Eça de Queirós, biografia e obras

JOSÉ MARIA EÇA DE QUEIRÓS (Póvoa de Varzim, 1846-1900) é um dos altos representantes da moderna prosa portuguesa.

Colaborou com Ramalho Ortigão nos primeiros números das Farpas; e com o mesmo seu amigo escreveu de parceria um desses romances chamados sensacionais, isto é, destinados a explorar a doentia propensão do povo para aventuras extraordinárias e inverossímeis: o Mistério da Estrada de Sintra. Volvendo-se depois ao realismo e tomando por modelo Gustavo Flaubert, Eça de Queirós produziu: — O Crime do Padre Amaro (que falsamente foi malsinado como plágio de La Faute de VAbbé Mouret, de Zola); o Primo Basilio, onde o naturalismo não recuou diante da torpeza; O Mandarim; A Relíquia; Os Maias; A ilustre Casa de Ramires; A Correspondência de Fradique Mendes; e A Cidade e as Serras obra esta que se publicou póstuma. E ainda: — Contos; Prosas Bárbaras; Cartas de Inglaterra e Ecos de Paris.

Eça de Queirós foi cônsul de Portugal em Cuba, em Bristol e em Paris, onde faleceu. Com o nosso compatriota Eduardo Prado êle manteve relações da mais cordial e fraterna amizade.

Sobre o mérito deste operoso talento, parece-nos bem formulado o juízo do Sr. Jaime de Séguier, quando assim resume as notas características de tão brilhante obra literária: — "um estilo original e colorido, embora por vezes incorreto e maculado de estrangeirismo inúteis; uma visão Ingularmente pessimista dos homens e das coisas; e os mais raros dotes de observação, de humorismo e de ironia, que bastam só por si para assegurar a Eça de Queirós um lugar inteiramente à parte na galeria dos grandes escritores do seu país".

Tormes – Trecho selecionado da Obra A Cidade e as Serras de Eça de Queiróz

O rio defronte descia, preguiçoso e como adormentado sob a calma já pesada de maio, abraçando, sem um sussurro, uma larga ilhota de pedra que rebrilhava. Para além a serra crescia em corcovas doces, com uma funda prega onde se aninhava, bem junta e esquecida do mundo, uma vilazinha clara. O espaço imenso repousava num imenso silêncio. Naquelas solidões de monte e penedia, os pardais, revoando no telhado, pareciam aves consideráveis. E a massa rotunda e rubicunda do Pimentinha dominava, atulhava a região.

— Está tudo arranjado, meu senhor! Vêm aí os bichos!. ..’ Só o que não calhou foi um selinzinho para o jumento!

Era o carregador, digno homem, que voltava da Giesta, sacudindo na mão duas esporas desirmanadas e ferrugentas. E não tardaram a aparecer no córrego, para nos levarem a Tormes, uma égua ruça, um jumento com albarda, um rapaz e um podengo. (296). Apertámos a mão suada e amiga do Pimentinha. Eu cedi a égua ao senhor de Tormes. E começamos a trepar o caminho, que não se alisara nem se desbravara desde os tempos em que o trilhavam, com rudes sapatões ferrados, cortando de rio a monte, os Jacintos do século XIV! Logo depois de atravessarmos uma trêmula ponte de pau, sobre um riacho quebrado por pedregulhos, o meu Príncipe, com o olho de dono subitamente aguçado, notou a robustez e a fartura das oliveiras… E em breve os nossos males esqueceram (297) ante a incomparável beleza daquela serra bendita!

Com que brilho e inspiração copiosa a compusera o divino Artista que fêz as serras, e que tanto as cuidou, e tão ricamente as dotou, neste seu Portugal bem amado! A grandeza igualava a graça. Para os vales poderosamente cavados, desciam bandos de arvoredos, tão copados e redondos, dum verde tão moço, que eram como um musgo macio, onde apetecia cair e rolar. Dos pendores, sobranceiros ao carreiro fragoso, largas romarias estendiam o seu toldo amável, a que o esvoaçar leve dos pássaros sacudia a fragrância. Através dos muros seculares, que sustem as terras, liados pelas heras, rompiam grossas raízes coleantes, (298) a que mais hera se enroscava. Em todo o torrão, de cada fenda, brotavam flores silvestres. Brancas rochas, pelas encostas, alastravam a sólida nudez do seu ventre polido pelo vento e pelo sol; outras, vestidas de líquen e de silvados floridos, avançavam como proas de galeras enfeitadas; e, dentre as que se apinhavam nos cimos, algum casebre que para lá galgara, todo amachucado e torto, espreitava pelos postigos negros, sob as desgrenhadas farripas de verdura, que o vento lhe semeara nas telhas. Por toda a parte a água sussurrante, a água fecundante. Espertos regatinhos fugiam rindo com os seixos, (299) dentre as patas da égua e do burro; grossos ribeiros açodados (300) saltavam com fragor de pedra em pedra; fios direitos e luzidios como cordas de prata vibravam e faiscavam das alturas aos barrancos; e muita fonte, posta à beira de veredas, (301) jorrava por uma bica, beneficamente, à espera dos homens e dos gados. Todo um cabeço, por vezes era uma seara, onde um vasto carvalho ancestral, (302) solitário, dominava como seu senhor e seu guarda. Em socalcos verdejavam laranjas rescen-dentes. Caminhos de lajes soltas circundavam fartos prados com carneiros e vacas retouçando (303), ou, mais estreitos, entalados em muros, penetravam sob ramadas de parra espessa, numa penumbra (304) de repouso e frescura. Trepávamos então alguma ruazinha de aldeia, dez ou doze casebres, sumidos entre figueiras, onde se esgaçava, fugindo do lar pela telha-vã o fumo branco e cheiroso das pinhas. Nos cerros remotos, por cima da negrura pensativa dos pinheirais, branquejavam ermidas. O ar fino e puro entrava na alma, e na alma espalhava alegria e força. Um es-parso tilitar de chocalhos, de guizos, morria pelas quebradas. .. (305).

Jacinto adiante, na sua égua ruça, murmurava: — Que beleza!

E eu atrás, no burro de Sancho, murmurava: — Que beleza!

Frescos ramos roçavam os nossos ombros com familiaridade e carinho. Por trás das sebes, (306) carregadas de amoras, as macieiras estendidas ofereciam as suas maçãs verdes, porque as não tinham maduras. Todos os vidros de uma casa velha, com a sua cruz no topo, refulgiram hospitaleiramente quando nós passamos. Muito tempo um melro nos seguiu, de azinheiro’ a olmo, assobiando os nossos louvores. Obrigado, irmão melro! Ramos de macieira, obrigado! Aqui vimos, aqui vimos! E sempre contigo fiquemos, serra tão acolhedora, serra de fartura e de paz, serra bendita entre as serras!

Assim, vagarosamente e maravilhados, chegamos àquela avenida de faias, que sempre me encantara pela sua fidalga gravidade. Atirando uma vergastada ao burro e à égua, nosso rapaz, com o seu podengo sobre os calcanhares, gritou: — Aqui é que esternos, meus amos!

E ao fundo das faias, com efeito, aparecia o portão da quinta de Tormes, com o seu brasão de armas, de secular granito que o musgo retocava e mais envelhecia.

Dentro já os cães ladravam com furor…

(A Cidade e as Serras, cap. VIII, pp. 199 e segs.)

Glossário de Português

(296) — podengo = cão de caça.
(297) esqueceram = foram esquecidos,
saíram da lembrança.
(298) coleantes = serpeantes, sinuosas, flexuosas.
(299) seixo = pedra, calhau, rêbo; do lat. saxu.
(300) açodados = apressados, precipites, rápidos, céleres.
(301) vereda = trilha, senda, devesa, caminho estreito.
(302) ancestral está aí com o sentido de muito antigo, remoto. É um galicismo que alguns justificam quando empregado cientificamente no campo da evolução dos seres: mas que se não deve usar com a signi-fiaação de avito, antepassado ou antecessor, os avós, enfim, por desnecessário. O termo fr. ancêtre, antepassado, vem, realmente, do lat. antecessor, cujo acusat. antecessorem, passou ao português com pequena alteração.
(303) O sentido aí do verbo retouçar
é pastar, comer, pascer, ruminar.
(304) O pref. pene (do adv. lat. paene = quase) aparece no vernáculo em peneplanície, península,
penumbra, penúltimo,
(305) quebradas — subentende-se o termo terras: terras rotas, vincadas, quebradas pelas águas; são ladeiras ou declives nas encostas.
(306) No Brasil diz-se cerca, em vez de sebe; este do lat. sepe, fila, tapume de separação; aquele de circa, em redor, perto. A sebe é quase sempre constituída de plantas ou ramos que vicejam e florejam: é a sebe viva.


Seleção e Notas de Fausto Barreto e Carlos de Laet. Fonte: Antologia nacional, Livraria Francisco Alves.

 

 

 

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