O Pampeiro – José de Alencar

O Pampeiro

Um ruído surdo reboou pelas grotas 2) e algares 1)’ que acantilavam o cêrro abrupto. Parecia que a terra arquejava com o estertor de um pesadelo.

Ao mesmo tempo uma exalação ardente como o vapor de uma cratera derramou-se pela solidão. As feras uivaram longe na pro­fundeza das selvas, e as aves espavoridas passavam, soltando pios lúgubres. Os dois cavalos, com o pêlo eriçado, resfolgavam aquêle bafo ígneo semelhante ao fumo de uma batalha; êles o conheciam: era o sôpro da pátria selvagem; era o fôlego dos pampas [1]).

E de-repente a lua sepultou-se. Céu e terra submergiram-se num oceano de trevas. A aluvião das procelas se arremessara do horizonte e inundara a imensidade do espaço. Houve então um mo­mento de silêncio pavoroso; era a angústia da natureza asfixiada pela tormenta. Afinal ribombou o trovão na vasta abóbada ne­gra, sôbre a qual o relâmpago despejava cataratas de chamas. Não era uma tempestade, mas um turbilhão de tempestades, ba­cantes em delírio, que tripudiavam no céu. Como os touros, acos­sados pelo gaúcho arremetem com fúria e rompem a selva bra­mindo, assim o tropel das borrascas disparava pelo espaço.

O pampeiro, varrendo dos cimos dos Andes tôdas as tempes­tades que ali tinham condensado os calores do estio, verberava da imensidade as pontas do látego formidável com que ia açoitar o oceano. Atônitos e mudos de espanto, os animais contemplavam o grande paroxismo da natureza. A voz do trovão, o verbo das grandes cóleras celestes, sopitava todos os gritos e todos os rumo­res. A terra, pávida e estupefata, recebia a tremenda flagelação no meio das gargalhadas satânicas do raio, que surriava –[2]) fusti­gando as escarpas do rochedo.

O pampeiro é a maior cólera da natureza; o raio, a tromba, o incêndio, a inundação, tôdas essas terríveis convulsões do elemen­to, não passam de pequenas iras, comparadas com a sanha ingente do ciclone [3]) que surge das regiões plutônicas, como o gigante, para escalar o céu. Ei-lo, o imenso atleta que se perfila. Seu passo estremece a terra até às entranhas; a floresta secular ver­ga-lhe sob a planta, como a fina relva sob a pata do tapir [4]) ; seu braço titânico arranca os penhascos, as nuvens, as tempestades, e arremessa todos êsses projéteis 4) contra o firmamento.

Luta pavorosa que lembra as revoltas pujantes do arcanjo das trevas precipitando pela mão do Onipotente nas profundas do báratro[5]). O maldito, prôstrado no seio das chamas eternas, res­surge possesso, levantando-se para ascender c) ao céu; nada re­siste; a abóbada do firmamento treme abalada por seu ímpeto vio­lento. Mas que Deus incline a frente, e Satã cairá fulminado pelo olhar supremo.

O ímpeto do tufão toma tôdas as formas da ferocidade; sua voz é a gama 7) de todos os furores indómitos. Ao vê-lo, o terrí­vel fenômeno afigura-se uma tremenda explosão da braveza, do rancor e da sanha que povoam a terra. Aqui o pampeiro surge e arremete como cem touros selvagens escarvando o chão; ali sen­te-se o convólvulo 8) de mil serpentes que estringem as árvores co­lossais e as estilhaçam silvando; além uiva a matilha a morder o penhasco, donde arranca lascas da rocha, como lanchos 9) da carne palpitante das vítimas; agora são os tigres que tombam de salto sô­bre a prêsa, com um rugido espantoso. Finalmente ouve-se o ronco medonho da sucuri [6]) brandindo nos ares a cauda enorme, e o frê­mito das asas do condor[7]) que rue[8]) como hórrido estrídulo.

E tudo isto, sob um aspecto descomunal e imenso, não * se­não a voz e o gesto do gigante dos pampas, concitado das profun dezas da terra para subverter o orbe.

José de Alencar.

Fonte: Seleta em Prosa e Verso dos melhores autores brasileiros e portugueses por Alfredo Clemente Pinto. (1883) 53ª edição. Livraria Selbach.


[1] Pampas — planícies imensas, na América do Sul.-

[2] Surriava — sin. atroava os ares.

[3] Ciclome — furacão.

[4] Tapir — o mesmo que anta.

[5] Báratraro (poet.) inferno.

[6] Sucuri, sucuriú ou sucuriba — cobra monstruosa.

[7] Condor — ave de rapina, o maior volátil conhecido.

[8] Rue — precipita-se.

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