A mata virgem
Celso de Magalhães
E’ de manhã.
Aclarada pela luz gradual que aos poucos doura-lhe os cimos ostenta-se esplendorosa a mata virgem.
Quem houver viajado pelo norte do Brasil há-de, por certo, conhecer o acentuado selvagem de suas florestas e ter saudade daqu le vago rumorejar que nelas se escuta, daquela indefinida reunião de harmonias alpestres e há-de extasiar-se ainda com a lembrança do aroma acre, saudável e vivificante de suas árvores seculares.
Não têm as matas a garridice *) de ornamentação com que se arreiam 2) as várzeas, nem a alegria festiva e sempre fresca dos campos, onde a vista procura às vêzes, nos términos enfumaçados da verdura do capim ou do juncai que ondeia em curvas voluptuosas, a orla do palmeiral, que de longe nos acena.
Nada disso.
A imponência do seu aspecto faz com que se encare a mata virgem com respeito e admiração.
Os madeiros se levantam firmes, direitos, hirtos, soberbos, como reis que são daquelas regiões inabitadas, e, lá no alto, espalham as ramas, entrançam os galhos, formando enormes dosséis 3 de verdura, que sentem por vezes o beijo resfriado das nuvens iriadas que de perto os namoram.
A altura dos troncos parece querer rasgar o espaço, e o empinado arrogante do porte desafia as raivas das tempestades.
Na cortiça do angelim [1]) pousa um dia a semente da parasita; o sol dá-lhe calor, a noite dá-lhe sereno.
Dilata-se a semente, grela [2]); brota sôbre a superfície limosa decasca grosseira da árvore uma folhinha que brinca ao sôpro do vento. Depois cresce, cria raízes e introduz-se até o cerne [3]) do madeiro, traspassa-lhe a rigidez das fibras compactas e vai florescer ao outro lado.
Então espalha-se por todo o tronco, a mascarar-lhe 5) as rugosidades, um tapête lustrrso e florido6), e, em cachos rubros, descem as flores ao longo dos galhos.
Os festões balançam-se brandamente e espalham no chão as pétalas vivas e coloridas.
O madeiro sente o aperto sufocador daquele abraço, e empres- la caroável 7) seiva e vida à parasita que o enfeita.
Outras vêzes, junto à raiz da aracirana, vê-se o rebento de um cipó.
A trepadeira acaricia, ajeita-se, enrosca-se e vai circulando, pouco a pouco, a circunferência da árvore.
Um dia chega-lhe ao cimo, e as lianas 8) descem, como cordas dos ramos esgalhados e vem enterrar novas raízes no solo donde partiram.
Então aquêles cipós procuram-se, unem-se por meio de pontes aéreas, emaranham-se e formam uma rêde inextricável onde o aliado brilhante do machado vai embotar-se.
Dir-se-ia, ao ver essas lianas, serem elas a cordagem rudimentária de um navio monstruoso.
Reina por baixo dessas cúpulas verdes, uma luz soturna 9, nombreando melancolicamente os relevos, as saliências, os lineamentos de todos aquêles troncos e cipós.
[1]iriadas ou irisadas = que têm as côres do arco-íris.
2 Angelim — árvores leguminosa de madeira rija e que atinge doze r mais metros de altura.,
3 grela — rebenta, desabrocha.
4 cerne — âmago, a parte mais íntima da árvore.
5 mascar — e n
6 florido e flórido, segundo Manuel Bernardes, emprega-se florido em sentido próprio, isto é quando significa — está em flor, coberto de flores — laranjeiras floridas; e emprega-se flórido em sentido figurado — adornado de belezas poéticas… como-estilo flórido. Os escritores modernos não fazem esta distinção.
7 caroável — produtiva, criadora.
8 lianas — vocábulo tirado do francês (liane) = cipós (do tupi icirpó).
[1]9 sorturna — tristonha.
Dissereís que tôdas aquelas sinuosidades da cortiça dos madeiros são o esbôço incompleto de algum estuário caprichoso, q quisesse vasar naqueles moldes as feições de grifos e animais desconhecidos.
Banhada por essa luz esverdeada, a floresta faz lembrar grutas encantadas, e a imaginação a povoa de habitantes sobr naturais.
Junto às raízes das árvores nascem os cogumelos.
Ãs vêzes para dar um tom mais poético à paisagem, comoi que para libertar o espírito do pêso dessa pompa pavorosa, passai o ribeirão, gemendo ao lamber as fôlhas debruçadas nas margens! corcoveia ante o obstáculo de uma pedra em sua passagem, saltaJ por cima dela, formando uma cascatazinha, e rumorejando vai| perder-se além, em voltas e desvios.
Escuta-se continuamente ali como se fôra a harmonia proporcional àquela arrogância, um murmurar surdo, um rumor abafado semelhante ao resfolego [4]) ansiado de um gigante adormecido.:
Parece que a floresta é prêsa de um pesadelo e aquele ruído é o anélito [5]) de seu peito arquejante.
De envolta com êsses frêmitos, trazidos pelo vento, espalham-1 se ondas de perfumes e cheiros embalsamados, que o peito em haustos sorve 4) satisfeito e sente-se como que aliviado de mágoa; e pesares.
O observador parece experimentar em si o renascimento de uma nova vida, como o Anteu r>) antigo, cobra fôrça para cometimentos e riscos.
E’ que aquêle aroma, único incenso dêsse templo majestoso, é puro como tudo o que se admira na floresta virgem.
Acrescentai a isso tudo o riso escarninho °) do curupira [6]), com que as crendices populares têm povoado as florestas, a espiar vos por detrás de um tronco, as flores selvagens, e tôda essa pompa grandiosa da vegetação tropical, e tereis a mata virgem com tôda a sua arrogância. ,
Celso de Magalhães.
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1) grifo — animal fabuloso — com cabeça e asas de águia e corpo | e garras de Leão.
2) resfolego — respiração.
3) anélito — ânsia, aflição.
4) sorver em haustos — aspirar em golpes, tragos.
5) Anteu — gigante fabuloso, filho de Netuno e da Terra, ao qual
Hércules estrangulou. Conta a fábula que êste gigante recobrava as forças tôda vez que tocava em terra.
6) riso escarninho — riso zombeteiro, de môfa, de desprezo.
7) Curupira — ente imaginário que a crendice popular julga habitar as matas, e tem os calcanhares voltados para diante e os dedos dos pés para trás.
Fonte: Seleta em Prosa e Verso dos melhores autores brasileiros e portugueses por Alfredo Clemente Pinto. (1883) 53ª edição. Livraria Selbach.
[1] Angelim — árvores leguminosa de madeira rija e que atinge doze r mais metros de altura.,
[2] grela — rebenta, desabrocha.
[3] cerne — âmago, a parte mais íntima da árvore.
[4]
[5]
por braços d’água tortuosos.
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