O Buraco – Contos de Tchecov

O BURACO – TCHECOV

Tradução de Costa Neves. Fonte: Clássicos Jackson

I

E

STANDO a aldeia de Ukleyevo
situada num buraco, apenas o campanário da igreja e as chaminés das fábricas de
chita podem ser avistadas da estrada de rodagem e da estação do caminho de
ferro. Quando os que passam por ali indagam que aldeia é aquela, recebem a
informação: "É onde Cantor comeu todo o caviar, num funeral".

Segundo consta, nas
exéquias do moleiro Kostiu-kov, o mais velho dos Cantor viu, entre os hors–d’oeuvres,
algum caviar fresco e decidiu, sozinho, dar cabo dele. Em vão os amigos
batiam-lhe no om­bro, puxavam-no pela manga; ele estava tão lite­ralmente
insensível e contente que não percebeu nada — só fazia engolir, engolir… O
prato conti­nha quatro libras de caviar e nosso homem comeu-as todas. Dez anos
transcorreram desde então, Cantor já estava morto, mas toda a gente se lembrava
do caviar. Talvez isso fosse uma conseqüência de sua existência pacata, ou
talvez fosse aquele povo in­capaz de fazer observações; seja o que for, tão
banal incidente era a única coisa que se tinha a relatar sobre Ukleyevo.

A febre
nunca deixou aquele lugar; e também uma neblina viscosa, mesmo no verão,
particular­mente para as bandas das paliçadas, onde velhos salgueiros, abanando
seus ramos pendentes, lançavam sombra sobre a estrada. E justamente naquele
sítio havia um eterno fedor de restos de fábrica e ácido acético, usado na
preparação da tintura da chita.

As fábricas
eram em número de quatro — três de chita e um curtume. Ficavam, não na aldeia,
mas nos seus arredores, a pequena distância. Eram pe­quenas indústrias, cada
uma com cerca de quatro­centos operários. Os resíduos do curtume com fre­qüência
inundavam o riachão, infestavam o campo, o gado dos lavradores pegava praga
siberiana e o curtume teve ordem de fechar. Considerou-se fe­chado, mas
continuou a funcionar secretamente, com o assentimento do comissário de polícia
e do médico do distrito, que recebiam do proprietário dez rublos mensais cada
um.

Em toda a
aldeia havia apenas duas casas decen­tes; eram construídas de pedra e tinham
telhado de estanho; nuna ficavam os escritórios dos Volost, na outra, de dois
andares, exatamente em frente da igreja, morava Tzibukin Grigori Petrov.

Grigori
possuía uma mercearia — para salvar as aparências; na verdade ele traficava em vodlm,
ce­reais, gado, couros e porcos. Comerciava com tudo que fosse preciso e
quando, por exemplo, as pegas eram procuradas alhures para os chapéus das se­nhoras,
ele pagava a trinta copeks o par. Tanto adquiria os direitos para abater
uma floresta, como emprestava dinheiro a juros. Era, de fato, um ho­mem
empreendedor.

Tinha
dois filhos; o mais velho, Anisim, servia na polícia como detective e raramente
aparecia em casa.


 



O mais jovem, Stepán,
auxiliava o pai nos negócios, mas como sofresse mazelas e fosse surdo, dele não
se esperava realmente grande ajuda. Sua mulher, Axínia, bela e esbelta
rapariga, punha chapéu nos dias santos e levava um guarda-sol; levantava-se
cedo e ia tarde para a cama e, com as amplas saias recolhidas e a penca de
chaves a tilintar, corria o dia inteiro do depósito à adega, da adega ao arma­zém.
Os olhos do velho Tzibuldn piscavam de pra­zer, ao contemplá-la, e muitas vezes
desejou que ela fosse casada com o mais velho e não com o surdo, que parecia
encarar com indiferença tantos encan­tos femininos.

O
velhote era muito caseiro e amava a família mais do que qualquer outra coisa
neste mundo, es­pecialmente o filho mais velho e essa nora.

Mal
se casara Axínia com seu pobre marido surdo e já revelara uma invulgar
capacidade para negó­cios e muito cedo ficou sabendo a quem poderia con­ceder
crédito e a quem não. Conservava sempre consigo as chaves, não as confiando a
ninguém, nem mesmo ao marido surdo; discutia as contas, exami­nava os cavalos
pelos dentes como um mujique; mostrava-se sempre imperiosa ou atrevida;
mas fi­zesse o que fizesse ou dissesse o que dissesse, o ve­lhote sempre se
impressionava e murmurava como­vido: — Que nora! Ufa, que nora! Matuchka!

Era
viúvo, mas menos de um ano após o casamen­to do filho não pôde tolerar mais a
viuvez e casou-se também. A trinta verstas de Ukleyevo foram encon­trar
uma mulher solteirona, Várvara Nikolaiévna,
 de boa família, meia-idade e vistosa. Logo que se achou estabelecida
na casa, no segundo andar, tudo assumiu um aspecto mais brilhante, como se
novas vidraças tivessem sido colocadas em cada janela. As lamparinas dos santos
ardiam mais vivamente, as mesas cobriram-se de linho alvo como neve, flores
vermelhas surgiram sobre os parapeitos ou na en­trada da casa, e ao jantar cada
qual tinha seu prato servido em vez de o encher ao caldeirão. Quando Várvara
Nikolaiévna mostrava seu terno e lindo sorriso, parecia que ele se espalhava
por toda a ha­bitação. E — o que nunca acontecera antes — o*j velhos, os
pobres, os peregrinos começaram a fre­qüentar o pátio da casa. Pelas janelas
ouviam-se as vozes cantantes das mulheres de Ukleyevo, ou a tosse rouca de
pobres homens sofredores, despedidos das fábricas por embriaguez. Várvara os
auxiliava com dinheiro, pão, roupas velhas, e quando, com o tempo, via suas
reservas esgotadas, fazia novos suprimen­tos na mercearia. Certa vez o surdo
viu-a a carre­gar do armazém dois oitavos de libra de chá; isto o perturbou.

—  Mamachka
(1) levou daqui dois oitavos de
libra de chá, comunicou ele ao pai — como farei
esse lançamento?

 

(1)    Mamãe.

 

O velho não
disse nada; continuou calado, refletiu, franziu as sobrancelhas e subiu para
falar à es­posa.

—  Varvaruchka, se precisar alguma coisa
do armazém, vá tirando, vá tirando, disse ele amorosa­mente. Tire o que você
quiser, não ligue a ninguém.

No dia
seguinte, quando ela atravessava o pátio, o surdo chamou-a:

Mamachka,
quando quiser alguma coisa, é só tirar.

Essas
esmolas constituíam algo novo, algo impres­sionante e jovial como as flores
vermelhas e as lam­parinas dos santos. Quando, durante o carnaval, ou nos
festejos do santo padroeiro, que duravam três dias, os camponeses fediam a
carne seca tão estra­gada que era impossível a gente se manter perto das
barricas onde era guardada, e foices, xales de mu­lher e chapéus eram
empenhados pelos beberrões, e mãos de operários agitavam-se no nevoeiro em mo­vimentos
que a aguardente de má qualidade tornava lentos, e o pecado andava pelo ar como
a cerração — então tudo isso parecia mais fácil de se suportar ao pensamento de
que ali naquela casa havia úma mulher calma e asseada que nada tinha a ver com
carne seca e aguardente. Sua caridade actuava na­queles dias escuros cheios de
aflições como uma vál­vula de escape em uma caldeira.

Estava-se
sempre muito ocupado em casa de Tzibukin. Antes de nascer o sol já Axínia
lavava-se ruidosamente no vestíbulo, o samovar fervia na co­zinha e sibilava
como a predizer alguma coisa desa­gradável. O velho Grigori Petrov, com o olhar
lím­pido e alegre, enfiado em comprido fraque preto e calças riscadas, e
botinas de cano comprido capri­chosamente lustrosas, ia e vinha no quarto,
batendo os calcanhares feito o sogro de conhecida canção.

 

Então abria-se a
mercearia. Quando o dia clareava, traziam-lhe o drochhi(2) para a porta
e lá se ia o velho enérgico. Sentado aí, com o boné enterrado até as orelhas,
ninguém seria capaz de acreditar que ele já contasse sessenta e seis anos. A
mulher e a nora viam-no sempre fora de casa. Quando ele tra­java o fraque novo
e guiava o grande potro zaino, não gostava de ser abordado pelos campônios com
suas queixas e lamúrias. Desestimava e desprezava os camponeses e se via algum
deles a lhe rodear a porta gritava asperamente:

   
Que estás fazendo aí?  Vai dando o
fora! E se fosse um mendigo, dizia logo:

   
Deus te ajude!

Ia a negócios. Então a
mulher, resguardando-se com um avental preto, limpava os quartos e ajudava na
cozinha; Axínia trabalhava no armazém; pelo pátio repercutia o tinir de
garrafas e moedas ou as risadas e palavras rudes dos compradores insulta­dos
por Axínia. Ao mesmo tempo praticava-se no armazém o secreto e clandestino
comércio de vodka. Também o surdo sentava-se na mercearia, ou então, a
cabeça descoberta, mãos no bolso, perambulava pelas ruas lançando, com um ar
ausente, olhares às casinholas ou ao céu distante. Bebia-se chá seis ve­zes por
dia e quatro vezes sentava-se à mesa para comer. À noite, faziam-se as contas e
escriturava-se o movimento; depois iam todos para a cama e dor­mia-se
profundamente.

(2)    Pequeno carro puxado por um cavalo.

As três
fábricas de chita estavam ligadas por te­lefone às residências, em Ukleyevo,
dos industriais Khrimins Sêniors, Khrimins Júniors e Kostiukov. O telefone
ramificava-se também até os escritórios dos Volost, mas aí depressa deixou de
funcionar e percevejos e baratas nele se alojaram à vontade. O mais velho dos
Volost era quase analfabeto e cos­tumava escrever cada palavra com a primeira
letra maiúscula, de forma que declarou quando o telefone quebrou:

— Agora vai
ser mais difícil para nós, sem tele­fone.

Os Khrimins
mais velhos estavam sempre a dis­cutir judicialmente com os Khrimins mais moços
e algumas vezes os mais moços brigavam entre si mes­mos e sustentavam demandas
uns contra os outros; então sua fábrica tinha que fechar por um mês, tal­vez
dois, até que a paz voltasse a reinar. Isso pro­porcionava certa dose de distração
aos habitantes de Ukleyevo, dando cada discussão dessas muito para bisbilhotar
e cochichar.

Kostiukov
e os Khrimins Júniors organizaram corridas de cavalo durante o carnaval;
disparavam furiosamente pelas ruas de Ukleyevo matando no­vilhos na correria.
Axínia, pimpona em sua blusa engomada, foi dar uma volta diante da mercearia; o
mais jovem dos Khrimins Júniors agarrou-a e pa­recia que a queria raptar. Aí
saiu o velho Tzibukin para mostrar seu cavalo novo e levou consigo Várvara.

À noite,
terminada a cavalgada, quando já muitos haviam ido reparar na cama os cansaços
do dia, em casa do jovem Khrimin fez-se música com um harmónio de alto preço;
se brilhasse a lua, maiores se­riam os ecos de alegria e entusiasmo em
Ukleyevo, que então parecia menor ainda do que um buraco.

 

II

Anisim,
o filho mais velho, mui raramente vinha a casa — apenas nas grandes festas; em
compensa­ção, com freqüência mandava presentes e cartas ao seu povo; as cartas
eram escritas em caligrafia es­tranha e imponente, sempre em papel de requeri­mento.
Tais missivas vinham crivadas de expressões que Anisim nunca usava em
conversação: "Meus queridos papai e mamãe, envio-lhes uma libra de chá
verde para satisfazer suas necessidades físicas". No fim de cada carta,
surgia garatujado, como se fosse escrito por uma pena de ponta quebrada, o nome
"Anisim Tzibukin" e, por baixo, de novo em excelente caligrafia,
"Agente". As cartas eram li­das em voz alta diversas vezes e o velho,
choroso e rubro de emoção, dizia: "Aí está, ele não deseja morar em casa;
prefere lutar sozinho… bem, está certo! Negócio é negócio!"

Antes
do Entrudo houve chuva grossa e geada; o velho e Várvara foram espiar à janela
e, quem diria! viram vir da estação, num trenó, Anisim em carne e osso! Não o
esperavam absolutamente. Ele pare­cia apreensivo, e desde a entrada na sala
demonstrou forte inquietação, que não desapareceu durante toda sua estada ali,
embora tudo fizesse para disfarçá-la. Não tinha pressa de deixá-los outra vez e
com isso
 tinha-se a impressão de que fora dispensado do ser­viço.
Várvara ficou contente com a sua chegada; observava-o dissimuladamente,
suspirava e abanava a cabeça:

— Como é
isso, batüichkca? indagou certa vez. Esse rapaz já tem vinte e oito anos
e ainda leva a vida dissipada de um solteirão.  Oh, que vergonha!

Suas palavras,
docemente sussurradas, não chega­vam ao cômodo próximo. — "Oh, que
vergonha!" foi tudo quanto puderam escutar. Ela começou a cochichar com o
velho e Axínia; seus rostos reves­tiram-se da astuta, misteriosa expressão dos
conspiradores.  E decidiram casar Anisim.


Oh, que vergonha!… teu irmão já está casado faz tempo, disse-lhe Várvara,
enquanto tu estás para aí sem uma companheira, tal qual um galo na praça do
mercado. Como é isso? Casa, com a ajuda de Deus. Volta depois para o serviço,
se assim o quiseres, e tua mulher fica em casa para nos auxiliar no trabalho.
Levas uma vida irregular, meu rapaz, e esqueceste o que é ordem, estou a ver.
Oh! toma tento!  Vocês da cidade são uma vergonha!

Quando os Tzibukin se
casavam, as mais lindas noivas eram escolhidas para eles, como são escolhi­das
para os ricos. Assim, puseram-se à cata duma beldade para Anisim. Fisicamente
ele era de apa­rência insignificante, desinteressante, de constitui­ção fraca,
doentia; baixote, tinha faces bochechudas, rotundas, como se vivesse a soprar;
nunca piscava, o que lhe dava uma expressão atrevida, impertinen­te; possuía
barba escassa e ruiva, que ele metia na boca e chupinhava quando se punha a
pensar. Além disso, dava-se por vezes à fraqueza de beber, o que logo se
percebia por sua cara e maneira de andar. Contudo, quando lhe participaram que
lhe haviam encontrado a noiva, moça realmente bonita, ele re­plicou :


Ora, também pudera. Na família dos Tzibukin, deve-se convir, todos são bem
parecidos.

Muito
perto da cidade existia uma aldeia, Torguievo. Metade tinha sido, não fazia
muito, incor-. porada à cidade como subúrbio; a outra metade continuou aldeia.
Na primeira metade morava uma viúva com sua irmã numa pequenina casa. A irmã
era muito pobre e trabalhava a soldo diário para viver. Tinha uma filha, Lipa,
que também traba­lhava para viver. A beleza de Lipa era mais do que conhecida
em Torguievo, mas sua extrema pobreza metia medo à rapaziada. Chegou-se à conclusão
de que ou algum solteirão ou viúvo se casaria com ela, a despeito de sua
miséria, ou a "protegeria" sem maiores compromissos e ela estaria
assim em condi­ções de sustentar a mãe. Várvara ouviu falar em Lipa por alguma
agente matrimonial e dirigiu-se a Torguievo.

Combinou-se
uma reunião, como era de praxe, em casa da tia, com os competentes zakuslú(3)
e vi­nhos. Lipa foi metida em novo vestido cor-de-rosa, feito especialmente
para a ocasião; uma fita ver­melha como fogo fulgurava entre os seus cabelos.
Era um entezinho magro, pálido e fraco, de traços belos e delicados e pele
tisnada pelas inclemências do tempo. A expressão dos olhos era de uma criança,
confiante e inquisidora, e seu sorriso traduzia tris­teza, timidez. Era muito
jovem — uma mocinha não de todo desenvolvida, embora já em idade de casar.
Agradava sem dúvida, salvo quanto às mãos, muito grandes, masculinas, que agora
pendiam de ambos os lados, em abandono, como duas enormes garras.

 

(3)    Salgadinhos.

 

—  Ela
não tem fortuna… mas não devemos ligar a isso, foi dizendo o velho à tia.
Pois para nosso filho, Stepán, também escolhemos uma mulher de família pobre;
agora não há palavras que bastem para elogiá-la, tanto em casa como no
negócio… vale seu peso em ouro.

Lipa
estava em pé à porta e parecia dizer: "Façam comigo o que bem quiserem, eu
tenho confiança em vocês". Sua mãe, porém, Praskóvia, a jornaleira,
escondia-se pela cozinha, morta de medo. Certa vez, em sua mocidade, um
comerciante, para quem ela lavava o assoalho, espezinhou-a raivosamente e isso
aterrorizou-a tanto que fugiu espavorida e o resto da vida o medo bramia em seu
peito. Sentada na cozinha, procurava escutar o que os hóspedes es­tavam a dizer
e persignava-se o tempo todo, com­primindo os dedos sobre a testa, os olhos
fixos na imagem do santo. Anisim, ligeiramente embriagado, abriu a porta da
cozinha e disse alegremente:

—  Por que
estás sentada para aí, querida mamachka?  Ficamos tristes sem tua
presença.

Praskóvia,
a tremer e apertando a mão de encon­tro ao seio caído e pelancudo, respondeu:

—  Obrigada,
que querem vocês lá? Estou muito agradecida a vocês…


Após essa
visita de reconhecimento, foi marcado o dia das bodas.

Em
casa, Anisim não fez mais nada senão passear de um cômodo para outro,
assoviando; depois, lembrando-se repentinamente de alguma coisa, parou,
tornou-se imóvel como uma estátua, absorto num pensamento, os olhos cravados no
chão como se qui­sesse vará-lo e atingir o centro da terra. Não ma­nifestava
satisfação por casar-se, ou ao menos por casar-se tão cedo — a primeira
segunda-feira depois do domingo de Páscoa — nem desejo de tornar a ver a noiva;
voltou a assoviar. Era evidente que se ca­sava apenas porque o pai e a madrasta
assim o que­riam e porque tal era o costume em sua aldeia: os filhos se casavam
para prover a casa de braços que trabalhassem. Não tinha pressa de se ir embora
e suas atitudes eram diferentes das de suas visitas an­teriores. Parecia,
também, inconsciente e suas res­postas eram quase sempre desconexas.

 


 


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