meus ouvir (38). O
soneto que fiz então, começa: Além da esfera; e tem cinco partes. Na primeira, digo aonde vai o meu pensamento,
chamando-o pelo nome de um dos seus efeitos. Na segunda, digo por que êle vai
para o alto, isto é, quem o faz ir assim. Na terceira, digo o que viu, isto é,
uma mulher sendo honrada lá no alto; e chamo-lhe, então, "espírito
peregrino", porque espiritualmente vai para o alto e ali permanece, como
peregrino fora de sua pátria. Na quarta, digo como êle a vê assim, isto é, em tal qualidade que não o
posso enten-ãer, isio é, o meu pensamento sobe em tal grau até à
qualidade dela, que o meu intelecto não o pode compreender; pois é fato que o
nosso intelecto está para essas almas abençoadas assim como a débil vista para
o sol: e assim diz o Filósofo (39) no segundo da Metafísica. Na
quinta, digo que, embora não possa compreender aonde o pensamento me leva,
isto é, à sua admirável qualidade, ao menos compreendo que todo esse pensar se
refere à minha amada, porque freqüentemente ouço o seu nome no meu pensamento;
e, no fim dessa quinta parte, digo "caras damas", para fazer entender
que é a mulheres que falo. A segunda parte começa ali: Uma virtude; a
terceira, ali: Quando chega; a quarta, ali: E tal a vê; a
quinta, ali: Mas, sei que fala. Poderia dividir-se ainda
mais sutilmente, e mais sutilmente esclarecer-se; mas, pode passar-se além com essa divisão, e por isso não me preocupo com dividi-lo ainda.
Além da esfera que mais longe gira (40),
Vai meu suspiro, cheio de fervor:
Uma virtude, que, chorando,
Amor Lhe comunica, para cima o tira.
Ao chegar ao supremo céu que o inspira,
Vê uma dama que recebe honor
E luz tanto que assombra, de esplendor,
O peregrino espírito que a mira.
E tal a vê que, quando mo rediz,
Não entendo o que fala, tão sutil,
Ao triste coração que o faz falar.
Mas, sei que fala da mulher gentil
Cujo nome relembra de Beatriz,
Caras damas que estais a me escutar.
XLII
Feito esse soneto, apareceu-me
admirável visão, na qual vi cousas que me fizeram propor-me não mais
falar dessa abençoada, enquanto não pudesse mais dignamente ocupar-me com
ela. E, para chegar a isso,
esforço-me o quanto
posso, e ela bem o sabe. De modo que, se aprouver àquele por quem todas as
cousas vivem, que minha vida dure por alguns anos, espero dizer dela o que
nunca se disse de nenhuma (41). E, depois, praza a quem é senhor da
cortesia que minha alma possa ver a glória de sua dama: isto é, da abençoada
Beatriz que gloriosamente contempla aquele qui est per omnia szecula
benedidus.
NOTAS
(1) O do Sol, que, segundo Tolomeu, ocupava o quarto céu.
(2) Ao céu do Sol eram atribuídos dois movimentos, um que
ihe era próprio e outro proveniente do primeiro céu, móvel ou
cristalino.
(3) Segundo os antigos, o céu das estrelas fixas movia-se
do ocidente para o oriente e um grau cada cem anos. Beatriz tinha, pois, oito
anos e quatro meses quando Dante a conheceu.
(4) Tomás de Aquino distinguia na alma o espírito da vida,
o espírito animal e o espírito natural.
(5)
O cérebro.
(6)
Século, o mundo; grande século, o paraíso.
(7) Guido Cavalcanti (1225-3300), amigo e conterrâneo de
Dante, ao qual haverá ainda outras alusões nesta obra. O seu soneto de
resposta, com as mesmas rimas, como de praxej é o seguinte:
Viste, ao meu parecer, todo valor,
E todo gáudio e quanto bem se sente,
Ao divisares o senhor valente
Que ao mundo rege da virtude o honor,
Pois vive em parte onde não há
languor
E tem morada na mansão da mente:
Tão suave em sonhos aparece à gente
Que leva os corações sem fazer dor.
O coração êle levou-vos, vendo
Que vossa amada a morte lhe pedia:
E o coração ela comeu, temendo.
Quando vos pareceu
vê-lo ir, sofrendo,
Doce sonho era, então, que se cumpria,
Que o seu contrário o vinha já vencendo.
(8)
Gênero poético provençal.
(9)
A vontade de amar.
(10) Forma
arcaica do soneto, na qual eram intercalados
versos de seis sílabas entre os catorze decassílabos normais
(11)
Necessitada, pobre.
(12)
Mundo (cf. nota 6).
(13)
Salvação.
(13-A)
"Meu filho, é tempo de acabar com a nossa simulação".
(13-B)
"Eu sou como o centro de um círculo, ao qual igualmente se referem todas
as partes da circunferência: tu não és assim". Isto é: "Eu sou
constante, tu mudas freqüentemente de propósito".
(14)
Em vernáculo.
(15)
Cf. cap. XXXVIII: "Nesse
soneto, etc".
(16) Divergem os comentaristas na interpretação dessa
passagem, sem que nenhum a tenha esclarecido satisfatoriamente.
(17) Instrumentos —
olhos. Dante sentia a vista perturbada pelo Amor, o qual, para
contemplar Beatriz, queria ficar no lugar dos olhos.
(18)
Os olhos dos convidados.
(19)
Outrem, com referência a Beatriz.
(20)
Aos seus convidados.
(21)
Alusão ao poeta Guido Guinizelli.
(22)
.. .amorosa… repousa: sacrificando-se a rima à fidelidade.
(23)
Sem ato vil: sem ato baixo, grosseiro, repreensível.
(24)
Guido Cavalcanti (Cf. cap. III).
(25) No
original, prima verrá "a que virá na frente",
tendo Dante querido fazer um trocadilho.
(26)
Aristóteles.
(27)
Provençal antigo (langue d’oc).
(28)
O italiano (língua dei si).
(29)
Poetar.
(30)
O homem é, aqui, o poeta, e sua
ciência a poesia.
(31) Segundo Alfragão. Sendo outubro o primeiro mês,
junho se torna o nono.
(32)
O número 10.
(33) Dante não conhecia Tolomeu senão através das citações
de Alfragão.
(34)
O paraíso (Cf. nota 6).
(35) O sepulcro de São Tiago, em Santiago de Com-postella,
na Galliza (Espanha).
(36)
Isto é, para a Palestina.
(37)
Aquela que tornava a cidade beata,
sagrada.
(38)
Ver cap. XXXII.
(39)
Aristóteles.
(40)
O céu empíreo.
(41) Ou seja: dedicar-lhe versos que jamais foram feitos em
louvor de mulher alguma. Com efeito, na Divina Comédia, Beatriz
reaparece, transumanizada, simbolizando a teologia.
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