O Conhecimento Abstrativo em Duns Escoto

 

Resenha de O
Conhecimento Abstrativo em Duns Escoto de Cesar Ribas
CEZAR

Paula Ignacio

 

 

 

Introdução.

 

A procura pelo conhecimento necessário em um mundo dominado pela
contingência é o que caracteriza a filosofia de Duns Escoto. A ciência tal como
a conhecemos vulgarmente toma a probabilidade pelo todo, e é a desconstrução
desse tipo de conhecimento e o alcance de uma ciência verdadeira o intuito
deste filósofo medieval.

 

O intelecto humano, para ele, pode aproximar-se desse conhecimento
através da noção de conhecimento abstrativo. Para o autor do livro O
Conhecimento Abstrativo em Duns Escoto
, Cesar Ribas Cezar, o filósofo
procura encontrar e apreender o que existe de necessário no contingente, para
depois fundar uma “ciência necessária”.

 

Para compreender melhor a filosofia deste, o livro foi organizado em uma
ordem lógica de cinco capítulos, que facilita a apreensão de conceitos-chave na
busca da ciência necessária, através do conhecimento abstrativo.

 

No primeiro capítulo “Abstração e Ciência”, são designados dois
tipos de conhecimento: o intuitivo e o abstrativo. São analisados separadamente
para que possamos compreender porque o conhecimento abstrativo é a porta de
entrada e chave para o conhecimento necessário, a possibilidade para a
verdadeira ciência.

 

No segundo capítulo “A Natureza Comum”, é tratado o problema de
uma natureza comum entre o contingente e o permanente, é demonstrado como as
coisas contingentes tem uma constituição metafísica e portanto, podem ser
apreendidas abstrativamente.

 

O terceiro capítulo “Da Espécie Inteligível”, nos mostra a
necessidade de um representante das coisas contingentes, e da necessidade
primeira desse representante ou espécie inteligível para depois o conhecimento
universal.

O quarto capítulo, “A Produção da Espécie Inteligível”, demonstra
como é produzido o conhecimento abstrativo e como essa produção não interfere
no conhecimento intuitivo.

 

E no quinto e último capítulo, “Da Certeza”, é onde finalmente
existe uma demonstração dos quatro argumentos anteriores, onde é demonstrado
que a ciência necessária para as coisas contingentes não é apenas uma
possibilidade, mas de fato, ocorre.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Capítulo Primeiro

 

Abstração e Ciência

 

O autor Ribas Cezar nos mostra que para Duns Escoto, existem dois tipos
de conhecimento: o intuitivo e o abstrativo.

No conhecimento intuitivo, apreendemos os objetos intuitivamente de
acordo com a sua existência. Através da existência atual do objeto, o
apreendemos instantaneamente.

Para ele, é diferente do conhecimento abstrativo. Podemos imaginar cores,
mesmo se essas cores não estiverem presentes e não pudermos apreendê-las
através dos nossos sentidos. Dessa forma, um mesmo objeto que pode ser
conhecido intuitivamente, também o pode abstrativamente, mas o contrário nem
sempre.

 

“Na sensibilidade, portanto, podemos reconhecer dois tipos de
conhecimento. O intuitivo, que capta o objeto em sua existência, e o
abstrativo, que capta o objeto, mas não como existente.”[1]

 

O conhecimento fica então dividido em duas categorias: intuitivo e
abstrativo. O primeiro trata-se de um conhecimento dos objetos em sua
existência atual, como as assimilações feitas através dos sentidos, por
exemplo.

O conhecimento abstrativo é indiferente a atualidade do objeto existente.
Através da sensibilidade podemos conhecer dessas duas formas, mas no intelecto
apenas uma, o conhecimento abstrativo.

 

O intelecto, portanto, pode ser distinguido da sensibilidade por sua
capacidade de conhecer o objeto universalmente, mas isso não significa que o
intelecto não o possa conhecer como um singular existente.”[2]

 

Um exemplo disso acontece quando observamos um objeto universalmente,
quando ao imaginá-lo conseguimos apreendê-lo, mas também singularizá-lo. É como
se o intelecto também possuísse um conhecimento intuitivo.

Duns Escoto afirma que o conhecimento do intelecto é mais perfeito que o
da sensibilidade, exatamente por isso.

 

 

ESSÊNCIA DA
COISA – Representada e conhecida através do conhecimento abstrativo

 

EXISTÊNCIA ATUAL
DA COISA – Conhecimento Intuitivo direto.

 

Podemos singularizar a essência e também fazer abstração da existência.
Desse modo, o que diferencia os dois modos de conhecer são as razões formais
motivas de cada um.

No processo intuitivo a razão formal motiva é a coisa em sua existência,
enquanto no abstrativo é apreendido da coisa aquilo pelo qual é cognoscível. É
diferente de conhecer a coisa através dela mesma, de sua existência e
singularidade. No conhecimento abstrativo apreendemos dela algo que a torna
cognoscível, mas que não esteja necessariamente como fazendo parte dela. Como
as representações, por exemplo.

 

Conhecimento Intuitivo:

 

OBJETO CONHECIDO       extremos se
unem/relação atual       ATO DE CONHECIMENTO

 

 

Conhecimento
Abstrativo:

 

OBJETO CONHECIDO  
representante/relação potencial    ATO DE CONHECIMENTO

 

 

Estes dois modos de conhecer, para Duns Scot, são modos de apreensão
simples
. Isso porque existe a indiferença de um e de outro durante o
processo de cada tipo de apreensão.

Apesar do conhecimento intuitivo tocar diretamente o objeto, ele não é
mais perfeito que o abstrativo, que só conhece através de representação,
abstração, diminuição. Ainda assim é mais perfeito porque conhecemos
abstrativamente através do intelecto, e ele é mais perfeito do que os sentidos,
que podem nos enganar.

Para os dois tipos de conhecimento, no entanto, existe a necessidade do
objeto existente. Um precisa da sua existência atual, o outro da sua existência
através de um representante que o torne cognoscível. O intelecto humano é
limitado e finito, então não pode ser causa total do conhecimento de algo. Ele
precisa da existência do objeto.

Através da intuição podemos apreender os objetos em sua existência plena,
e da abstração captamos a “quididade” ou essência do objeto, o que o torna
cognoscível nem sempre tem existência atual.

 

“Ambos são atos de simples apreensão, pois são anteriores ao juízo e
ao discurso
[3]

 

Podemos perceber que o conhecimento abstrativo se dá através de um
representante cognoscível, e esse é o ponto de onde deve partir a ciência
verdadeira, dada a noção aristotélica de que a ciência dever ser o conhecimento
certo, verdadeiro, necessário e evidente.

 

A certeza exclui
a dúvida e a opinião.

A necessidade,
pois a contingência não é permanente.

A evidência
através de princípios imediatos e também através de discursos silogísticos.

 

Vale lembrar que Duns Escoto é um autor medieval do Séc. XIII, e que a
base para tratar sobre o conhecimento humano nessa época é a tentativa de
compreender o ser enquanto ser.  O ser absoluto infinito e permanente,
imutável.  Nunca contingente. E a ciência verdadeira também deverá ser
permanente.

É excluída então a possibilidade de uma ciência que gera conhecimentos
contingentes e finitos. Assim percebemos porque o conhecimento abstrativo é
mais adequado à ciência necessária, pois o intuitivo trata da atualidade dos
objetos, o que há de finito neles.

 

“O conhecimento científico deve captar o que há de necessário nas
coisas finitas.”[4]

 

Assim, deixa-se de lado a contingência e finitude dos objetos, que
compreendem apenas sua atualidade. Fica claro então que o conhecimento
abstrativo é mais adequado para apreensão do necessário que existe neles.

            O
autor não trata apenas do conhecimento e dos processos abstrativos do
intelecto, mas principalmente da correspondência entre uma possível ciência
permanente e verdadeira e as coisas em si, sua essência, quididade, e procura
demonstrar que a quididade está realmente presente nos objetos.

 

Capítulo Segundo

 

A Natureza
Comum

 

            Para
falar sobre essa quididade, Duns Escoto recorre a Avicena, que coloca o problema:
A essência é individual ou universal?

            A
esta questão Duns Escoto responde que a essência não é nem singular nem
universal, mas transita entre as duas.

 

Segundo o
Dicionário Oxford de Filosofia:

 

Quididade: 
A essência real ou natureza de uma coisa. (diferente da ecceidade,
que faz o indivíduo particular ser o que é). O quê de uma coisa é um universal,
no sentido em que muitos particulares diferentes podem partilhar as mesmas
propriedades essenciais. O conhecimento quiditativo seria o conhecimento da essência
real ou da natureza de uma coisa, segundo a tradição teológica dominante, não
podemos ter um conhecimento quiditativo de Deus (ou ser absoluto); na melhor
das hipóteses, podemos saber coisas sobre ele através de representação,
abstração.”[5]

 

            Para
Duns Escoto, a natureza essencial dos objetos pode ser apreendida através do
intelecto, do conhecimento intelectual. E também por conceitos universais,
ficções puras do intelecto, mas que realmente possuem referência nas coisas. O
conhecimento intelectual possui referência na realidade concreta por
representação, e se isso acontece, ele não pode ser distinguido totalmente das
coisas em si.

 

            “Em
algum aspecto, deve haver uma identidade entre a coisa nela mesma e o
conhecimento na alma”.[6]

 

            Pode
haver identidade entre as duas coisas, mas também há distinção, uma vez que
podemos diferenciá-los, e é isso que torna a coisa cognoscível. A coisa
existente é singular, o conhecimento é universal. A essência ou quididade é o
que torna a coisa real concreta, e ela deve existir necessariamente em todas as
coisas concretas. Dessa forma, o intelecto pode conhecer através das
representações ou referências delas.

            A
essência ou natureza comum é o que permite que haja algo inteligível na coisa,
que pode ser apreendido pelo intelecto mesmo sem sua existência atual.

            Da
mesma forma, a substância da coisa é o que a torna singular. Duns Escoto retoma
Aristóteles e a noção de singularidade substancial, onde ele diz que não é
necessário acrescentar nada além da substância, para que algo seja singular.
Mas para Duns Escoto essa substância tem uma natureza, e a natureza é
universal. O problema está na universalização da natureza.

            Quando
falamos em essência, podemos dizer que ela é universal, mas através desse
universal podemos também singularizar, e existe unidade na singularidade. Como
existem diversos tipos de singularidades, também há diferentes tipos de
unidades.

            Na
filosofia de Duns Escoto a unidade pretendida é a unidade verdadeira, real. E a
realidade é o que precede o intelecto.

            O
que possibilita a separação das coisas é o que as diferencia. São os diferentes
tipos de unidades que tornam possíveis as distinções, separações, e o intelecto
humano só pode conhecer assim, por causa das unidades existentes nas
universalidades, ou suas reais indentidades.

 

            “Diante
disto, podemos definir a identidade real como aquela que precede qualquer ato
do intelecto e, consequentemente, a unidade real como aquela que prcede
qualquer ato do intelecto. A unidade real, portanto, não é somente aquela da
coisa existente atualmente a parte, mas é a unidade de tudo o que se dá
independente do ato do intelecto. A unidade da razão é aquela que só existe no
modo de conceber.”[7]

 

            Diante
dos dois modos de conhecer, o intuitivo e o abstrativo, apreendemos de
diferentes maneiras. No intuitivo, através de unidades numéricas, enquanto no
abstrativo através de realidades menores que as numéricas, unidades formais.

            Se
distinguirmos essas unidades, podemos pensar que quando falamos de unidade,
singularizamos. Mas a distinção da unidade numérica é a que faz com que um
indivíduo seja singularizado e distinto de outro indivíduo.

            Ao
tratar da abstração e unidade da forma, Duns Escoto a divide em duas partes:
unidade maior e unidade menor, enquanto as maiores são aquelas formadas por
muitos indivíduos que compõem um todo, e as menores, por cada parte menor desse
todo.

            Para
provar que as essências são reais, são utilizados alguns argumentos sobre as
unidades. Ele afirma que a unidade da natureza é menor que a numérica, e,
portanto, a natureza não pode ser individual.

            As
unidades reais da natureza não são singulares. E elas não podem ser medidas
através de unidades numéricas, mas de unidades próprias da natureza (menor que
a numérica).

 

            “Ora,
mostrar isto é mostrar que, além dos indivíduos, há certas entidades
não-individuais em si, as naturezas comuns ou quididades, que merecem ser
chamadas de “reais”, pois existem independente de qualquer ato do intelecto”.[8]

 

            O
filósofo tenta provar que existe uma unidade e realidade além da numérica, de
três maneiras:

 

1.    
Um fato exige uma certa unidade (por exemplo, o gênero)

2.    
Esta unidade do fato é real (por exemplo, a espécie)

3.    
É uma unidade real e não numérica (faculdades sensitivas que os
percebem, se há semelhança entre dois objetos distintos, então essa semelhança
não pode ser caracterizada como unidade numérica).

 

Por exemplo, o fogo quando queima produz outro fogo, e os dois juntos
geram mais fogo, ou uma nova unidade do fogo. Essa unidade não é produzida no
intelecto, apesar de ser real. Uma unidade real e não-numérica. Sabemos que ela
existe, mas não pode ser numérica.

Dessa forma, a natureza não é singular nem universal, mas transitoriedade
entre as duas coisas.

 

Singular        NATUREZA          Universal

 

A natureza é neutra, comporta o que existe de comum entre um e outro,
entre o singular e o universal. É, portanto, anterior a eles. Por isso uma
realidade menor que a numérica.

 

“Para que o conhecimento tenha uma relação com as coisas e não seja
uma pura ficção do espírito, é necessário que haja algo em comum entre as
coisas singulares e os conceitos universais no intelecto. Este algo em comum,
portanto, deve ser anterior tanto ao singular quanto ao universal, pois se for
um deles, não poderá ser o outro, e, portanto, não haverá comunicação entre
eles”.[9]

 

Trata-se de uma realidade da forma, realidade da essência nela mesma.
Realidade que a natureza possui quando está em relação com a universalidade e
singularidade, e que a torna cognoscível.

 

 

Capítulo
Terceiro

 

Da Espécie
Inteligível

 

            Duns
Escoto não afirma que a causa do conhecimento intelectual está somente na
própria alma, nem que está somente no objeto. Ele propõe uma mediação.

            O
intelecto humano é capaz de apreender o que existe de universal, mas também
depende da existência de um objeto a ser conhecido. A existência do objeto
precede o processo intelectivo, e não há ato de conhecimento sem um objeto a
ser conhecido.

            O
ato de intelecção e conhecimento de um objeto pressupõe então a existência
dele, que pode ser presencial ou universal.

 

Sobre a
universalidade do objeto

 

            O
intelecto humano produz a espécie inteligível, uma vez que a
universalidade existe nos objetos, mas não em ato. É o intelecto agente, aquele
que produz a espécie inteligível.

 

            “Em
suma, como o intelecto necessita de um objeto universal e como as coisas
existentes não são este objeto, o intelecto produz algo novo, a espécie
inteligível que representa as coisas singulares sob a razão de um universal”.[10]

 

            O
intelecto agente produz a espécie inteligível que capta o inteligível
universal, distinguindo o mais universal do menos universal. Por exemplo, o
homem é um animal. O cavalo também é um animal. Mas cavalo não é homem, e homem
não é cavalo. Os dois são animais. Animal, nesse caso, é mais universal. Homem e
cavalo menos universais.

            Para
inteligir, é necessário que o intelecto crie um representante do mais e do
menos universal.

 

Da presença
do objeto para intelecção

 

            O
intelecto humano opera de maneira diferente dos sentidos, mas não age
totalmente separado deles. Está necessariamente ligado aos sentidos, então
podemos dizer que o intelecto está ligado ao sensível, que a alma está ligada
ao corpo.

            Se
podemos distinguir alma e corpo, é possível afirmar que, assim como os sentidos
operam de acordo com o sensitível, a alma opera de acordo com o inteligível, e
produz a espécie inteligível para que se dê a apreensão.

Capítulo
Quarto

 

A produção da
espécie inteligível

 

            No
processo de produção da espécie inteligível podemos nos perguntar sobre o papel
do intelecto e o papel da espécie inteligível.

O intelecto produz a espécie inteligível, mas isso não significa
necessariamente que ela seja responsável sozinha pela apreensão do universal.
Existe também o processo de intelecção atual.

A espécie inteligível produzida pelo intelecto é tão importante quanto o
próprio intelecto. Ele, se não existisse, não a produziria. E se ela não fosse
produzida, não haveria intelecção. Dessa forma, são interdependentes e um não é
mais perfeito que o outro.

A espécie inteligível, no entanto, só é produzida porque existe no objeto
algo de cognoscível. De fato, na produção da espécie inteligível, há
causalidades.

Podemos dividir as causalidades em duas partes: causa superior e causa
inferior.

 

Causa
Superior       MOVIMENTO (ESPÉCIE INTELIGÍVEL)        Causa Inferior

 

            Existe
um movimento contínuo entre as causas. Por exemplo, o pai é causa do filho. Mas
o pai também é filho e foi causado por outro pai. Nesse caso, pai é o efetivo
(que causa o efeito) e o filho é o efetível (causado).

            Sobre
as causalidades acidentais, Aristóteles as definia como distintas do próprio
objeto, os acidentes fazem parte do objeto como uma das propriedades dele, sem
necessariamente fazer parte da sua essência. O acidente é, portanto, algo
provocado, mas só pode ser provocado porque existe a potencialidade de
causalidade no objeto.

            Podemos
dizer que este tipo de causalidade Per Accidens (por acidente) está presente
tanto no objeto quanto no intelecto.

            Um
efetível nunca é causa de si mesmo, ele é sempre causado por um outro. O único
efetivo inefetível, para os medievais, era Deus, o ser enquanto ser, o ser
absoluto.

            Os
acidentes acontecem infinitamente, efetivos-efetíveis, mas o intelecto só
consegue apreender pontualmente as causas. Apreendemos através dos efeitos dos
efetíveis. Se os objetos fossem inteligíveis por eles mesmos, o intelecto não
precisaria produzir a espécie inteligível.

            A
perfeição e verdadeira essência seria então a primazia do efetivo que não é
efetível. Seria causador, mas nunca o causado, efetivo sem causa. O intelecto
humano pode se aproximar dele, mas nunca alcançá-lo, uma vez que o intelecto é
finito e a essência verdadeira deve ser infinita e permanente. O conceito de
infinito é o mais perfeito dentre todos os outros produzidos pela espécie
inteligível, e seria através dele a maior aproximação com o efetivo inefetível.
Através desse conceito o intelecto humano pode se aproximar do ser enquanto
ser, usando a representação apreendida pela espécie inteligível no intelecto.

            O
que podemos perceber em Duns Escoto é a distinção entre as representações e o
ser da coisa, entre o ser da coisa e o objeto natural do conhecimento humano, e
como é possível a relação entre eles.

            O
ser está incluso em tudo o que é inteligível. O ser enquanto ser para o intelecto
é inacessível. Podemos tentar demonstrar ou representar o ser, mas essa
representação é objeto do conhecimento, não o ser do objeto em si.

            O
infinito não é conhecido quando damos sequência a uma coisa depois da outra,
isso é finito, numérico, pontual. O intelecto humano não é capaz de compreender
o infinito porque a maneira como ele opera funciona de modo atual e finito.

 

O papel do
intelecto agente

 

            Podemos
dizer que o papel do intelecto agente é produzir a espécie inteligível que
possibilita a apreensão por representação do que existe de cognoscível nos
objetos.

 

            “Nesta
produção, o intelecto agente transfere a natureza comum da ordem sensível para
a ordem inteligível, isto é, da singularidade para a universalidade. Ele
produz, em outras palavras, uma nova modalidade ou natureza comum, mas,
produzindo esta nova modalidade, ele está produzindo a própria inteligibilidade
da natureza comum. Ele está, em suma, produzindo um objeto proporcional ao
intelecto, isto é, uma espécie inteligível. Daí, podemos dizer que o intelecto
agente é a causa ativa da espécie inteligível e, além disso, que ele é sua
causa principal.

            O
papel do intelecto agente é, portanto, fazer do não-universal um universal, não
no sentido da abstração tomista, mas no sentido de uma produção real de um
representante do objeto.”[11]

 

O papel da
imagem

 

            A
imagem fornece a natureza comum, que depois é universalizada pelo intelecto. É
a imagem, a forma que torna possível a produção de uma espécie inteligível que
vai fazer com que o intelecto apreenda a representação do objeto. A imagem é
então a causa formal da espécie inteligível.

            A
espécie inteligível é produzida por duas causas: o intelecto agente e a imagem.
O intelecto agente fornece a universalidade e a imagem fornece a essência, ou
quididade.

            Uma
vez que a imagem é também causa da espécie inteligível, como podemos dizer que
é universal (quando apreendida no intelecto), uma vez que aparentemente a
imagem é singular e é por causa da singularidade que distinguimos um objeto de
outro? Como ela fornece a natureza comum pura, se é singularizada? A natureza
pura pode nos ser dada nos sentidos e na imaginação?

            Para
Duns Escoto, o objeto dos sentidos não é múltiplo nem uno, nem universal nem
singular, mas transitoriedade entre eles. Da mesma forma que o intelecto
depende da produção da espécie inteligível, os sentidos dependem do que existe
de universal nos contingentes e singulares.

 

            “Com
efeito, o objeto “em geral” da visão não é esta coisa singular, mas os visíveis
em geral
, isto é, a natureza visível.”[12]

 

            Dessa
forma, o sentido da visão apreende o que há de visível no objeto, e não o
objeto em si. E esse visível no objeto é o que pode ser universalizado pelo
intelecto. O objeto “em geral” da visão não é apenas o universal visível, mas a
natureza pura que existe nos sentidos: na visão, o visível, na audição, o
audível, e assim por diante, e não apenas quando os sentidos estão em ato. Por isso os sentidos também fornecem uma natureza pura, tanto em ato quanto em seu
próprio objeto “em geral”.

            O
sentido não é capaz de distinguir o branco da brancura. Não há separação. Por
exemplo, em uma tela branca, não há distinção de brancura de cada parte dela, a
visão nos proporciona o branco, e se houver branco e brancura, eles estão
misturados ali, não seremos capazes de distinguir o branco da brancura da tela.

 

            “Ora,
se o sentido não pode distingui-los, é porque não pode captar os objetos em sua
singularidade. O máximo que os sentidos captam é a natureza comum, a quididade
deles.”[13]

 

            Nossos
sentidos não são capazes de captar as ecceidades dos objetos, o ser absoluto
deles.

 

            Ecceidade,
segundo o Dicionário Oxford de Filosofia:

 

            “Termo
usado por Duns Scotus para designar aquilo em virtude do que um indivíduo é o
que o indivíduo é: em sua essência individuadora que faz dele este objeto ou
esta pessoa.”[14]

 

            Os
sentidos, portanto, apreendem a natureza comum dos objetos, e o intelecto o
universal que é captado através da espécie inteligível.

            Isto
mostra como o papel da imagem é importante na produção da espécie inteligível,
pois ela tem como referência os objetos singulares, apesar de não conseguirmos
apreender a ecceidade deles.

 

Capítulo
Quinto

 

Da Certeza.

 

            Até
agora, vimos que o conhecimento abstrativo, a natureza comum, a espécie
inteligível, a dupla causalidade na produção da espécie inteligível, a
causalidade formal da imagem nessa produção e a percepção da natureza comum já
na sensação são as condições fundamentais para a possibilidade de uma essência
necessária.

            No
último capítulo do livro “O Conhecimento Abstrativo em Duns Escoto”, o autor Cesar Ribas Cezar nos mostra como Duns Escoto prova que o intelecto
humano verdadeiramente possui essa ciência.

 

            “Duns
Escoto tenta mostrar, dentre outras coisas, a validade do nosso conhecimento do
mundo exterior.”[15]

 

A certeza
sobre os primeiros princípios

 

            Existem
evidências que são certas por si mesmas, onde a causa da verdade e da realidade
delas são elas mesmas, e não um outro.

            O
autor nos dá um exemplo de silogismo, onde através de termos de proposições, o intelecto
reconhece esses termos como evidências certas e necessárias. Por exemplo, o
todo é maior que a parte. Os termos dessa proposição são imediatamente certos
para o intelecto. Os termos são diferentes da conclusão, pois as conclusões dos
silogismos não têm como causa de sua certeza seus próprios termos, mas os
princípios dos quais foram deduzidas.

            A
estes termos, então, podemos chamar de primeiros princípios.

 

            “A
evidência dos termos e de sua composição num primeiro princípio causa
necessariamente no intelecto a apreensão de sua verdade, o assentimento a esta
verdade e gera uma certeza infalível.”[16]

 

            As
imagens apreendidas pelos sentidos são a causa do conteúdo dos termos, e assim
o intelecto formula o primeiro princípio e reconhece a verdade certa, mas sem a
ajuda dos sentidos. Dessa maneira, mesmo que os sentidos nos enganem, o
intelecto não se engana quando apreende os primeiros princípios.

            Como
foi tratado no primeiro capítulo, com os princípios de apreensão simples, que o
intelecto e a intuição apreendem, antes de formularem um juízo. A primeira
apreensão do intelecto é sempre verdadeira. Como por exemplo, o branco que
representa a brancura, mesmo que os sentidos nos enganem, ele vai continuar
representando a brancura sempre.

            “O
intelecto pode, portanto, formular o princípio: o branco não é preto”
independente dos sentidos e reconhecer com certeza a verdade deste princípio
pela evidência do conteúdo dos termos.”[17]

 

            Isto
nos mostra o quanto o intelecto é independente na formulação desses princípios,
e é capaz de reconhecer a verdade, mesmo sem o auxílio dos sentidos, ou mesmo
de uma realidade exterior. O intelecto capta a evidência imediata dos conteúdos
inteligíveis, e estes conteúdos são naturalmente acessíveis.

            Da
mesma forma, assim como existe certeza dos primeiros princípios dos termos,
existe também na conclusão dos silogismos perfeitos. Quando estamos certos das
proposições e seus termos, a conclusão também será necessariamente certa.

 

Certeza sobre
os nossos próprios atos (ou certeza de certos conhecimentos contingentes)

 

            Os
nossos atos são conhecidos como uma evidência imediata. Não é possível
demonstrar que os nossos atos são evidências imediatas, mas temos certeza da
verdade delas.

 

            “Posso
duvidar que haja um branco fora de mim, mas não posso duvidar que vejo um
branco.”[18]

 

            “Eu
vejo um branco” é contingente, mas é um ato nosso e necessariamente evidente e
imediato. Isso já foi mostrado quando explicado o tipo de conhecimento
intuitivo, onde a relação entre o objeto e o conhecimento necessariamente se
unem.

            Existe,
portanto, um contato direto dos nossos próprios atos com a nossa mente, nosso
intelecto.

 

 

 

 

 

O Mundo
Exterior

 

Se através do agente intelectivo “tocamos” os objetos numa evidência
imediata, isso significa que mesmo que a sensibilidade se engane, esse erro não
prejudica sua capacidade de direito de conhecer o mundo exterior.

Mas, para Duns Escoto, o conhecimento do mundo exterior é uma questão de fato,
não de direito, dessas capacidades.

Independente da capacidade de direito das sensações, podemos diferenciar
as sensações enganosas das verdadeiras.

 

“Ora, como vimos, a fonte da certeza está nos primeiros princípios e
no conhecimento dos nossos próprios atos, pois estes são necessariamente
evidentes e certos. Logo, a certeza de que tal sensação não é enganosa deve ser
derivada destes conhecimentos necessariamente evidentes.”[19]

 

Existe a disposição da sensibilidade de acertar sobre o objeto aquilo do
qual é necessariamente e primeiramente evidente. E a evidência disso é o fato
de estarmos acordados, e sabermos que estamos acordados. Isso pressupõe a
disposição dos nossos sentidos a perceberem. O ato de estarmos acordados é
imediatamente evidente. Temos a capacidade de apreender representações
inteligíveis, isso nos mostra também o quanto estamos acordados.

E se estamos acordados, apreendemos representações do mundo exterior.

 

Certeza
acerca dos conhecimentos da experiência

 

            Quando
apreendemos essas representações, e nos colocamos de certa forma em contato com
o mundo exterior, podemos dizer que isso acontece através de uma experiência, e
nossos conhecimentos são derivados dela. Dessa forma, a experiência acontece
quando há o conhecimento das leis gerais através da observação dos casos
particulares.

            Apesar
da experiência nos dar uma representação imediata e finita, ela é importante,
pois permite a passagem do que é freqüente para o sempre, do contingente para o
necessário.     

            Mesmo
que a experiência não nos dê a totalidade da coisa, através dela podemos
apreender uma lei geral dessa coisa.

            Duns
Escoto divide as causas da experiência em duas: a livre e a não-livre. A causa
livre implica a escolha de livre arbítrio, a causa não-livre pode ser divida em
duas: causa casual e causa natural.

            A
causa casual pode ocorrer per accidens, ou um efeito produzido tanto pelo
acidente da própria causa quanto por efeito de uma conjunção causal de
circunstâncias.

            A
causa natural produz sempre o mesmo efeito, o efeito não muda quando mudam as
circunstâncias dos acidentes.

 

            “Isto
ocorre porque o efeito foi produzido pela própria natureza da causa e esta
natureza não muda.”[20]

 

            Sabemos
se uma causa é livre ou não-livre se observarmos se há escolha de
livre-arbítrio nela.

            Quando
não é provocada pelas nossas escolhas, e quando permanece sempre o mesmo efeito,
independente da variação dos seus acidentes, podemos dizer que uma causa é
livre, e o efeito de um objeto é causado pela sua própria natureza, não por
seus acidentes.

            Para
Duns Escoto, há dois tipos de conhecimentos indutivos obtidos a partir da
experiência. No primeiro tipo, a experiência de um efeito se torna conhecido
pela ciência verdadeira, a partir do momento em que demonstramos o porquê do
efeito partindo de um princípio evidente. Já no segundo tipo, apesar de a
experiência produzir um efeito, não encontramos um princípio evidente do qual
possa ser deduzido. Assim mesmo, sendo causas livres ou não-livres, a validade
da lei geral pode ser apreendida.

 

 

 

 

Certeza
acerca do conhecimento sensível

 

            Como
demonstrar que os objetos exteriores são realmente o que nos parecem? Sobre as
representações, podemos dizer que as fazemos também através dos sentidos, e que
diferentes sentidos apreendem de diferentes maneiras. Por exemplo, uma mesma
representação surge nos diversos sentidos. Essa representação é efeito de uma
causa natural do objeto, é naturalmente produzido por ele. Ou podem surgir duas
representações opostas na presença de um mesmo objeto. Isso acontece quando um
dos nossos sentidos não está certo. Então podemos recorrer a experiência de
todos os outros sentidos para confirmarmos o que é certo, pois eles recorrerão
sempre ao primeiro princípio para distinguir qual deles está certo.

            Dessa
forma, fica demonstrado que há conhecimentos certos por suas evidências, e
outros que ganham evidências do que é certo. E estes conhecimentos são
naturalmente acessíveis ao homem, que, para que isto se dê, não necessita da
iluminação de Deus.

            Deus
pode ser o infinito, o ser absoluto, mas o homem é capaz de se aproximar
naturalmente da verdade contida nos objetos do mundo exterior, por isso é
possível e de fato ocorre a ciência verdadeira, a ciência necessária.

 

            “Escoto
tenta mostrar, dentre outras coisas, a realidade do nosso conhecimento do mundo
exterior. Nesta questão, com efeito, ele tenta mostrar que o intelecto humano
pode conhecer naturalmente, nesta vida, sem nenhuma iluminação da luz incriada,
verdades certas e integrais, e, dentre elas, verdades conhecidas através da
experiência e através dos sentidos.”[21]

 

            Assim,
podemos perceber que, para esse filósofo, o conhecimento humano certo é
possível e causa natural, e não depende necessariamente da luz de Deus para
tal, apesar de ser ele um filósofo medieval ocidental.

 

 

 

 

Bibliografia

 

CEZAR, Cesar
Ribas. O Conhecimento Abstrativo em Duns Escoto. Porto Alegre, EDIPUCRS, 1996.

 

SCOT, Duns. Coleção
Pensadores
. Abril Cultural, São Paulo, 1973.

 

BLACKBURN,
Simon. Dicionário Oxford de Filosofia. Ed. Jorge Zahar, Rio de Janeiro,
1997.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


[1]
CEZAR, Cesar Ribas. O Conhecimento Abstrativo em Duns Escoto. Pg. 12.

[2]
Idem, pg. 13.

[3]
Ibdem, pg. 18

[4]
Ibdem, pg. 20.

[5]
BLACKBURN, Simon. Dicionário Oxford de Filosofia. Jorge Zahar, Rio de Janeiro,
1997. pg. 330.

[6]
CEZAR, Cesar Ribas. O Conhecimento Abstrativo em Duns Escoto. Pg. 23.

[7]
Idem, pg. 28.

[8]
Ibdem, pg. 29.

[9]
Ibdem, pg. 33.

[10]
Ibidem, pg.43.

[11]
Ibdem, págs. 62 e 63.

[12]
Ibdem, pg. 64.

[13]
Ibdem, pg. 65

[14]
BLACKBURN, Simon. Dicionário Oxford de Filosofia. Jorge Zahar, Rio de Janeiro,
1997. pg. 111.

[15]
CEZAR, Cesar Ribas. O Conhecimento Abstrativo em Duns Escoto. Pg. 69.

[16]
Idem, pg. 62.

[17]
Ibdem, pg. 74.

[18]
Ibdem, pg. 76

[19]
Ibdem, pg. 77.

[20]
Ibdem, pg. 79.

[21]
Ibdem, pg. 69.

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