Continued from: O Buraco - Contos de Tchecov
III
Na
aldeia moravam duas irmãs solteiras, costureiras. Receberam a encomenda dos
vestidos novos para o casório, de forma que iam experimentá-los muitas vezes e
demoravam-se tempo sem conta, compartilhando do chá. Fizeram um vestido cor de
canela, enfeitado de laçarotes pretos, para "Varvara e um outro verde
claro, com peitilho amarelo e cauda, para Axínia. Quando ficaram prontos os
vestidos, Tzibukin pagou às irmãs em gêneros de seu armazém e elas partiram
contrariadas, carregando nos braços um maço de velas esteáricas e algumas latas
de sardinha, coisas com que absolutamente não contavam. Quando já tinham
deixado para trás a" aldeia, sentaram num montículo de terra e choraram.
Anisim
chegou três dias antes das bodas, metido num terno novo. Tinha também galoehas
novas e, em vez de gravata, uma fita encarnada com círculos mais escuros;
trazia ainda capa nova, jogada sobre os ombros. Tendo dirigido solenemente uma
prece a Deus, saudou o pai e deu-lhe dez rublos de prata e dez moedinhas de
cinqüenta copeks; deu a Varvara a mesma coisa; e a Axínia deu vinte
peças de vinte e cinco copeks. O grande encanto deste presente estava
em que todas as moedas eram perfeitamente novas, em folha, carinhosamente
seleccionadas e faiscantes ao sol. Anisim, tudo fazendo para
aparentar importância e seriedade, enchia as bochechas, fechava a cara e fedia
a vinho — devia ter saltado em cada estação e corrido directamente ao bar.
Persistia naquelas maneiras afectadas, um tanto ou quanto em desacordo com sua
natureza. O velho e Anisim beberam chá e comeram qualquer coisa, enquanto
Várvara virava e revirava o vestido novo nas mãos e fazia perguntas a respeito
de seus conterrâneos que moravam na cidade.
— Vão todos muito bem, graças a Deus, respondia Anisim.
Houve um acontecimento na família de Ivan Iegorov… perdeu sua velha mulher,
Sofia Ni-kiforovna… tuberculose. A refeição em sua memória, encomendada na
confeitaria, foi de dois ru-blos e meio por cabeça, inclusive o vinho. Que
tipos são esses nossos conterrâneos! Também para eles eram dois rublos e meio —
e eles não comeram nada. Pode lá um camponês apreciar boa comida?
— Dois rublos e meio! exclamou o velho, abanando a
cabeça.
— Ora, que há nisso de extraordinário? Aquilo lá não é o
campo. Tu entras num restaurante para fazer uma boquinha, pedes isso ou aquilo,
depressa forma-se um grupo, bebes… olhas as horas, porque já escurece…
"Desculpe, três ou quatro rublos é quanto toca a cada um pagar". E
quando estás com Samarodov, ele insiste para um café e um conhaque por cima,
para completar a história, e o conhaque são seis griveniks (sessenta copeks)
o cálice.
— Mentira tudo isso! mentira! exclamou desesperado o
velho.
— Estou sempre com Saraarodov agora. É Sa-marodov quem
escreve minhas cartas para ti. Escreve magnificamente. E se te contar, mamachka,
acrescentou alegremente, virando-se para Várvara, que espécie de sujeito é
esse Samarodov, tu não acre-ditarás. Nós o chamamos Muktar, porque ele é feito
um armênio, quase preto. Conheço-o por dentro e por fora; sei de todos os seus
negócios tão bem como conheço estes meus cinco dedos. E ele o sente, mamachha,
e me segue por toda parte, nunca me deixa e agora somos inseparáveis como
unha e carne. Ele até que tem medo de mim mas não pode existir sem a minha
pessoa; aonde eu vou, ele vai. Tenho uma vista apuradíssima, mamachka; fui
a uma feira de tecidos e vi um camponês vendendo uma camisa. — Espera, aquilo é
camisa roubada! — E foi verdade, a camisa era roubada.
—
Mas, como é que o soube?
interrogou Várvara.
— Não sabia, meus olhos é que ò descobriram. Nem podia
imaginar que camisa era aquela, mas um sexto sentido me advertiu: aquilo é
roubado; e aí tens tudo: Entre nós os detectives, agora se diz: — Bem, Anisiin,
vai e "mata a galinhola". Isto quer dizer "vai e descobre o
furto". Sim, todo o mundo pode roubar, mas como escondê-lo ? A terra é
grande, mas não há lugar onde se possa esconder um roubo.
— Em nossa aldeia, roubaram a Guntoriov uma ovelha e
dois cordeirinhos a semana passada, suspirou Várvara. E não havia ninguém para
descobrir … que coisa triste!
— Ora
essa, ainda se pode investigar… coisa à toa, assunto muito fácil.
Chegou o dia do
casamento; era um dia frio, claro e alegre de abril. Desde manhã cedo troikas
e carros a dois cavalos cruzavam furiosamente Ukleyevo; era um nutrido
retinir de guizos, e fitas multicores ondulavam nas crinas dos corcéis e nos
arcos dos varais. Às gralhas crocítavam entre os salgueiros, perturbadas pelo
inusitado movimento e ruído, e os estorninhos chilreavam insuportavelmente,
como celebrando as bodas em casa dos Tzibukin. Aí estava posto o banquete, que
consistia em grandes peixes inteiros, presuntos, galinhas e recheio, enorme variedade
de frios salgados e apimentados e farta provisão de vodka e vinhos.
Some-se a isso o odor das salsichas de fumeíro e ostras ao limão. À mesa, batendo
no chão com os calcanhares e afiando uma faca numa outra, estava de pé o velho.
Várvara não parava um instante; com ar afobado, sem respiração, corria até a
cozinha, onde o mestre-cuca dos Kostiukov e a asseada cozinheira dos Khrimins
Júnior s andavam na lida desde o alvorecer. Axínia, os cabelos frisados, hirta
no seu espartilho, a salutar nas suas botinas novas chiadeiras, coma pelo
pátio como uma ventoinha, o pescoço e os joelhos, descobertos, brilhando com o
sol. Tudo ali andava muito ocupado; ouviam-se palavrões e pragas; e os que
passavam lá fora, detinham-se à porta, escancarada, sentindo que ali dentro
ocorria algo fora do comum.
— Foram buscar a noiva, murmurava-se.
Tílintaram as campainhas dos cavalos e o som acabou morrendo à distância. Pouco
depois das duas horas, o povo começou a correr de novo; escutaram–se outra vez
as campainhas: a noiva vinha vindo! A igreja estava cheia, os candelabros
acesos, e o pessoal do coro, segundo o desejo do velho, cantava por música
escrita. O fulgor das luzes e os vestidos brilhantes tontearam Lipa.
Parecia-lhe que os co-ristas, com suas vozes altas, batiam em sua cabeça com
martelos. O espartilho, que estava usando pela primeira vez na vida, e as
botinas, torturavam-na, e tinha a impressão de que acabava de recuperar a
consciência após um desmaio. Via tudo aquilo, mas não podia compreender nada.
Anisim, de fraque preto, fita vermelha ao pescoço em vez de gravata,
mostrava-se pensativo, o olhar perdido no espaço; e todas as vezes que o coro
elevava o tom, num agudo, mais do que depressa ele fazia o sinal-da-cruz. Sentia
certa emoção no fundo do coração e gostaria de chorar. A igreja era-lhe
familiar desde a mais tenra infância. Há muito tempo aqui o trouxera sua
falecida mãe para a primeira comunhão. Há muito tempo aqui havia cantado com
os outros rapazes do coro. Conhecia como a palma da mão cada nicho e ícone. E
agora o casavam; devia casar-se para o bem da propriedade. Então, como se não
entendesse aquilo, esqueceu casamento e tudo o mais. As lágrimas impediram-no
de enxergar os ícones; sentia opresso o coração. Rogou a Deus que as desgraças
que pendiam sobre sua cabeça, prestes a feri-lo, se não hoje, talvez amanhã ou
depois, £>assassem adiante e se desfizessem ao longe, como as nuvens tempestuosas
passam por sobre um campo sem deixar cair sequer uma gota de chuva. E embora os
pecados que se acumulavam no seu passado fossem muitos, muitos mesmo, e alguns
irreparáveis, tanto que nem valia a pena Lhe pedir que fossem perdoados, ainda
assim orou e até soluçou alto. Mas ninguém atentou nisto, porque todos se
contentavam em pensar: "ele está bêbado"…
A voz chorosa de uma criança fez-se ouvir:
—
Querida mania, leva-me
embora daqui!
—
Silêncio! recomendou o padre.
Na
volta para casa, noiva e noivo foram seguidos por vasta multidão de pessoas de
toda casta. Aglomeravam-se diante do armazém, no portão, no pátio, e enchiam a
casa diversas mulheres vindas expressamente para entoar hinos de louvor e
felizes votos aos recém-casados. O jovem par havia apenas transposto a soleira
quando as coristas, que já estavam dispostas no vestíbulo, nas mãos a música,
espou-caram numa cantoria alta. A orquestra, contratada expressamente na
cidade, começou também a tocar. Uma beberagem espumante era servida aos convivas
em altos canecões. Foi então que o carapina–empreiteiro lelizarov, homenzarrão
de sobrancelhas tão espessas que os olhos a custo eram visíveis, virando-se
para o jovem casal, disse:
— Anisim,
e tu, menina, amai-vos um ao outro; guardai o temor de Deus, meus filhos, e a
Bainha do céu não vos abandonará.
E deixando-se cair no ombro do velho, chorou.
— Grigori
Petrov, deixa-nos chorar, deixa-nos chorar de alegria! exclamou em voz
esganiçada, e logo a seguir começou a rir, continuando em tom de baixo
profundo: — Oh, oh, oh! tendes uma boa cunhada! Ela conserva tudo como um
brinco, as coisas com ela correm macias, toda a maquinaria está em perfeito
estado e bem aparafusada.
Embora
nascido no distrito de Iegoriev, trabalhara quase toda a meninice nas fábricas
de Ukleyevo e no distrito que a cerca, e aí morava. Desde muito tempo era
conhecido como estava agora — um velho alto e magrela — e deram-lhe o apelido
de "Muleta". Talvez isto fosse porque há quarenta anos se vinha
ocupando apenas de consertos nas fábricas, mas o facto é que considerava cada
homem e cada coisa sob um único aspecto: bom estado ou mau estado. Mesmo agora,
antes de sentar-se à mesa, pegou em várias cadeiras a fim de ver se estavam em
bom estado.
Após
boa dose da tal beberagem espumante, cada um tratou de acomodar-se às mesas. Os
convivas puxavam e batiam suas cadeiras, os coristas cantavam no vestíbulo, a
banda de música tocava, as camponesas louvavam monòtonamente o jovem casal:
tudo isso numa zoeira tão terrível e numa confusão tão louca que era para
rebentar a cabeça de um pobre cristão. "O Muleta" torcia-se e
virava-se em sua cadeira, empurrava os vizinhos com os cotovelos, metia-se na
conversa de toda a gente, chorava e ria.
— Olá,
minhas moças, minhas moças! bradou ele apressadamente, Axiniuchka, Varvaruchka,
viveremos todos em paz e boa harmonia, minhas queridas !
Tinha por
norma beber pouco, e já estava ébrio com um copo de aguardente inglesa. Esta
desagradável bebida, feita ninguém sabe de que coisa, enu-viava os miolos de
todos quantos dela bebiam, a tal ponto que pareciam sofrer de comoção cerebral.
Havia ali
padres, funcionários de fábricas com as respectivas mulheres, negociantes e
estalajadeiros de outras aldeias. O mais velho dos Volost e seu secretário,
que o acompanhava havia quatorze anos mas que durante todo esse tempo não
assinara um só papel nem despedira sequer uma pessoa dos escritórios dos
Volost, nunca prejudicando ou se impondo a quem quer que fosse, agora estavam
lado a lado, ambos adiposos, fartos e contemplando tudo aquilo com uma malícia
que transparecia pela própria pele. A mulher do secretário, mulher estrábica,
com cara de bruxa, trazia consigo toda a filharada, e como uma verdadeira ave
de rapina caía sobre todos os pratos e apanhava tudo quanto lhe chegava ao alcance
das garras, atulhando os bolsos para si mesma e os pequenos. ,
Lipa
sentou-se como uma paralítica e com a mesma expressão que tivera na igreja.
Anisim, desde o dia em que a conhecera, nunca lhe havia dirigido uma só
palavra, de modo que até agora não conhecia que espécie de voz tinha ela.
Sentado a seu lado, continuava sem falar, bebendo aguardente inglesa, e quando
ficou embriagado declarou à tia, sentada em frente:
—
Tenho um amigo chamado Samarodov. Um camarada todo especial. Ele, pertence à
primeira linha de comerciantes e que grande tagarela! Mas, tia, conheço-o por
dentro e por fora, e ele sabe disto. Bebamos à saúde de Samarodov.
Desmantelada
e confusa, Várvara corria em roda das mesas, servindo os convidados, e era
visível sua satisfação por haver tantas e tais iguarias que ninguém sentiria
falta do que quer que fosse.
Escondeu-se
o sol e o banquete continuou. Ninguém sabia mais o que estava comendo ou
bebendo; ninguém já percebia claramente o que se estava dizendo ; apenas, a
intervalos, quando a música abrandava no pátio, podia ouvir-se alguma mulher
gritar:
— Vocês
sugaram nosso sangue, demônios! Que a destruição caia sobre vocês!
Com a
noite começaram as danças. Chegaram os Khrimins Júniors com mais vinho, e um
deles, enquanto se dançava a quadrilha, fazia piruetas com uma garrafa em cada
mão e um copo preso à boca. Isto aumentou imensamente a alegria geral. De
permeio com a quadrilha dançava-se à moda russa, de cócoras. A verde Axínia
rodopiava e sua cauda chegava a fazer vento; alguém lhe rasgou os folhos da
saia e o "Muleta" bradou:
— É o que digo, meninos, o pedestal já
caiu!
Axínia tinha ingênuos olhos cinza que piscavam
raramente, enquanto um
sorriso franco lhe iluminava com freqüência o rosto. Com (tais olhos que não
pestanejavam, uma mimosa cabecinha na extremidade de comprido pescoço e sua
figura esbelta, havia nela algo que evocava uma cobra. No seu vestido verde de
frente amarela, e seu sorriso peculiar, parecia uma víbora quando, na
primavera, mete a cabeça fora do tenro centeio e olha quem passa, es-ticando-a
e retraindo-a. O modo de proceder de Khrimin para com ela era demasiado livre.
Há muito se havia percebido que ao mais velho deles ela se dirigia em termos de
excessiva familiaridade. O marido surdo nada notava, porque nunca olhava para
ela; sentou-se, cruzou as pernas, e pôs-se a comer nozes, fazendo tal barulho
ao quebrá-las entre os dentes que se tinha a impressão de tiros de pistola.
E eis que
Tzibukin entrou na roda e agitou o lenço, como sinal de que também ele desejava
dançar. Por toda a casa e fora, no pátio, reboou a aclamação:
— Também ele vai dançar! Até ele!
Várvara dançava enquanto o velho acenava com o lenço e batia com os
calcanhares; mas os que assistiam do pátio, pondo-se na ponta dos pés ou
apoian-do-se uns nos outros para espiar pela janela, caíam em êxtase e durante
um minuto esqueciam tudo — suas riquezas e suas ofensas.
— Bravo,
grande amigo! Viva, Grigori Petrov!
vociferava a multidão. Vamos! ah, ah! ah! ainda
estás bom para a coisa!
Tudo isto
durou até tarde, para lá de uma hora. Anisim, cambaleante, dirigiu-se aos
músicos e cantores para agradecer, e presenteou-os com uma moeda de cinqüenta copeks
cada um. O velhote, que não cambaleava mas ficava ora sobre um pé ora sobre
outro, assistia à saída dos convidados e dizia a cada um:
— O casório custou dois mil rublos,
Quando
todos já se haviam dispersado, descobriu–se que fora trocada a podiovka nova
(capa sem mangas) de Sliikalovo por uma outra velha. Anisim foi logo dizendo,
com muita excitação:
— Esperem,
vou descobrir já. Sei quem a levou! Esperem!
Correu
para a rua em busca de alguém. Este foi agarrado, trazido para casa e o
empurraram à força, bêbedo como uma pipa, rubro de raiva, suando por todos os
poros, para o quarto onde a tia já auxiliara Lipa a deitar-se.
IV
Decorridos
cinco dias Anisim, pronto para partir, subiu para despedir-se de Várvara. Todas
as imagens estavam de lamparinas acesas, respirava-se aroma de incenso e
Várvara fora sentar-se à janela e fazia meias de lã encarnada.
— Estiveste muito pouco tempo conosco, disse ela; achas
isto aqui aborrecido? Que coisa! Vivemos com conforto, tuas bodas foram
celebradas de maneira bem conveniente. Disse nosso velho que foram gastos dois
mil rublos. Numa palavra, vivemos como gente abastada, apenas há isto: é um
pouco aborrecida a vida aqui. Nós furtamos muita gente. Meu coração dói com
esses embustes… Oh, meu Deus! Quer barganhemos um cavalo, quer compremos
qualquer coisa, quer contratemos trabalhadores, tudo são fraudes. Fraude e mais
fraude. O óleo de linhaça da mercearia está rançoso, podre; seria melhor para
essa gente goma de bétula… É impossível, para o bem de todos, negociar com
boa manteiga’?. ..
—
Negócio é negócio, mamachka!
— Mas isso não significa corrupção? Sim, sim! Se fosses
falar a teu pai…
—
Fala-lhe tu mesma.
—
Não, já lhe ouvi a mesma frase que
acabaste de dizer: "Negócio é negócio". Por este mundo a fora ainda
serás chamado a prestar contas por esse "negócio é negócio". Deus é
justo juiz.
— Mas
naturalmente não lia verá tribunal nenhum para julgar isso, — Amaina suspirou.
Por que sabes, mamachka, não existe Deus. Quem então julgará?
Várvara
olhou para ele atônita, sorriu e torceu as mãos. Vendo-a tão fortemente surpresa
com suas palavras, a fitá-lo como a um monstro, ficou perturbado.
— Pode ser que exista
Deus, mas não há fé, de clarou ele. Quando me casei, senti-me assaltado por pensamentos
que não me são habituais. Vê, é como acontece quando tiras um ovo debaixo da
galinha e um pintainho pipila lá dentro; também minha consciência pipilou no
fundo de meu ser, durante a cerimônia. Pensei: existe um Deus. Mas, quando saí
da igreja, tal sentimento se tinha evaporado. E como posso saber se existe Deus
ou não? Ninguém nos
fez conhecê-lo; mal a criança deixa o seio materno e já escuta: "cada qual
por si, negócio é negócio". Papai, tu sabes, também não acredita em Deus. Uma vez me contaste que as ovelhas de Guntoriov tinham sido roubadas… Encontrei o
gatuno; foi um camponês de Shikalovo quem as roubara. Ele as roubara, mas
papai é quem tem as peles… Pensa só! Anisim piscou um dos olhos e abanou a
cabeça.
— E
o mais velho dos Volost também não acredita em Deus, prosseguiu ele, nem seu
secretário, nem tão pouco o sacristão. E se vão à igreja e observam os
preceitos, é somente para que os outros não falem mal deles e para o caso de
existir realmente o Julgamento Final. Portanto, se o fim do mundo vier agora, é
porque os homens se tornaram fracos, não lionram niais pai e mãe, e por aí
adiante. Tudo isso é absurdo. Eu, mamachka, entendo que todas as
contrariedades vêm de ter a gente tão pouca consciência. Vejo-o
claramente, e o compreendo. Quando um homem rouba uma camisa, posso achá-lo. O
sujeito está sentado numa taberna; a ti poderá simplesmente parecer que ele
está bebendo chá, mas eu, com chá ou sem chá, posso ainda ver que ele não tem
consciência. E assim podes caminhar o dia inteiro sem encontrar um homem sequer
com consciência. A única razão é não saberem eles se existe Deus ou não… Bem,
mamachka, adeus, passa bem, e não me queiras mal.
Anisim
inclinou-se profundamente diante de Várvara.
— Agradecemos
tudo que tens feito por nós, disse ele. Tens sido grandemente útil a toda a
família; és uma mulher muito boa e eu te sou imensamente agradecido.
Anisim
parecia muito comovido, saiu e tornou a voltar para dizer:
— Samarodov meteu-me aí num negócio. Ou nos tornaremos
ricos ou ficaremos arruinados. Acontecendo alguma coisa, confortar ás o pai,
está bem, mamachka?
—
Oh! chega aqui. que estás dizendo? Que
vergonha … Deus é misericordioso. Vê só, Anisim, deves mostrar um pouco mais
de carinho a tua mulher; a olhas com tanta rudeza; se apenas lhe sorrisses…
—
Como
é esquisita ela… disse Anisim, suspirando. Parece que não entende nada…
está sempre calada. É jovem demais, devemos deixá-la desenvolver-se.
O
grande potro tordilho, atrelado à tarantass, esperava irrequieto em
frente da porta. O velho Tzibukin, já aboletado, segurava atentamente as rédeas.
Anisim abraçou Várvara, Axínia e o irmão. Lipa estava também de pé na soleira,
imóvel, o olhar perdido, tal como se ali viesse para não ver nada, como se ali
estivesse sem propósito algum. Anisim chegou-se a ela e tocou-lhe levemente na
face com os lábios. "Adeus" disse ele. E ela, sem olhar para ele,
sorriu estranhamente; seu rosto teve um ligeiro tremor, e todos os presentes,
por uma razão ou outra, sentiram pena dela. Anisim saltou para seu lugar no
carro e sentou-se, com os braços arqueados, como se estivesse a julgar-se muito
elegante,
Quando emergiram do
"buraco", Anisim várias vezes lançou um olhar à aldeia. Era um dia
quente, claro. Pela primeira vez naquele ano o gado estava sendo tangido para
as pastagens e raparigas e mulheres, em trajes domingueiros, caminhavam entre
as manadas. Um touro castanho bramia, contente com a sua liberdade, e escarvava
a terra com as patas dianteiras. As eotovias trinavani por todos os cantos, no
alto e em baixo. Anisim percebeu também a linda igrejinha branca — acabara de
ser caiada de novo — e lembrou como rezara ali fazia cinco dias; olhou para a
escola com seu telhado esverdeado, à margem do rio em que costumava banhar–se
e pescar; e um sentimento de alegria apoderou–se dele — queria que uma muralha
se erguesse subitamente diante de si e lhe evitasse de caminhar adiante;
ficaria assim só com o passado.
Quando chegaram à
estação, encaminharam-se ao bar e beberam um copo de xerez. O velho meteu a mão
no bolso à procura da carteira.
— Pai, o convite é meu! interpôs-se
Anisim.
O velho,
todo satisfeito, deu-lhe uma palmada no ombro e piscou ao copeiro como se lhe
quisesse dizer: "Vê que filho eu tenho!"
— Se ficasses em casa, Anisim, e trabalhasses conosco,
ganharias bom dinheiro! Meu rapaz, eu te cobriria de ouro da cabeça aos pés!
—
É impossível, papachka.
O xerez
estava amargoso e cheirava a lacre, mas mesmo assim beberam outro copo cheio.
Na volta da
estação, o velhote quase não reconhecia sua nora mais nova. Mal o marido havia
saído, Lipa passou por uma transformação; tornou-se repentinamente alegre. Os
pés descalços, vestindo um casaquinho surrado com as mangas arregaçadas até os
ombros, ela cantava, num tom claro, cristalino, enquanto esfregava os degraus
da escada; então, ao jogar fora a água suja do balde, deteve-se um pouco a
contemplar o sol, sorrindo tão luminosamente que até parecia da raça das coto
vias.
Um
velho operário que passava pela porta sacudiu a cabeça e tartamudeou:
— Essa
tua nora, Grigori Petrov, também te foi enviada por Deus, afirmou ele. Elas não
são mulheres, são anjos.
V
No dia 8 de
julho, uma sexta-feira, Ielizarov, apelidado o "Muleta", e Lipa voltavam
da aldeia de Kazanskoe, aonde tinham ido para os festejos do santo padroeiro, a
Virgem Maria de Kazan. Para trás ficara Praskóvia, a arrastar-se doente, triste
e ofegante. Chegava a noite.