INTRODUÇÃO AO ENSAIO UMA POÉTICA DA MÚSICA EM MARTIN HEIDEGGER:
OS DOMÍNIOS DA POESIA E O CANTO DOS POETAS, Isabel Rosete
Artista de ontem e de hoje,
que é a arte?
Não me respondeis.
Dissimulai-vos, adormeceis, bem vejo.
Mas gritai, acordai, por Júpiter,
pai dos deuses!
Ensinai-me de uma vez o que é a arte.
Irene Lisboa
“Holz lautet ein alter Name für Wald. Im Holz sind die meist verwachsen jäh im Unbegangenen aufhören. Sie heiben Holzwege.
Jeder verläuft gesondert, aber im selben Wald. Oft scheint es, als gleiche einer dem anderen. Doch es scheint nur so. Holzmacher und Waldhüter kennen die Wege. Sie Wis-sen, was es heibt, auf einem Holzweg zu sein.”[2]
M. Heidegger
“Bosque soa a um antigo nome para floresta. No bosque há caminhos, a maior parte das vezes emaranhados (ver-wachen) matagais que terminam repentinamente.
Cada um explora o seu caminho, mas na mesma floresta. Frequentemente, parece que um é análogo ao outro. Mas não é senão uma aparência. Lenhadores e silvícolas conhecem os caminhos. Sabem o que significa estar nos caminhos da floresta (Holz-wege)”.[3]
M. Heidegger
I – Problemática e Percurso de Investigação: o Tema e o Autor
Nos Tempos Modernos, os nossos e os de Heidegger, vemos lançada a apologia incontornável do “extraordinário progresso” da humanidade, onde a grandeza e a miséria co-habitam indiscriminadamente no mesmo solo, onde reina uma “espécie” de Homem que da Natureza se desgarrou como se fosse, por direito próprio, seu dono e senhor absoluto.
O Pensamento, assim confrontado com desconcertantes e inauditos cenários, vê-se instigado a estabelecer conexões capazes de produzir um novo solo para a reflexão filosófica e, quiçá, para criar outras redes conceptuais suficientemente potentes para acolher a inquietante complexidade da situação presente e do futuro que já se adivinha.
Coligindo diversas épocas, atravessando as diferentes correntes filosóficas que integram o Pensamento Ocidental ao mesmo tempo que procura, de certo modo, ultrapassar os limites do até então pensável, a filosofia heideggeriana contrapõem-se à velocidade contemporânea e aos seus previsíveis efeitos de desmobilização da reflexão crítica, do ritmo paradoxalmente denso e insustentavelmente leve de um pensar que, desconhecendo a sua propria essência, identifica falsos problemas, apresenta questões mal colocadas, aposta no esquecimento dos autênticos parâmetros axiológicos, ontológicos e humanitários, como se se tratasse de um verdadeiro convite à sua própria reinvenção.
Lançamos as vias da nossa perscrutação onto-eco-artística, estando cientes de que compreender a filosofia de Martin Heidegger não significa apenas alterar a nossa mundivisão, o modo como temos vindo a perspectivar, a pensar ou a escutar o Mundo em que vivemos. O apelo do filósofo é deveras mais profundo e incisivo: urge mudar completamente o sentido da orientação do nosso olhar e da nossa escuta; encontrar o caminho da plena autenticidade a traçar pela audio-visão de nos mesmos, seres errantes assim projectados numa existência de liberdade e de responsabilidade, seres-no-mundo e seres-para-a-morte, algures procuramos o esquecido sentido do Ser, a sua presença originária, as formas mais radicais de des-velamento do mistério da simples gratuitidade existencial de todas as coisas que, pela Arte, qual forma privilegiada do fazer humano, se dão no seu desfloramento primordial.
Somente situados neste caminho de abertura, poderemos ser conscientemente invadidos pela mais derradeira das questões, depois daquela que pergunta «Porquê é afinal ente e não antes Nada?»[4]: com que arte de Poeta poderemos continuar a habitar nesta Terra assim manipulada pela civilização técnico-científica, onde a salvaguarda da originariedade do Ser e do Homem parece não ser mais possível, apesar de, em tempo de infortúnio, sabemo-lo pela boca do Poeta, onde cresce o perigo reside também o que salva?
Meditar sobre a filosofia do Pensador da Floresta Negra significa, antes de mais, pensar toda a Filosofia, percorrer, em pormenor, a história do próprio Pensamento; fazer emergir todas as interrogações que colocámos e continuaremos a colocar, quiçá ad infinitum, sobre os planos do Ser e do Existir.
Heidegger encaminha-nos para os domínios do in-habitual. Conduz-nos a recuperar essa ligação primeira entre o Pensar,o Ser, o Homem e a Linguagem, ao mesmo tempo que nos faz re-haver o sentido do Ser perdido nas malhas da Metafísica que tudo subordinou aos enunciados estruturais da Lógica, primando por um plano meramente ôntico e não mais ontológico.
Fig. 2, Rodin, «O Pensar», 1889 [5]
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Fig. 4, Wim Wenders, «Der Himmel Über Berlin»,1987 |
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A Arte do Poeta, também a Arte das Musas, é aqui entendida como a mais genuína das manifestações onto-artísticas que a humanidade até hoje concebeu: «A Poesia não é nenhum errante inventar do que quer que seja – esclarece Heidegger, contrariamente às opiniões comummente lançadas a seu respeito – não é nenhum oscilar da mera representação e imaginação no irreal»; «o que a Poesia, enquanto projecto clarificante, desdobra na desocultação e lança no rasgão da forma, é o aberto que ela faz acontecer e, decerto, de tal modo que, só o aberto em pleno ente traz este à luz e à ressonância»[8].
Na Poesia repousam as autênticas respostas às invisíveis mensagens do Ser. No seu seio habitam os desígnios mais secretos da humanidade e os traços do seu destino. A voz que pela Poesia ecoa é a voz do Ser, há muito lançada no mais sórdido silêncio.
Desde o terminus da aurora grega que deixámos de ser capazes de escutar a mensagens mais evidentes pelo Ser arremessadas. E isto porque – depois da instauração da Metafísica, que consigo arrastou a surdez geral da humanidade e o obscurecimento do pensamento – jamais «o pensar é, ao mesmo tempo, pensar do ser, na medida em que o pensar, pertencendo ao ser, escuta o ser»[9].
Por isso «antes de falar, o homem deve novamente escutar, em primeiro, o apelo do ser, sob o risco de, dócil a este apelo, pouco ou raramente algo lhe restar a dizer. Somente assim será devolvida à palavra o valor da sua essência e o homem será agraciado com a devolução da casa para habitar na verdade do ser»[10].
Pensamos a Poesia, para Heidegger a essência da Arte[11], bem como todas as artes que dela participam, em correlação com a “questão do sentido do Ser” e da Verdade, e com a problemática da sua origem. E o Poeta, aquele que «fala sempre como se o ente fosse exprimido e mencionado pela primeira vez», [12] como o Ek-sistente exemplificador do ser próprio do artista e da Arte – pois «a arte acontece na Poesia» [13] –, em relação directa com essa questão central, ponto nevrálgico, que percorre todos os momentos da reflexão heideggeriana.
Ouçamos a voz da Poesia, a voz dos Poetas, que mesmo do alto das montanhas, sentados entre os surdos ouvidos dos homens, escutam as mais ténues vibrações do vazio[14]. Escutemos os seus cantos e descodifiquemos as suas profecias. Centremos a nossa atenção nas mensagens que desses cantos emanam. Privemos com eles dessa intimidade que mantêm com o Ser e não nos fixemos mais apenas nos domínios do ente, cuja “diferença ontológica” a Metafísica não foi capaz de pensar:
«A Metafísica – alerta Heidegger – representa realmente o ente em seu ser e pensa assim o ser do ente. Mas ela não pensa a diferença entre ambos. (…) A Metafísica não levanta a questão da verdade do ser-ele-mesmo. Por isso ela jamais questiona o modo como a essência do homem pertence à verdade do ser. Esta questão, a Metafísica, até agora ainda não a levantou. Esta questão é inacessível para a Metafísica enquanto Metafísica». Por conseguinte, «o ser ainda está à espera que ele mesmo se torne digno de ser pensado pelo homem»; «”questão do ser” permanece sempre a questão do ente»[15].
Eis o contexto onde encontramos lançadas algumas das mensagens centrais de toda a filosofia heideggeriana, que importa não apenas reter, mas, sobretudo, re-erguer:
a) Trazer de novo à luz o Ser na sua originariedade, pensando radicalmente a “diferença ontológica”;
b) Encontrar o princípio do princípio;
c) Recuperar a nossa verdadeira essência enquanto "sere(s)-aí";
e) Restituir à Arte essa nobre missão de des-velamento do Ser e do destino historial dos escassos fios de Humanidade que ainda nos restam.
Aceitar estes desafios, lançar-mo-nos numa nova aventura humana onto-ecológica, que pela obra de arte se expressa na sua autenticidade iluminatória, significa: entrar em conformidade plena com o canto da Terra emitido, em uníssono, pelos "Poetas de Heidegger"; penetrar na harmonia das melodias musicais dos “caminhos do campo”, entoadores dos sons originais da Natureza, hoje perpassados pelo ruído das máquinas, embora sempre conducentes à origem da origem, aos desígnios primeiros da Humanidade na sua virgem união umbilical com a Terra, a esse estado primeiro de serenidade e de busca pela eternidade:
«Mas o caminho não nos fala senão desde há muito dos homens, nascidos no ar (…). Eles são os servos da sua origem, mas não os escravos do artifício. É em vão que o homem pelos seus planos se esforça por impor uma ordem à terra, se ele próprio não é comandado pelo apelo do caminho. O perigo ameaça, porque os homens de hoje não têm mais orelhas para ele. (…) Assim o homem se dispersa e não tem mais o caminho. (…) Graças à poderosa tranquilidade do caminho do campo, eles podem um dia sobrevier às forças gigantescas da energia atómica (…)», na medida em que só «a palavra do caminho transporta um sentido que ama a liberdade do espaço e que (…) se eleva acima da própria aflição para chegar a uma serenidade última. Isto opõe-se à desordem. (…) Mas tudo se torna sereno numa harmonia única, quando o caminho no seu silêncio trás o eco. A serenidade é um passo dado sobre a eternidade. (…) Pelo apelo da Origem longínqua, uma terra natal nos é restituída.»[16]
É neste contexto que revisitamos Rainer Maria Rilke, o poeta que mergulha Heidegger no âmago da modernidade e em cuja obra encontramos desenvolvidos alguns dos grandes temas que perpassam o próprio caminho onto-artístico heideggeriano.
Rilke, em certo sentido "mal tratado" por Heidegger (ainda é um poeta metafísico), é ao mesmo tempo intencionalmente rememorado, em tempo de infortúnio, em «Porquê os Poetas…?» – depois de mais uma consagração de Hölderlin.
![]() Fig. 5, Caravaggio, «Amor Victórious», 1602-3. [17] |
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Rainer Maria Rilke é o poeta do Aberto, do sossego musical, da diferença ontológica, do canto e da celebração da Terra, do Começo, dos Contrastes, qual cantor órfico da Vida e da Morte. É o poeta do Visível e do Invisível, dos Anjos e dos Homens, do In-habitual, mas também do Jogo, da Gravitação, da Esfericidade e desses “caminhos que não conduzem a parte alguma”:
«Caminhos que não conduzem a parte alguma,
entre dois prados,
que nós diríamos com arte que
do seu princípio foram desviados
caminhos que não têm
senão à sua frente
o puro espaço existente
e o tempo em que se está.»[18]
Invocaremos, de um modo muito particular, Friedrich Hölderlin, o Poeta eleito por Heidegger, entre todos aqueles a quem o filósofo dedica as suas incursões hermenêuticas pelos domínios da “Grande Poesia”. Hölderlin é mesmo o arauto da “Grande Poesia”. É o “Poeta do Poeta”, o Poeta em quem Heidegger viu encarnar a essência da Poesia.
Aliás, o último gesto representativo do filósofo, pelo qual resumiu todos os seus esforços filosóficos de mais de sessenta anos, é marcado pela fixação quase obsessiva neste Poeta que, há mais de cento e setenta anos, “fracassou” por ser vítima de loucura.
Poderemos determinar a especificidade da filosofia de Martin Heidegger tendo como ponto de partida basilar o seu encontro com Hölderlin, sobretudo depois da “Kehre”, da viragem[19], momento a partir do qual assistimos ao encaminhamento do seu pensar para uma meditação decisiva sobre a Arte, a Técnica, a Linguagem e, mais particularmente, sobre a Poesia, esses outros modos de colocar a questão do sentido do Ser e da Verdade?
Heidegger dar-nos-ia, sem reservas, uma resposta afirmativa. Atentemos simplesmente no facto de que vivemos numa época cujo conhecimento intrínseco nos escapa; numa época em que os deuses abandonaram os homens depois de se ausentaram da Terra, que não é mais “um berço pacífico”[20]; numa época marcada pelas hipérboles tecnológicas que corroem a essência da Natureza. Resta-nos uma vaga “presença” do sagrado, dos deuses de outrora que apenas se “manifestam”, agora e sempre, pela boca do Poeta, o seu intermediário directo e delineador de todos os caminhos:
«(…) o que de resto é destino e cuidado do homem
Em casa ou sob o céu aberto,
(…) Confiada ao cuidado e aos serviços dos poetas.
O Altíssimo é a quem nós pertencemos,
Pra qua mais próximo e sempre de novo cantado
O Oiça o peito que o ama.»[21]
Afinal, o Poeta, exemplarmente representado por Hölderlin, vive no tempo intermédio entre a geração decadente e a geração por nascer. Vive entre os Anjos e os homens, entre o celeste e o terrestre, entre o passado e o futuro. Mas, e mesmo “entando-entre”, sobretudo porque está “entre”, é sempre a Voz que se nos impõe que escutemos como um grito de alerta.
O ver é simplesmente insuficiente. Até mesmo nefasto: ofusca, cega. O reino do olhar destrona-se, tal como toda a Metafísica fundada no paradigma da visão. A orelha, em Heidegger, impera, e com ela se ergue um outro paradigma, o da audição.
É preciso fazer justiça à orelha. É ela que nos fala impregnada de vida, ao mesmo tempo que ecoa, bem alto, a voz do Ser, dos deuses e dos Poetas, que urge escutar até ao nível dos infra-sons. Sobretudo escutar. E escutar sempre.
São os sons que nos chegam, dissemelhantes e constantemente de todos os lados, que nos fazem vibrar com a maior das intensidades. E vejamos que a orelha não é somente um instrumento de um incomparável prazer. Associada à voz, de onde o olho é excluído, faz-nos “ver” e “sentir” o mundo na sua múltipla diversidade interior, pois as palavras, na sua sonoridade específica, estão naturalmente em vez das coisas, presentificando-as de cada vez que são proferidas:
«Portanto a linguagem faz bem crédito à orelha: entender pode significar compreender, e a teoria das faculdades atribui a compreensão ao entendimento. O ouvido inspira pois uma metáfora análoga àquela que suscita a vista. (…) Nomear o entendimento é suficiente para sugerir que a audição joga a dois níveis, o corporal e o espiritual. E a metáfora que passa de um para o outro pode receber a mesma justificação que aquela que concerne à visão; no princípio do poder de entender, há as orelhas do corpo».
E mesmo não havendo uma semiologia acústica tal como existe uma semiologia gráfica, «é para servir a causa do saber à qual o espírito se circunscreve que o ouvido se exerce e se afina. Não é suficiente entender, é preciso escutar, e do escutar devém a auscultação. (…) O sonoro é pois interrogado para o benefício do saber»[22].
O olho abre-se tanto ao infinitamente grande como ao infinitamente pequeno. Mas não recolhe, como a orelha, «o canto dos golfinhos no mais profundo dos mares»[23]. As imagens são efémeras, fugidias, meros flashes que nos impressionam por poucos instantes. Os sons ficam com as palavras que os emitem e guardam na memória. Permanecem eternamente em nós, como a voz da deusa Eco nos ouvidos de Narciso.
![]() Fig. 6, Salvador Dali, «Solidão, o Eco Antropomorfo», 1931 |
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musical, transmitem a grande lição da essência do ser no Mundo. Transpõem-nos para além dos delírios da fé e da razão. E o mesmo diremos a respeito da «música, à qual a reflexão sobre a arte nem sempre faz justiça, inspirada que é pelo imperialismo do olho, obsessão das artes plásticas. (…) Se portanto a orelha tem menos prestígio do que o olho, é porque opera com mais descrição»[24].
O sopro inaugural de cada som atravessa todo o opus poético. Cada verso é tão-só um fragmento do som universal que dispersamente se faz ouvir; a frase musical de um mesmo e único Poema, aquele que o Ser começou, trazendo consigo o contraste do quilate da peça inteiriça autêntica nas sílabas lavradas pelo demiurgo. Em cada verso se inventa a frase musical que repete, incessantemente, todos os sons.
“Ut musica poiesis”, “a poesia compõe-se como a música”, para além de “ut pictura poiesis”, “a poesia compõe-se como a pintura”, ou seja: o opus poético compõe-se e rege-se segundo a clave e a escala da partitura musical. “A poesia é coisa de um sopro”, e o Poeta, à semelhança de Orfeu, é o senhor do mais genuíno sopro que consigo trás a voz clara e límpida, mas apenas sonante para nos ouvidos permanecentes no “Aberto”.
![]() Fig. 7, Matilde Marçal, «Sinfonia Pictórica III», s.d. [25] |
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Poeta ou o Poeta a morada do Poema, a Música a morada do Compositor ou o Compositor a morada da Música.
Não se pode, porém, ungir o Poeta ou o Músico – que a limite são o mesmo, na medida em que nos presentificam o mundo através dos sons – com uma sagração maior que esta de conhecer e re-conhecer o Ser como o habitante de cuja voz emana, em cada acto, a sonoridade do seu Dizer.
O Poema sabe mais do que o Poeta. Sabe mais e vive mais, pois o Poeta só há-de durar enquanto permanecer o seu Poema. E o Poema dura para sempre, até mesmo para lá da história, quando o momento genesíaco que lhe deu forma e a liberdade do seu corpo se situar, de igual modo, para lá da história, quiçá no regaço da sonoridade mais ínfima do mistério, no território da aurora dos tempos imemoriais; quando nessa linguagem original os vivos saudarem os mortos e os mortos saudarem os vivos, assim como a vida e a morte se cantam exactamente no mesmo tom.
O Poeta é hóspede do Poema, sendo ambos e ao mesmo tempo hóspedes e hospedeiros da Poesia. Mesmo que aceitemos a tese segundo a qual a Poesia e o Poeta não ensinam nada sabemos, porém, que proferem o Oráculo, que é o próprio Poema, qual fonte de revelação primogénita de todas as coisas, sobretudo daquelas que estão por vir.
Aceitamos o confronto com o chamado conhecimento lógico, auto-limitado e esgotado na epiderme conceptual, incapaz de pisar as zonas medulares do conhecimento mágico, intuitivo, talvez até mesmo enigmático, onde dormita a fermente Beleza – que é tão-só para Heidegger o brilho da Verdade (Wahrheit -άλήθεια) que pela obra da arte se epifaniza – de todas as coisa vivas, rasto dos tempos aurorais sempre lembrados pelo Poeta, pastor da memória genealógica da criação.
Se a lembrança brota do esquecimento, como ensinara Platão, o Poeta é o alquimista das próprias alquimias da memória, fazendo ressuscitar a lembrança da beleza primogénita de todos os entes, de todas as circunstâncias da vida e da memória de um povo, quando desce das alamedas do Olimpo até aos abismos mais profundos do Hades.
Mesmo que a voz do Poeta e o Poema sejam sempre uma metáfora, segundo as palavras de Michael O’Neill, Heidegger sabe como tudo se transforma num enigma, como o nosso século assistiu a uma salubre inquietação poética, da qual resultaram, a um tempo, fecundas aberturas, estéreis paroxismos e desvios erráticos, também no campo das artes em geral. E é da própria inquietação emergente da arte contemporânea que se trata aqui.
De qualquer modo a Poesia é, na sua essência, a palavra pelo sopro e pelo som. O verso é sonoro. Inevitavelmente, do domínio do audível. É ritmo e som, coligindo em si mesmo todos os ritmos, sobretudo os enumeráveis.
Toda a Poesia tem o seu tom e o seu som. A Poesia “é, especialmente, o seu tom”, observa Jorge Luís Borges. Quando lemos Hölderlin parece que ouvimos o tom da sua voz, jamais confundível com o tom da voz de Rilke, de Baudelaire, de Rinbaud, de Char ou de Hebel.
O ritmo está mesmo é no sopro do Poeta. Assim como o músico que sabe apenas “tocar de ouvido” e não consegue somente com o auxilio dos seus recursos naturais elevar-se à partitura do opus mozartiano ou bachiano, também o Poeta necessita, para o lavor do Poema duradouro, cultivar a sua matéria-prima, a “palavra-de-origem”, e o seu jogo dentro de uma sintaxe muito especial. O Poema visita sempre a música, tal como visita a pintura e todas as outras artes: o perfume, a cor, a palavra e o som correspondem-se umbilicalmente.
Fig. 8, Salvador Dali, «Fonte Necrofílica Correndo de um Piano de Cauda», 1933.[26]
O Poema é o λόγος. Pelos seus mais finos poros respiram os sons das palavras, umas sobre as outras, ou umas debaixo das outras, com uma força dominadora, quiçá dionisíaca, des-construindo para construir, na ânsia da grande ternura genesíaca, à semelhança dessa mesma ternura que reside na flor que se destrói para depois consumar o fruto.
Assim se torna inteligível a ideia segundo a qual a verdadeira Poesia é a que retorna aos lugares sagrados da Grécia, τόπος original do Poema, onde «o Divino adormece» (…) e «onde a Terra, desde devastações e tentações dos santos, / Segue grandes leis, a concórdia / E a ternura e todo o céu depois / Aparecendo, cantam / Nuvens canoras. Pois sempre vive / A Natureza. Onde porém o ilimitado / Por demais anseia a morte»[27].
Hölderlin canta, com particular acuidade, a Pátria desse habitar historial, aí na proximidade do Ser; canta a Terra Natal, a Grécia, o berço sagrado do que ainda somos. É mensageiro da voz do seu Povo, ao mesmo tempo que celebra os frutos da Natureza, «O Pão e o Vinho», e as suas dádivas originais: os rios que correm livremente, os bosques, as árvores, as vinhas, as aves…; e também os homens, o céu, Deus e os deuses. «Hölderlin preocupa-se ao compor o “Retorno”, para que os seus “contemporâneos” reencontrem o lugar do seu desdobramento essencial»[28].
É pela sua Poesia que essa proximidade com o Ser é entendida numa linguagem mais radical, ao mesmo tempo que é nomeada a Pátria a partir da experiência metafísica do esquecimento do Ser:
É «nesta proximidade que se realiza – caso um dia aconteça – a decisão se e como o Deus e os deuses se recusam e a noite permanece, se e como amanhece o dia sagrado, se e como no surgimento do sagrado, pode começar uma manifestação de Deus e dos deuses.»[29]
Tornou-se evidente para Heidegger, desde a sua primeira obra sobre Hölderlin (datada dos anos 30) que a singularidade da Filosofia, do Pensamento, tinha de ser determinada pela exposição a esse outro da Poesia (Dichtung), à espessura e densidade do poetizar (Dichten). Heidegger sabe que a Poesia, à semelhança da Filosofia e do Pensamento, é tão-só uma questão de escutar o chamamento do outro início nas ressonâncias do Princípio do Princípio.
Por isso o filósofo também convoca Sófocles, Rilke, Char, Trakl e Hebel, igualmente «amigos da casa do mundo», e por quem somos convidados a habitar poeticamente nesta Terra desolada, onde ainda assentamos os nossos pés, embora em pleno equilíbrio oscilante.
Apesar de todo o nosso vandalismo ecológico, marcadamente visível nestas últimas décadas, a voz do Poeta ainda re-ergue a esperança de voltarmos à «Terra que canta trabalhando / terra feliz de labor querido; / enquanto as aguas prosseguem cantando, / a vida tece o seu tecido gota a gota. / Terra que se cala porque o silêncio das aguas / é puro excesso de silêncio desmedido, / desse silêncio que se cria netre palavras, / essas palavras que, aos ritmos, avançam.»[30]
São em especial estes Poetas, enquanto representante da “Grande Poesia”, os mensageiros do divino, do primordial canto inebriante de Orfeu, para sempre traído por um simples olhar para trás. São eles, também, os Poetas do canto da Terra e da Palavra do Ser que, tal com o Sol, transportam consigo a mais deslumbrante e tenebrosa luz nos trilhos do fogo de Prometeu.
![]() Fig. 9, Jan Cossiers, «Prometeu trazendo o fogo», s.d.[31] |
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Passados tantos séculos, ainda está para nascer quem o virá salvar. Ainda está para chegar quem salvará essa “sombra de um sonho que é o homem”, diz Píndaro, para sempre marcado pela imprudência e ingenuidade de Epimeteu, qual “fada doida num dia de festa”, prestidigitador de curiosidades bem agradáveis, embriagado pelos acordes que a lira de Apolo sugeria às musas.
Fig.10, Rubens, «Prometeu Acorrentado», 1[32]
Acorrentado “às alcantiladas rochas, com cadeias de aço indestrutível”, o estulto Prometeu nada ganhou em presentear a ingrata humanidade; nenhum proveito lhe adveio por ter concedido aos mortais honras que extravasam mais do que é realmente justo.[1] Por tal feito provocou a incontornável ira Zeus, sofreu um dos seus mais terríveis castigos, tendo consigo conduzido a humanidade ao tormento eterno em que hoje ainda vive.
Assim se fez o Homem contrariamente aos desígnios do “Previdente”, que um dia se atreveu a criar um ente imponente e grácil, forte e delicado, supostamente “a boa
medida de todas as coisas” e de cujas mãos estava previsto brotar a harmonia do todo de uma forma belíssima.[33]
II -Objectivos Investigação
Tecidas as considerações sobre o tema e a problemática da investigação que nos propusemos desenvolver, importa agora definir com mais precisão, os objectivos principais que perpassam as nossas incursões temáticas sobre a filosofia da arte do mais íntimo “Pensador da Terra”.
A partir das reflexões de Martin Heidegger sobre a Arte, a Técnica, a Pintura, a Linguagem, a Poesia e a Música, inscritas no seu projecto de des-construção da estética metafísica e da pós-modernidade, é nosso objectivo analisar a legitimidade do corolário que promove a Poesia a essência da Arte, tendo em consideração a questão essencial, «Porquê os poetas (em tempo de infortúnio)?», em correlação com a qual traçaremos a missão da Poesia nos Tempos Modernos, correlativamente com o lugar de destaque conferido ao Canto dos Poetas.
Reflectiremos sobre a relação patenteada entre Poesia, «criação», «abertura» e «inovação ontológica», verificando de que modo, pela Poesia, se instituem mundos históricos e como o habitar poético do Da-sein nos conduz à presença dos deuses e à proximidade da coisas;
Consequentemente, é também objectivo deste estudo, apresentar uma análise reflexiva sobre as noções de «poética», «poética da música», «escuta», «anúncio», «apelo», «mensagem», «diálogo» e «discurso», tendo em consideração as significações utilitárias e poéticas do Mundo.
Falaremos do discurso poético-musical como palavra do Ser e do universo do discurso na sua relação com a análise existencial do Da-sein, cuja posse da linguagem manifesta a originariedade da sua Ek-sistência específica.
Fig. 19, Caravaggio, «Os Músicos», 1596[34]
Salvaguardaremos, com Heidegger, o privilégio da Poesia no seio de todas as artes e, consequentemente, o privilégio do Poeta, aquele que funda o que permanece, como arauto de toda a significação artística.
No âmbito deste quadro conceptual e das questões já levantadas, centrar-nos-emos, particularmente, sob os esclarecimentos tecidos por Heidegger à Poesia de Hölderlin, no intuito de indagarmos sobre a essência da Poesia e sobre a essência da Linguagem, seguindo o caminho delimitado pelo conteúdo significante das «cinco palavras condutoras» proferidas pelo Poeta:
1- A Poesia como acto originário de fundação do Ser pela palavra;
2- O poetizar como privilégio do homem e testemunho da sua identidade;
3- O homem como Diálogo que, pela boca do Poeta, sabe que onde reside o perigo se encontra, também, a salvação.
Seguiremos os caminhos propostos por Heidegger e por Van Gogh, tentando limar algumas das arestas deixadas em bruto pela Estética erguendo, simultaneamente, espaços de problematização não absolutos.
Fig. 20, Eba Nalda Querol, «Pausa Final», 2001.
Teremos a oportunidade de confrontar a interpretação heideggeriana da Arte, tomada no seu sentido originário, quer dizer, como “Grande Arte”, com a arte moderna, marcada pela realidade do projecto cibernético da constelação “gestéllica”, da com-posição programada informaticamente do conjunto dos entes à escala planetária e da pro-vocação da Natureza.
Verificaremos como as obras de arte de hoje não têm mais as suas origens nas fronteiras de um mundo de povos e nações históricas. Pertencem à universalidade da civilização mundial, organizada e projectada pela Técnica, a cujas consequências nefastas urge colocar uma “pausa final”.
Dizer “não” à alienação, à decadência do mundo físico e espiritual hodierno é, seguramente, uma obrigação estrita de quem tem consciência plena dos limites imperativos a que se deve submeter o sentido ético associado ao poder das extraordinárias invenções humanas.
É neste âmbito, malgrado, que se decide sobre o modo e as possibilidades do estado de ser do homem, sobrevivente num Mundo historicamente determinado pela pura tecnicidade degenerativa da relação entre as coisas, desenraizado do “Astro Errante” (expressão utilizada por Edgar Morin como sinónimo do Planeta Terra), onde apenas mora e jamais habita, descarnado das suas origens: «(…) Já só temos relações puramente técnicas. Já não é na Terra que o homem hoje vive. (…) a técnica arranca o homem da Terra e desenraíza-o cada vez mais (…) Não é preciso nenhuma bomba atómica: o desenraizamento do homem já está aí. A engrenagem mais ampla da técnica moderna encerra a inter-relação do homem com o mundo e a terra desbravada e desamparada, uma vez que esta sociedade industrial existe no solo do estar-encerrado no âmbito dos seus próprios poderes (…) Já só um Deus nos pode ainda salvar. Como única possibilidade, resta-nos preparar pelo Pensamento e pela Poesia uma disposição para o aparecer desse Deus ou para a ausência do deus em declínio; preparar a possibilidade de que não (…) pereçamos perante o Deus ausente”[35].
![]() Fig. 21, Rudolfo Perassi, «Decadência», 2000 [36] |
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A Arte é pois epifania, mostração primordial do Ser na sua verdade. O exercício de ser da Arte é este mesmo: o des-cobrir en-cobridor que põe a coberto a essência dos entes nela apresentada, quer dizer:
1 – A via da ontologia da obra de arte proposta pelo pensador da Floresta Negra recusa-se a seguir os passos da teoria estética;
2 – A atitude do pensar jamais pode conceber-se como a necessidade antropológica de respostas cientificamente demonstradas e só em aparência cabais. É preciso dar voz à interrogação expectante e serena do jogador que se sabe em jogo, mesmo ainda antes de conhecer as cartas que lhe cabe jogar.
Em suma, é objectivo primacial desta investigação, reflectir “sobre o Heidegger, pensador da terra, enquanto pensador do tempo como desdobramento dos entes, pensador do Ser como a Europa nunca o soube, nem os gregos (…), pensador do futuro, do que vem, que nos abre ao habitar como mortais, como filhos da Terra, a grande doadora, nossa destinadora. Assim (lemos) Heidegger, o Geo-Logos, o pensador da Terra”.[38]
[1] Este quadro pertence a um período em que o “pintor surrealista”, segundo as palavras de Breton, utiliza novamente os assuntos das suas pinturas pormenoristas anteriores, procurando a sistematização de uma linguagem formal que culmina, precisamente, nesta obra. Trata-se de um interior bem cheio no qual vários expoentes, anteriormente usados, tais como, o galo, a enorme orelha e os olhos ligados a objectos inanimados, são combinados com outros elementos novos, nomeadamente: a escada – supostamente um símbolo pessoal de fuga – e o fragmento de um a partitura musical, para significar o som da guitarra, símbolo que se relaciona directamente com o interesse de Miró pela relação existente entre a s coisas e a linguagem, entre o significado e o significante. A partir desta obra, o artista abre o caminho para a pintura de sons, em simultâneo com os objectos visíveis. Símbolos privados e pessoais misturam-se, à semelhança do bigode de Pierrot com corpo em forma de guitarra. A linguagem de sinais de Miró desenvolve-se à medida que o pintor vai aperfeiçoando os seus símbolos pessoais, repetindo-os sempre em novas configurações, tentando deles extrair todas as nuances mágicas e poéticas.
Segundo alguns estudiosos da sua obra, os desenhos de Miró para esta pintura constituem o resultado de alucinações produzidas pela fome, de acordo com o artigo do próprio autor, “Eu sonho com um estúdio grande”. Embora esta composição apresente uma nova complexidade e leve ainda mais longe as suas distorções da forma, supõe-se que a sua inspiração se tenha movido pelo intuito de combinar a intenção de “catalogar” e o ambiente que o rodeava com a linguagem pictórica que até então desenvolvera. Ou seja: esta pintura apresenta-se como um catálogo da sua paisagem interior e não tanto como uma mera exemplificação simbólica da paisagem da Catalunha.
O cenário que nos é mostrado na tela é, sem dúvida, o seu próprio estúdio, e é como se as suas obras anteriores ganhassem ainda mais vida neste Carnaval de Arlequim. O próprio Miró – o arquétipo do catalão, o Caçador, com o seu bigode, barba, cachimbo e chapéu – é representado como Arlequim.
[2] Martin Heidegger, Holzwege, p. 2.
[3] Traduzido do original por Isabel Rosete.
[4] «Eis a questão», escreve Heidegger sobre a pergunta mais ancestral que deu origem ao pensar metafísico ocidental, esclarecendo, ao mesmo tempo, a importância que esta ainda assume no pensamento hodierno, depois das múltiplas interpretações erróneas a que foi sujeita ao longo de toda a história da metafísica. Sublinha, por isso, que «não se trata certamente de uma questão qualquer. “Porquê é afinal ente e não antes Nada?” – eis, evidentemente, a primeira de todas as questões. Sendo a primeira, não o é, porém, na ordem da sequência cronológica das questões (…). No entanto, é a primeira questão, num outro sentido, nomeadamente no que concerne ao seu grau de dignidade (Rang), (…) A questão (…) constitui-se para nós, no que diz respeito ao grau de dignidade, como primeira por ser, antes de mais, a mais vasta, depois por ser a mais profunda e, finalmente, por ser a mais originária (ursprüglich) das questões.», M. Heidegger, EM, pp. 9-10
[5] O Pensador é seguramente uma das estátuas mais famosas que se conhece em toda a história da escultura, tendo-se transformado num verdadeiro ícone da imagem do Filósofo.
Esta obra é o símbolo mais sugestivo da figura humana carregada de sincera preocupação e de profunda reflexão sobre o seu destino e sobre o destino da humanidade, presentes em toda a obra heideggeriana.
O Pensador é, para Rodin, a sua peculiar visão de Dante que medita ante o horrendo da vida. Segundo as palavras do próprio escultor: «o destino da minha obra também não me inquieta; nada de ruim pode vir dela para mim. Quem a tenha compreendido se libertará da miséria que arrasta os homens».
Esta obra seria, para Heidegger, a exemplificação perfeita do pensar meditante, em contraponto com o pensar calculante, que a técnica moderna instituiu em seu detrimento.
Digamos que, para o filósofo, se trata de pensar aquilo que hoje é, aquilo que hoje toca, ameaça e oprime a nossa existência:«a civilização em si tem por finalidade cultivar, desenvolver e proteger o ser-homem do homem, a sua humanidade. È aqui que se situa a muito debatida questão: será que a cultura técnica – e por conseguinte a própria técnica – contribui em geral, e se sim em que sentido, para a cultura humana, ou arruína-a e ameaça-a?».
Há reivindicações, mas o silêncio predomina: e «o silêncio traduz muito mais o facto de que face à reivindicação do poder pela técnica o homem se vê reduzido à perplexidade e à impotência, à necessidade de se conformar, pura e simplesmente, ao carácter irresistível da dominação tecnológica.» (M. Heidegger, Língua de Tradição e Língua Técnica, pp. 17 e 28).
[6] «Os anjos estão, portanto, em Berlim desde o fim da Segunda Guerra Mundial, condenados a permanecer aí. Não detêm já “poder”, já são apenas espectadores, assistem a tudo aquilo que acontece, sem a mais pequena possibilidade de poderem participar. Antigamente ainda podiam influenciar ou, enquanto anjos da guarda, pelo menos, sussurrar alguma coisa às pessoas, mas também isso é agora passado. Agora, estão simplesmente ali, invisíveis aos homens, vendo eles próprios, todavia, tudo». Por outras palavras, «Os anjos não só vêem tudo, mas ouvem também tudo, mesmo os pensamentos mais secretos.». W. Wenders, «Primeira descrição de um filme verdadeiramente indescritível», in A Lógica das Imagens, pp.107, 108.
[7] W. Wenders refere-se à presença dos Anjos de Rilke, de Benjamim, de Klee … e respectiva significação e influência na sua obra filmica em, «A Primeira descrição de um Filme Verdadeiramente Indescritível. Retirado de um primeiro treatment de Der Himmel Über Berlin (“As Asas do Desejo”), in A lógica das Imagens. A propósito escreve: «A posteriori é-me quase impossível determinar como nasceu a ideia de povoar com anjos a minha história em Berlim. Surgiu de muitas fontes ao mesmo tempo. Foram, sobretudo, as Elegias de Duíno de Rilke. Depois foram, já desde há muito, os quadros de Paul Klee. O Engel der Geschichte de Walter Benjamim. (…) Também uma canção dos Cure, na qual se falava de fallen angels e uma song no auto-rádio, em que apreciava o verso talk to an angel. Foi um dia no centro de Berlim, apareceu-me aquela figura dourada, o «anjo da Paz», que de anjo guerreiro da vitória evoluiu para pacifista, foi a ideia de quatro pilotos aliados lançados sobre Berlim, foi a ideia de uma coexistência e justaposição de hoje e de ontem em Berlim, «imagens duplas» no tempo e no espaço, foram, desde sempre, as imagens infantis dos anjos como observadores invisíveis e constantemente presentes; resumindo, foi, por assim dizer, a velha «nostalgia do transcendente» e foi simultaneamente também a vontade do contrário flagrante: A vontade de fazer uma comédia! A seriedade sagrada de uma comédia!» (pp. 105-106).
Nesta obra o cineasta tece os seus próprios comentários sobre as ideias/ideais que o impulsionaram à escrita dos argumentos destes dois filmes por si realizados, cuja relação de complementaridade é apresentada em termos peremptórios: «Tão Perto Tão Longe é a derradeira continuidade de As Asas Do Desejo. O Céu Sobre Berlim – tradução literal do título original alemão Der Himmel Über Berlin – Anjos [7][7] Nesta obra o cineasta tece os seus próprios comentários sobre as ideias/ideais que o impulsionaram à escrita dos argumentos destes dois filmes por si realizados, cuja relação de complementaridade é apresentada em termos peremptórios: «Tão Perto Tão Longe é a derradeira continuidade de As Asas Do Desejo. O Céu Sobre Berlim – tradução sobre Berlim, Asas do Desejo que pairam sobre os céus da capital desestruturada. Uma visão singular; um modo único de abordar um tema tão delicado quanto inquietante não só para o povo alemão, mas para toda humanidade», comenta Wenders.
[8] Heidegger, UKW, p. 58.
[9] Heidegger, op. cit., p. 37.
[10] Heidegger, op. cit., p.40.
[11] «A essência da arte é a Poesia» (…). «Toda a arte, enquanto o deixar-acontecer da adveniência da Verdade do ente como tal, é na sua essência Poesia», Heidegger, UKW, pp. 60 e 58.
[12] Cf., Heidegger, EM, p. 34.
[13] Heidegger, op. cit., p.62.
[14] Cf. Heidegger, EM, p.35
[15] Heidegger, BH, pp. 45 e 55-56.
[16] M. Heidegger, Le Chemin de Campagne, in Questions III, pp. 12, 13, 15.
[17] Caravaggio (1571-1610), pintor italiano, foi um dos expoentes mais destacados de la pintura do naturalismo barroco do começo del século XVII. Pintava soberanamente e com a especificidade dos seus traços, sobretudo as diagonais agudas que se entrechocam, louvava a vida que procurava com fúria, insubmissão e a consciência do transitório de tudo no universo. Essa consciência de que tudo passa, arde e se transforma, nunca o abandonou. Um ser típico da sua época cheia de contrastes, Caravaggio oscilava entre os temas mundanos ou pagãos e o mundo dos anjos e dos santos, de um Cristo humano e pungente, como pode ser visto em “A Ceia em Emaús” ou “A Deposição de Cristo”. O seu estilo caracteriza-se por um naturalismo quase insolente, contra a tradição idealista do Renascimento italiano, à qual juntou um estranho jogo de claro/escuro a que foi dado o nome de «tenebrismo». Ainda assim, foi um dos mais notáveis e profícuos pintores de cenas bíblicas e mitológicas. O Anjo representado nesta pintura, de asas abertas e em movimento sobre o violino, surge-nos como uma exemplificação da harmonia divina da música, a arte das Musas e dos deuses, que tudo inebria e torna sereno, numa eterna busca de um outro estado de espírito que leva a humanidade ao enaltecimento da sua interioridade espiritual.
O texto citado ao lado da pintura de Caravaggio foi extraído de Rainer Maria Rilke, As Elegias de Duíno, «Primeira Elegia», pp. 29, e 33; «Segunda Elegia», p.39.
[18] Rilke, Frutos e Apontamentos, 217.
[19] Habitualmente, os críticos de Heidegger dividem o seu percurso filosófico em duas fases: uma antes da chamada “viragem” (Kehre) e outro que a esta “viragem se sucede. Na primeira, o filósofo estaria preocupado com a «Questão do Ser» e com o seu esquecimento pela Metafísica Ocidental; Na segunda, o pensamento de Heidegger ter-se-ia voltado para uma reflexão sobre a obra de arte e a Linguagem. Otto Pöggeler, em «Heidegger e Hölderlin», uma conferência pronunciada pelo autor em 1976 (publicada em 1984 em Filosofia e Política em Heidegger), propõe-nos que dividamos o pensamento do filósofo alemão em três fase, no intuito de esclarecer de que modo essas três fases são ou não determinadas pelo presença da poesia de Hölderlin. «Nos últimos anos, o próprio Heidegger, refere Pöggeler, havia assinalado que era mais adequado dividir o seu pensamento em três fases: a pergunta acerca do ser e tempo ou acerco sentido do ser, a questão acerca da verdade do ser como história e a questão do despojamento (Lichtung) (palavra insólita com a qual Heidegger queria finalmente manter liberto o seu pensamento face a todas as confusões com os temas tradicionais). Perguntamo-nos pois de que modo Hölderlin desempenha o seu papel no pensamento de Heidegger segundo estas três fases», p. 130.
[20] Hölderlin, Quíron, in Hölderlin. Poemas, p.209.
[21] Hölderlin, Vocação de Poeta, in op. cit., p.193
[22] Mikel Dufrenne, LOil et L’Oreille, p. 48.
[23]Cf. Mikel Dufrenne, op. cit., p. 26
[25] Matilde Marçal (nascida em Portugal em 1942), revela-nos um novo universo, situado entre a poesia e o silêncio, o passado e o presente, entre este e o futuro. As nuances desta sinfonia cromática, deliciosamente apelativas, convidam-nos de um modo irresistível a deleitarmo-nos e a sentirmo-nos participantes destas maravilhosas melodias em que sempre vamos descobrindo sons, antes imperceptíveis.
[26] In, Robert Descharnes, Dali. Obra Pintada, p. 194.
[27] Hölderlin, Grécia, Segunda Versão, in Hölderlin Poemas, p. 509.
[28] Heidegger, BU, p. 64.
[29] Heidegger, op. cit., p. 65.
[30] Rilke, op. cit. P.211.
[31] A obra de Jean Cossiers, pintor flamengo do século XVII retrata "Prometeu trazendo o fogo". Esta mostra a ousadia da "liberdade criadora", a qual foi capaz de desafiar o poder dos deuses. Prometeu, um dos titãs, rouba o fogo do Olimpo e o dá aos homens, ensinando-os a utilizá-lo. Por esse motivo, Prometeu foi castigado por Zeus e acorrentado no cume do Cáucaso. Associamos a esse episódio a palavra Metanóia, cujo significado é "transformação fundamental de pensamento ou carácter". Achamos, portanto, conveniente associá-la à ousadia da "liberdade criadora" e aos riscos das circunstâncias humanas.
[32] Rubens (1577-1640), o maior expoente da pintura Barroca italiana, transcreveu em tela o suplício de Prometeu. Eis aí uma explicação ingénua, como a de todas as lendas e fábulas, para explicar a descoberta do fogo pelo homem, fonte de luz e calor que seria seu ato pioneiro de descoberta científica.
[33] Prometeu não pôde permanecer em silêncio perante o doloroso destino que o rei do Olimpo lhe determinou: «Quero falar – afirma Prometeu atormentado pelo seu castigo e desiludido com a sua obra – não para censurar os homens, mas antes para expor detalhadamente a benevolência do que lhes dei. A começo, quando viviam, viviam falsidades; quando ouviam, não entendiam; e, como as formas dos sonhos, misturavam tudo ao acaso durante sua longa existência; e não possuíam a arte de construir casas soalheiras de tijolo, nem sabiam trabalhar a madeira; viviam em antros subterrâneos, como as formigas desprezíveis, nas profundidades sem sol das cavernas (…); antes faziam tudo sem inteligência, até eu lhes ensinar o enigmático nascer e ocaso dos astros. Para eles inventei igualmente os números, primeira das invenções engenhosas, e a combinação das letras, memória de tudo que existe, obreira mãe das musas. E fui o primeiro a pôr sob o jugo os animais, submetendo-os à canga ou aos corpos dos homens, para que sucedessem aos mortais nos trabalhos mais pesados, e atrelei aos carros os cavalos dóceis, ornamento do luxo excessivo. E ninguém mais que eu inventou para os marinheiros os navios de asas de linho que voam. E eu, que descobri tudo isso para os mortais – infeliz – não tenho maneira de me libertar do sofrimento presente.”[33]
[34] Dentro da pintura de género (cenas da vida quotidiana), conhece-se o quadro intitulado Os músicos (1591-1592), realizado para o seu primeiro grande mecenas, o cardeal Francesco Maria del Monte. Este quadro, uma das obras da primeira fase, apresenta-se-nos como uma metáfora da música, arte aqui consagrada pelo pintor, numa espécie de união umbilical entre as cores e os sons.
[35] M. Heidegger, “Já só um Deus nos pode salvar”, in Filosofia, Vol. III, Nº 1/2, Outono’89, p. 121 – 122.
[36] Rudolfo Perassi é um pintor argentino, nascido em 1949. «La proliferación caótica de fragmentos y restos de obras propias y ajenas, ha hecho esfumar el concepto totalizador y unitario del cuadro. Aquí el rompimiento de los límites entre los diferentes sistemas del arte, genera un status del ensamblaje hondamente conflictivo. Frente a este tipo de opus, la experiencia de la mirada se configura, básicamente, a través de las formas fragmentadas e incompletas, basadas en la inquietud ambulatoria y en la eliminación de los puntos de sutura y aglutinación. Formalizando todas las variantes del quiebre, la escisión a la rotura, las búsquedas actuales de Perassi, aluden, en clave metafórica, a la imposibilidad de un sujeto enterizo. En todo caso, el sujeto al que hace referencia Perassi, es anterior a las cosas y al lenguaje: un yo que ha renunciado a pensar en un centro reconocible, y que funda su accionar en mecanismos de disrupção. Perassi construye–deconstruye la ortodoxia de la pintura y la escultura, con sus particularismos assemblages, a base de desechos y ruinas de otras obras. Una vuelta de tuerca del objet trouvé ahora pluralizado, como amasijo de elementos pictóricos y extra-pictóricos. Y es justamente el carácter heteróclito de estas composiciones el que agudiza aún más el vértigo fragmentador.» Claudia Laudanno, Con motivo de su exposición "Perassi en Arcimboldo", Noviembre 2000.
[37] Idem, p. 122.
[38] Fernando Belo, Heidegger. Pensador da Terra, p. 56.
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