O Papa, a Teodicéia e a questão Islâmica
Nelson Castelo Branco Eulálio Filho(*)
Assustei-me com a eleição do novo papa. Escolheram justamente aquele que no reinado anterior comandou com mão-de-ferro a Congregação para a Doutrina da Fé, nova denominação (conveniente) para o antigo Tribunal do Santo Ofício, mais conhecido do grande público como Tribunal da Inquisição – aquele das fogueiras. O mesmo que foi da juventude hitlerista – e, portanto, estava, de uma forma ou de outra, ao lado dos nazistas na 2ª Guerra Mundial – e que os vaticanistas apelidaram pouco carinhosamente de “Panzercardinal” e “Rottweiler de Deus”. O mesmo que o jornal inglês The Observer (ver revista Carta Capital de 03.05.05) acusa com provas documentais de ter obrigado seus bispos ao redor do mundo a encobrir, sob pena de excomunhão, milhares de casos de pedofilia praticados por clérigos católicos pelos quais a Igreja se viu obrigada a pagar mais de 1,5 bilhão de dólares! Essa cifra deve aumentar muito com o aparecimento, nos EUA, de advogados especializados em casos da espécie.
Todo esse dinheiro vem do povo, do povo pobre que mantém essa enorme superestrutura ideológica – como diria Marx – os povos latinos americanos, africanos, etc., como, aliás, é típico dos povos católicos. Como é, meu Deus, que 115 “príncipes”, sexagenários e setuagenários, instalados num hotel 5 estrelas (chamado eufemisticamente de “Casa Santa Marta”), tomando vinhos das melhores safras (franceses, naturalmente), fumando charutos (cubanos) de excelência, e contando anedotas sobre o “garçom da Santa Ceia” decidem o rumo espiritual de mais de um bilhão de almas?! Almas que, claro, habitam corpos; corpos que ficam doentes, que têm desejos, que são agressivos e, no plano psicológico/moral, sujeitos à vaidade, à inveja, à soberba, etc. – em resumo: Humano, Demasiado Humano – como diria Nietzsche. Talvez achando pouco tanta ostentação de “podres poderes” (Salve, Caetano), e para abrir com “chave de ouro” seu pontificado, o novo papa resolveu satanizar os gays e impedir-lhes o ingresso nos seminários. Como vão fazer o “teste” é que eu gostaria de saber.
Mas, alvíssaras! Dentre tantos anacronismos próprios de sua Igreja, o papa teve uma grande oportunidade (e soube aproveitá-la) de trazer alguma luz ao seu rebanho (rebanho aqui no mais puro sentido nietzschiano). Refiro-me à visita de Sua Santidade ao campo de concentração de Auschwitz, na Polônia. Ali, numa rara demonstração de honestidade nessas coisas da Igreja, o papa subiu no conceito de todos aqueles que têm Deus como Absoluto. Absoluto que, justamente enquanto Absoluto, é ingonoscível.
Em sua recente visita ao um cenário daquilo que a filósofa judia-alemã Hannah Arendt (1906-1975) chamou, a propósito das execráveis práticas nazistas, de “coração das trevas”, a ameaça maior às sociedades democráticas; a confluência da capacidade destrutiva e burocratização da vida pública, expressa no famoso conceito de “banalidade do mal”[1], o Papa Bento XVI disse que “Em um lugar como este, faltam palavras. No fim, pode haver apenas um silêncio no qual um coração clama por Deus. Por que, o senhor permaneceu em silêncio? Como pôde tolerar tudo isso? Onde estava Deus naqueles dias? Por que ficou em silêncio? Como pôde permitir esse massacre sem fim, esse triunfo do mal?” Após essas palavras, um silêncio constrangido se fez ouvir em todo o mundo católico.
A declaração do papa é uma grande inovação na questão da Teodicéia, isto é, a tentativa (a meu ver descabida e até atéia), de tentar justificar ou “defender” Deus. A questão vem de longe e remonta à história de sofrimentos de Jó, que inclui a morte de seus 10 filhos. O assunto voltou à tona com o rei de Castela, Afonso X (1221-1284) quando teria dito em suas observações astronômicas (ele era um estudioso desse assunto e deixou um legado, as chamadas Tablas Afonsinas) que “Se eu houvesse podido aconselhar Deus na Criação, muitas coisas teriam sido mais bem ordenadas” – Essa frase, com algumas variações, representou a essência da blasfêmia por um período próximo de 500 anos![2] Com o famoso terremoto de 1755, que destruiu a cidade de Lisboa e abalou os alicerces do Iluminismo, a questão voltou novamente à tona com toda força. O que não se compreendia era como Deus podia permitir a morte, indiscriminadamente, de bandidos, honestos, padres, freiras, prostitutas e crianças (inclusive não batizadas).
O termo Teodicéia[3] foi criado pelo filósofo e matemático Leibniz (1646-1716) como título de uma sua obra: Ensaio de Teodicéia sobre a bondade de Deus, a liberdade do homem e a origem do mal. A finalidade da obra é indicar a demonstração da justiça divina por meio de dois problemas fundamentais: o do mal e o da liberdade humana. Sobre o mal a Teodicéia de Leibinz reflete mais exatamente sobre as considerações desenvolvidas por Bayle (1647-1706), para quem a história é a história dos crimes e infortúnios da raça humana e “um Deus que poderia ter criado um mundo contendo menos crimes e infortúnios, e escolheu não o fazer, parece não passar Ele próprio de um gigantesco criminoso”. Essas considerações na verdade só ampliava o que já dissera o filósofo grego Epicuro (341-270 a.C.) segundo o qual, “Deus, ou quer impedir os males e não pode, ou pode e não quer, ou não quer nem pode, ou quer e pode. Se quer e não pode, é impotente: o que é impossível em Deus. Se pode e não quer, é invejoso: o que, do mesmo modo, é contrário a Deus. Se nem quer nem pode, é invejoso e impotente: portanto nem sequer é Deus. Se pode e quer, o que é a única coisa compatível com Deus, donde provém a existência dos males? Por que razão é que não os impede?”
É lícito afirmar que o Papa com seus comentários em Auschwitz deu uma grande lição de verdadeira fé a todos: católicos, protestantes, ateus, agnósticos e até ao pagão Epicuro. Deu-a principalmente àqueles que estão sempre prontos a tratar Deus com uma intimidade despropositada e que se julgam portadores de uma “fé” que lhes autoriza “defender” Deus. A dúvida do papa é muito mais honesta, muito mais verdadeira enquanto fé e dá uma exata dimensão do conceito de Deus, a saber, a incognoscibilidade que é intrínseca ao conceito e sem a qual, aliás, qualquer alusão a Deus é atéia. Mas, quase como que para confirmar que “alegria de pobre dura pouco” jogou uma ducha de água fria em todos quantos julgavam ter visto naquela postura humilde um sinal, uma tendência de distensão nas sempre tensas questões teológicas e, principalmente, um indício de uma maior fraternidade e tolerância entre as religiões. Qual nada!
Após a dolorida, corajosa e honesta admissão da incognoscibilidade de Deus no discurso em Auschwitiz – que só o engrandeceu, não esqueçamos de registrar – Bento XVI jogou o catolicismo no olho do furacão político-religioso que varre o mundo ao citar, numa lectio magistralis proferida na Universidade de Regensburg, um desconhecido imperador bizantino (Manuel II Paleólogo). Dentre outras coisas, disse o Papa que “Eu fui lembrado de tudo isso [a questão de Deus através da razão] recentemente quando li (…) parte de um diálogo que aconteceu – talvez em 1391 nos quartéis de inverno perto de Ancara – pelo erudito imperador bizantino Manuel 2º Paleologus e um persa educado nos assuntos do cristianismo e do Islã, e as verdades de ambos”. “Na sétima conversa – continua Bento XVI – o imperador toca no assunto da guerra santa. Sem entrar em detalhes, como a diferença entre aqueles que leram o ‘Livro’ e os ‘infiéis’, ele se dirigiu ao seu interlocutor com uma rispidez surpreendente na questão central sobre a relação entre religião e violência em geral, dizendo: ‘Mostre-me o que Maomé trouxe que era novo, e lá você encontrará apenas coisas más e desumanas, mas como o seu comando de espalhar pela espada a fé que ele pregava’. “O imperador – continua a narrativa de Bento XVI – depois de se expressar tão fortemente, continuou explicando em detalhes os motivos pelos quais espalhar a fé através da violência são desarrazoados. Violência é incompatível com a natureza de Deus e com a natureza da alma”. ‘Deus – disse dito o imperador bizantino – não fica contente com sangue – e não agir razoavelmente é contrário à natureza de Deus (…) qualquer um que leve alguma pessoa à fé precisa da habilidade de falar bem e de raciocinar apropriadamente, sem violência ou ameaça’. E continuou Bento XVI na fatídica aula magna: “A declaração decisiva neste argumento contra a conversão violenta é isso: não agir de acordo com a razão é contra a natureza de Deus”. Explica o papa que “o editor Theodore Khoury observa: ‘para o imperador, enquanto um bizantino moldado pela filosofia grega, esta declaração e auto-evidente. Mas para o ensinamento mulçumano, Deus é absolutamente transcendente. A sua vontade não está presa a nenhuma das nossas categorias, mesmo àquela da racionalidade’”.
Ora, nesse inconveniente revival da querela medieval fé x razão Bento XVI poderia ter citado Tomás de Aquino que, aliás, acho que foi inspirado em quem o tal imperador bizantino estruturou sua fala. Num texto do século XIII, Santo Tomás de Aquino diz o seguinte acerca da religião de Maomé: “Os fundadores de seitas procederam de maneira inversa. Tal é o caso evidente de Maomé, que seduziu os povos com promessas de prazeres carnais, a cuja base está a concupiscência da carne. Soltando as rédeas da voluptuosidade, Maomé promulgou mandamentos conforme as suas promessas, mandamentos aos quais os homens carnais podem obedecer com facilidade. No que concerne às verdades, Maomé só revelou verdades fáceis de compreender para qualquer espírito medianamente aberto. Em compensação entremeou as verdades do seu ensinamento com muitas fábulas e com as doutrinas mais falsas. Não trouxe quaisquer provas sobrenaturais, as únicas que constituem um testemunho adequado em favor da inspiração divina, quando uma obra visível, a qual só pode ser obra de Deus, demonstra que o doutor de verdade é invisivelmente inspirado por Deus. Ao contrário, Maomé alegava que tinha sido enviado para usar a força das armas, provas que costumam aduzir os ladrões, assaltantes e tiranos. De resto, os que desde o começo creram nele não foram pessoas instruídas nas ciências humanas e divinas, mas homens selvagens, habitantes dos desertos, completamente ignorantes de qualquer ciência de Deus, sendo que um grande número deles o ajudou, pela violência das armas, a impor a sua lei aos outros povos. Além disso, não há nenhuma profecia divina que dê testemunha em favor de Maomé. Ao contrário, Maomé deforma os ensinamentos do Antigo e do Novo Testamento mediante histórias legendárias, como se torna evidente a todo aquele que estudar a sua lei. Além disso, usando de uma medida cheia de astúcia, proíbe aos seus discípulos a leitura dos livros do Antigo e do Novo Testamento, que poderiam convencê-los de laborar em erro. É, por conseguinte, evidente que os que dão crédito às palavras de Maomé o fazem com leviandade”. (cf. Súmula contra os gentios – capítulo VI).
Trazendo para aqui as importantes palavras de Jesus: “Não penseis que vim trazer a paz à terra; não vim trazer a paz, mas a espada” (Mateus, cap. X, v. 34) e, ainda, a opinião de um outro Bento, a saber, Bento XV que se sentiu autorizado a apontar a Divina Comédia, de Dante Alighieri como “uma espécie de Quinto Evangelho”[4], a mesma Divina Comédia em cuja Primeira Parte (O Inferno – Canto IV) Jesus Cristo é apresentado como um “possante guerreiro”. Considerando tudo isso, as opiniões de Tomás, do Imperador Manuel II e de Bento XVI poderiam, da mesma forma “sacrílega” e pela mesma alegação (a “violência das armas”) ser dirigida a Jesus pelos adeptos da fé islâmica. Por respeito, os mulçumanos se abstiveram de tal grosseria.
(*) O autor é Mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Ceará – UFC.
[1] – cf. Arendt, Hannah. Eichmann em Jerusalém – São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
[2] – Susan Neiman, O Mal no Pensamento Moderno. Rio de Janeiro: DIFEL 2003.
[3] – Nicola Abbagnano. Dicionário de Filosofia.
[4] – (cf. A Divina Comédia, Prefácio. São Paulo: Abril Cultural, 1979)
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