O PRIMEIRO CENTENÁRIO DA LIBERDADE DO COMÉRCIO NO BRASIL

Oliveira Lima

O PRIMEIRO CENTENÁRIO DA LIBERDADE DO COMÉRCIO NO BRASIL

A nação brasileira resolveu, sem que uma voz discordante se erguesse contra tão justa comemoração, celebrar festivamente o primeiro centenário da liberdade do seu comércio, a qual data de 28 de janeiro de 1808. A Exposição Nacional que se prepara deverá constituir o atestado vivo e eloqüente do que gerou semelhante liberdade, o auto do nosso progresso num século decorrido de tal franquia econômica, elementar em teoria e todavia somente alcançada graças a circunstâncias excepcionais.

O balanço dos lucros já ficou na escrituração mercantil do país estabelecido na documentada publicação do Centro Industrial, relativa ao nosso desenvolvimento material e também moral no referido lapso de tempo. A visita do Senhor Dom Carlos de Portugal alentará por sua vez a tradição histórica, dando com a presença do seu régio descendente realce singular à glorificação pela República de Dom João VI, o único soberano do Reino Unido de Portugal e Brasil e primeiro imperador em nome do Brasil.

A abertura dos portos brasileiros, que a política colonial não só portuguesa, européia, fechara durante dois séculos — pois que durante o primeiro século existira uma relativa tolerância, depois suspensa salvo algumas exceções, em determinadas circunstâncias, exaradas em convênios internacionais — a todo o comércio que não o da metrópole, há sido justamente considerada como um dos grandes benefícios, porventura o maior, em todo caso essencial, resultantes da mudança da Corte de Lisboa para o Rio de Janeiro.

O crédito e o mérito da decisão que ditou o famoso decreto da Bahia têm sido, precisamente, porque a ninguém escapa o seu imenso alcance para a Monarquia e em especial para as relações políticas imediatamente subseqüentes entre metrópole e colônia, diferente e sempre apaixonadamente atribuídos a vários: ao descortino do Príncipe-Regente, ao teorismo liberal em Economia Política de José da Silva Lisboa, então residente em São Salvador, à pressão de Strangford, ministro inglês que presidira à trasladação, ao gênio pacato de D. Fernando de Portugal e ao gênio trêfego de D. Rodrigo de Sousa Coutinho.

Na verdade, a honra a ninguém cabe exclusivamente. A medida cm questão foi antes o efeito necessário de uma causa independente da vontade de qualquer. Cerrados os portos portugueses — já para o comércio britânico mercê das disposições do bloqueio continental, ordenado por Napoleão cm Berlim e que Junot vinha encarregado de aplicar estritamente no Reino, já para o comercio continental gráças ao bloqueio efetivo das costas portuguesas pelas esquadras inglesas que tratavam o reino ocupado pelos franceses como terra inimiga, posto que não como povo inimigo — os portos brasileiros tinham fatalmente de ser franqueados ao comércio amigo e neutro, sob pena de uma paralisação completa dos negócios, portanto do passamento da economia lusitana.

Esta é a reflexão que deve politicamente primar qualquer outra. Considerada, porém, a matéria do ponto-de-vista, neste caso inferior, da participação individual no resultado conquistado, compete seguramente uma distribuição de louvores aos personagens que desempenharam os primeiros papéis nessa peça nacional que a imaginação helénica quiçá simbolizaria num Prometeu libertado.

O monopólio português seria a águia devorando, ao Titã encadeado, a víscera palpitante e nunca consumida; Dom João o Júpiter complacente, que anuiu à cessação do martírio; Silva Lisboa o coro que aconselhava a clemência; os dois ministros, que o iam ser, do Príncipe-Regente, as duas entidades, Força e Violência, que entram na tragédia de Esquilo do Prometeu acorrentado, com a importantíssima dessemelhança de que a Violência na peça não falava e D. Rodrigo na vida falava muito.

Ficaria entretanto por preencher o papel essencial de Hércules que abate a águia com o seu arco poderoso, porquanto nenhum dos personagens da adaptação portuguesa possuía envergadura isoladamente para tanto: o empreendimento tinha que ser repartido. A Strangford, pela maior verossimilhança histórica e mesmo pela ausência no momento, pois só meses depois chegou ao Rio, melhor caberia a personificação de deus ex-máquina. A abertura dos nossos portos poderia e deveria até em rigor figurar na lista das proezas involuntárias, complemento das outras, da moderna encarnação do Héracles que foi Napoleão.

É evidente que à Inglaterra quadrava maravilhosamente que a liberdade do comércio brasileiro fosse decretada. Além da colônia portuguesa, bem entendido, ela e só ela tinha a lucrar com tal transformação de processos econômicos durante o período de guerras determinado pela Revolução francesa e pela megalomania imperial — um ciclo de combates cuja terminação não era absolutamente possível precisar com rigor matemático.

Nem por outro motivo que não este, prático e superiormente interesseiro, se envolvera a Grã-Bretanha na luta pela independência da América Espanhola: ela não fabrica teorias, sim mercadorias para exportação. Por mais simpática que idealmente lhe fosse essa libertação, a sua intervenção, principalmente moral mas também indiretamente material, não se teria dado se as preocupações objetivas não fossem tão consideráveis e instantes. No caso português ou melhor brasileiro, em que tão eficazmente colaborara — e aí é que por certo Strangford exerceu sua melhor diplomacia — as vantagens da situação ficavam asseguradas à nação britânica no tratamento diferencial, cujo favor a princípio excedia em generosidade o concedido aos próprios artigos de produção portuguesa.

É todavia lícito acreditar a tradição e supor mais que provável que houvesse sido José da Silva Lisboa o intermediário da transação, o conselheiro do ato, o causador portanto imediato da medida de tão graves e transcendentais resultados. A Carta Régia de 28 de janeiro diz textualmente responder à representação feita pelo ca-pitão-general da Bahia, Conde da Ponte, sobre se achar interrompido e suspenso o comércio da sua capitania, com grave prejuízo dos vassalos reais e da Real Fazenda, em razão das críticas c públicas circunstâncias da Europa.

A providência adotada era interina e provisória: qualquer alforria definitiva ou que como tal se declarasse desgostaria profundamente a metrópole. Tanto agiram prudentemente o Regente e seus conselheiros em mostrar tais contemplações que, convém lembrar-mo-nos, foi a liberdade de comércio, em última análise, o motivo mais próximo e mais ativo da separação ocorrida em 1822 da dualidade política luso-brasileira.

Não há dúvida que a Carta Régia de 28 de janeiro de 1808 constituiu uma doação liberalíssima da Coroa aos seus súditos coloniais. Como tal não devem julgar-se excessivas quaisquer demonstrações que em sua celebração tiverem lugar. Dela data nossa autonomia econômica, portanto a base de nossa independência política. O exclusivo fora, logo que se firmaram as descobertas e se converteram os desembarques em estabelecimentos, o princípio fundamental da administração ultramarina de Portugal.

Antes que o aplicasse Cromwell nas relações com as possessões da metrópole britânica, tinha-o defendido com estremado e um tanto postiço ardor, prolixa erudição, intermináveis citações e uma cerrada, apurada e também por vezes ingênua dialética, o Frade Serafim de Freitas, da Ordem das Mercês, professor de direito canónico da Universidade de Valladolid. Fora isto ao tempo da união de Portugal com Castclla, por ocasião de uma polêmica, de celebridade européia, travada com Grotius, o criador do moderno direito das gentes. Tratava-se então nomeadamente do Oriente: o mare liberum de Graswinckel, como o mare clausum de Selden era em particular o Oceano Indico.

A disposição tomada por Dom João VI em 1808 foi portanto mais do que uma providência local e momentânea: representou o que podemos chamar a autodemolição de um sistema pois que a levaram a cabo os próprios que em tal o tinham erigido. A liberdade dos portos constituiu a supremacia prática da economia política e deve figurar como aurora do livre câmbio na nossa terra.

Se a política exterior não se faz, na frase cortante de Bismarck, com teorias jurídicas — êle mostrou à farta quanto as desprezava na aplicação da sua diplomacia de ardis e de arrancos — o comércio exterior tem de regular-se pelas teorias econômicas dominantes. A dos fins do século XVIII e princípios do século XIX foi a da franquia, e dela se fêz o teorista nacional o fututro Visconde de Cairu, então ainda José da Silva Lisboa.

Bastava esta circunstância para ligar perenemente seu nome à liberdade do comércio no Brasil. Quando não houvesse sido, como tudo o leva a crer, o inspirador, o instigador imediato de tão portentosa medida, dela foi sem a menor dúvida o defensor oficial. Um dos primeiros trabalhos, o primeiro mesmo de certa extensão impresso na tipografia fundada no Rio de Janeiro em maio de 1808 pelo Príncipe-Regente — centenário que também vai ter sua merecida e jubilosa celebração — foi o que traz por título Observações Sobre o Comércio Franco no Brasil, Pelo Autor dos Princípios do Direito Mercantil, obra volumosa e valiosa que alguns anos antes publicara Silva Lisboa.

Ali confere o tradadista ao soberano, em nome da Humanidade — as coisas não se faziam por menos, num tempo altós em que as pátrias viviam em conflito e as nacionalidades em remodelação — o cognome bem cabido de Libertador do Comércio, com-parando-o ao sábio alemão pelo fato de ter aberto os portos dos seus domínios para receber as mercadorias de todas as partes do mundo. Era de resto o único ponto de contato entre o monarca ocidental e o rei oriental.

No referido trabalho de 1808 aponta Silva Lisboa a participação que teve na medida emancipadora, aludindo sem ambages à honra que lhe coube "de concorrer para a dita Resolução Soberana, sendo ouvido em qualidade oficial do meu Emprego", que era o de deputado à Junta do Comércio. A razão da consulta estava contudo mais do que na natureza do seu cargo, na autoridade dos seus conhecimentos em matéria econômica.

Não poderia o tratadista tentar, quanto quisesse, reivindicação mais precisa. O merecimento de todos os atos do Govêrio competia nos tempos da autocracia do direito divino, com a ficção da sua iniciativa, ao monarca que personificava esse princípio. Seus ministros eram ouvidos, quando interpelados, ou mesmo apresentavam espontaneamente pareceres sobre os assuntos públicos com os quais o soberano concordava, passando entretanto legalmente a tê-los inspirado. Os de fora, os que não eram conselheiros de fato do trono, possuíam naturalmente menos largueza em matéria de consulta, se bem que lhes assistisse o direito secular de representação. Este em nada diminuía, antes confirmava o princípio da autoridade, a qual residia efetiva e exclusivamente no Rei, e com ela andava consubstanciado o impulso dado à administração.

Basta contudo ler os escritos anteriores de Silva Lisboa para se lhe determinar com a orientação a prioridade da idéia. Êle próprio recordava em 1808 que "a eqüidade exige indulgência à sustentação de princípios, que já havia indicado em as minhas obras, que não têm desmerecido o favor do Público".

O fato todavia de ser-lhe preciso escrever três volumes de observações sobre a franquia do comércio indica assaz que semelhantes princípios não tinham ainda passado em julgado, que não era tão geral sua aceitação e que havia quem desfizesse na teoria e a combatesse. Ê fácil adivinhar donde partia tal oposição, que só podia provir de interesses contrariados, de sujeitos que, na expressão violenta do lexicógrafo Moraes e Silva, ao tratar deste assunto, tinham névoas e belidas nos olhos — "que a negra da inveja entenebrece as coisas mais luminosas".

Era aliás naturalíssimo que entre o comércio português houvesse sido grande a sensação produzida pela medida mais revolucionária que poderia ensaiar a Monarquia no tocante às relações econômicas entre metrópole e colônia. No Rio, principalmente, feriu-se a batalha de interesses dos partidários de uma e outra das duas políticas mercantis. Assim se explica que tivesse Silva Lisboa de sair a campo. Não se desembainha a espada para defender uma causa que ninguém ataca.

O adiantamento das idéias gerais em matéria de intercâmbio comercial contribuiu não obstante por seu lado, é fácil imaginar, para a resolução tomada: êle a tornara possível e lhe dava a precisa resistência. Atualmente, escrevia Silva Lisboa já depois de transferido para o Rio como professor de Economia Política, nem os mais hórridos Potentados da Cafraria excluem de seus Portos os Estrangeiros que aí vão comerciar. A asserção era um tanto aventurosa, mas a tendência moral era com efeito para o comércio universal e franco em princípio, ainda que entravado, a benefício de cada concorrente, pelo jogo dos direitos de importação, exportação, baldeação, ancoragem e outros muitos que diziam organizá-lo.

Tão rápida e facilmente foi a decisão do Príncipe-Regente adotada, decerto porque andava bem amadurecida no seu espírito e porque as conversações de São Salvador coincidiam plenamente com as próprias reflexões e sobretudo com as necessidades políticas e econômicas da ocasião, que nem foi ouvido ou consultado em tão momentoso assunto o conselheiro habitual de Dom João, Tomás Antônio de Vila Nova Portugal, o qual só chegou à Bahia a 16 de fevereiro, sendo a nau em que vinha das que se dispersaram com o temporal de 11 de dezembro.

Pode de resto ter-se como certo que, em Lisboa, fora já o projeto discutido e mesmo assente sua conveniência e julgada sua oportunidade, ficando apenas por fixar o modo de aplicação. Há mais do que a tradição a prova da negociação a respeito entre Lorde Strangford, ainda na Europa quando a esquadra real cortava águas brasileiras, e Antônio de Araújo, também longe na ocasião do decreto de 28 de janeiro pelo fato de haver a nau Medusa, de que era passageiro, arribado à Paraíba.

A melhor prova de que os ingleses pretendiam libertar economicamente o Brasil em seu favor está em que, mau grado as boas relações que nunca deixaram de existir entre as duas cortes, portuguesa e britânica, mesmo quando Dom João obedecia constrangido às ordens antiinglêsas de Napoleão, as quais nunca foram aplicadas de rigor em Portugal contra os súditos de Jorge III, o bloqueio dos portos portugueses continuara muito mais para impedir as comunicações entre Brasil e Portugal de que entre Portugal e o continente europeu mais ou menos jungido a Napoleão. É sabido que a esquadra britânica exercia então só o domínio dos mares.

A franquia dos nossos portos teria sido, por todos os motivos que a determinavam, decretada à chegada da Corte no Rio de Janeiro, se por acaso se não houvesse verificado a estação da frota real na Bahia. Silva Lisboa, na melhor hipótese, não passou do provocador de momento, do agente imediato e local de uma resolução já assentada e indispensável. Êle foi no entanto o que melhor teve a compreensão do assunto em todas as suas faces políticas e sobretudo econômicas. A visão do futuro se lhe entreabriu mesmo ao escrever na sua apologia difusa mas arguta da Carta Régia de 28 de janeiro de 1808:

He tempo de se desempobrecer a Nação, abrindo-sc as suas fontes de riqueza. Não convém que em toda a parte se exterminem os princípios da Razão. Se o Pólo Árctico se fecha á Humanidade, scr-lhe-ha aberto o Antárctico. A Violência não será victoriosa cm todas as regiões. Vcr-se-ha no Sul Constellação mais clara, que hade perpetuar, c ainda superiormente estender, os benefícios da Navegação, e Descuberta do novo Hemispherio.

Rio, janeiro de 1908

Fonte: Oliveira Lima – Obra Seleta – Conselho Federal de Cultura, 1971.

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