OS VALORES MORAIS | O Homem medíocre, de José Ingenieros

O Homem Medíocre (1913)

José Ingenieros (1877-1925)

Capítulo III – OS VALORES MORAIS

I. a moral de tartufo. — II. O homem honesto. — III. os transfugas da honestidade. — IV. função social da virtude. — V. a pequena virtude e o talento moral. — VI. o gênio moral: a santidade.

I — A moral de Tartufo

A hipocrisia é a arte de amordaçar a dignidade; ela faz emudecer os escrúpulos nos espíritos incapazes de resistir à tentação do mal. É falta de virtude para renunciar a éste, e de coragem para assumir a sua responsabilidade. É o guano que fecunda os temperamentos vulgares, permitindo-lhes prosperar na mentira: como essas árvores cuja ramagem é mais frondosa, quando crescem nas imediações dos lodaçais.

Gela, por onde ela passa, todo nobre germe de ideal: é o evento rijo e frio que destrói o entusiasmo. Os homens rebaixados pela hipocrisia vivem sem sonho, ocultando suas intenções, disfarçando seus sentimentos, dando saltos como uma fera; têm a íntima certeza, embora inconfessada, de que seus atos são indignos, vergonhosos, nocivos, arrufinados, irremissíveis. Por isso, sua moral é dissolvente: envolve sempre uma simulação.

Os hipócritas não são impelidos por fé alguma; não suspeitam o valor das crenças retilíneas. Esquivam a responsabilidade das suas ações, são audazes, na traição, e, tímidos, na lealdade. Conspiram, e agridem na sombra, espeçonhentas, e difamam com aveludada suavidade. Nunca ostentam um galardão inconfundível: cerram todas as frinchas do seu espírito, pelas quais poderia escapar-se, ou revelar-se, a sua personalidade nua, sem roupagem social da mentira.

É seu anelo simular as aptidões e qualidades que consideram vantajosas, para acentuar a sombra que projetam no seu cenário. Assim como os engenhos exíguos macaqueiam o talento intelectual, sobrecarregan-do-se de requintados artifícios, subterfúgios e defesas, os indivíduos de moralidade indecisa parodiam o talento moral, ouropelando de virtude a sua insípida honestidade. Ignoram o veredicto do próprio tribunal interior; aspiram o salvo-conduto outorgado pelos cúmplices dos seus prejuízos convencionais.

O hipócrita costuma tirar vantagens da sua virtude, fingida, em maior proporção, do que o verdadeiro virtuoso. Pululam homens respeitados, somente porque ainda não foram descobertos sob sua máscara; bastaria penetrar na intimidade dos seus sentimentos, por um minuto apenas, para advertir a sua dobrez, e transformar, em desprêso, à estima.

O psicólogo reconhece o hipócrita; traços há que diferenciam o virtuoso do simulador; pois, enquanto este é um cúmplice das opiniões que fermentam em seu meio, aquele possui algum talento que lhe permite so-brepôr-se a elas.

Todo apetite pecuniário desperta a sua argúcia, e o impele a descobrir-se. Não retrocede diante de artimanhas, é fácil às reverências fementidas, sabe farejar o despojo de amos, vende-se ao melhor ofertante, prospera à força de maranhas. Triunfa sobre os sinceros, toda vez que o êxito se estriba em aptidões vis: o homem real é. com freqüência, a sua vítima.

Cada Sócrates encontra a sua cicuta, e cada Cristo, o seu Judas.

A hipocrisia tem matizes. Se o medíocre moral se sujeita a vejetar na penumbra, não cai sobre o escalpelo do psicólogo, seu vício é um simples reflexo de mentiras que infestam a moral coletiva. Sua culpa começa, quando intenta agitar-se dentro de sua grosseira condição, pretendendo igualar-se aos virtuosos.

Chapinhando nos muladares da intriga, a sua honestidade se macula, e se acanalha em paixões ignobilmente desabridas. Toma-se capaz de todos os rancores. Supõe simplòriamente honesto, como êle, todo santo ou virtuoso; não se cansa de diminuir os méritos destes. Procura igualar o baixo nível, não o podendo fazer em linha alta. Persegue os caracteres superiores, pretende confundir suas excelências com as próprias mediocridades, desafoga surdamente uma inveja que não confessa, na penumbra, enlameando-se, babando sem morder, simulando submissão e amor àqueles que detesta e carcome. Sua perversidade é inquietada por escrúpulos que o obrigam a envergonhar-se em segredo; ser descoberto, para êle, é o mais cruel dos suplícios. É o castigo.

O ódio é louvável, se o compararmos com a hipocrisia. Nisto se distingue o sub-reptício amedrontado do hipócrita e adamantina lealdade de um homem digno. Algumas vezes, este se encrespa, e pronuncia palavras que são um enigma ou epitáfios; seu rugido é a luz de um relâmpago fugaz, e não deixa escórias em seu coração; desabafa-se por meio de um gesto violento, sem o envenenar.

As naturezas viris possuem um excesso de força plástica, cuja função regeneradora cura rapidamente as mais profundas feridas, e traz o perdão.

A juventude tem, entre seus preciosos atributos, a incapacidade de dramatizar, por longo tempo, as paixões malignas; o homem que perdeu a aptidão de cancelar seus ódios, já está irremediavelmente velho. Suas feridas são tão indestrutíveis, como suas cãs. E, como estas, o ódio também pode ser tingido; a hipocrisia é a tintura dessas cãs morais.

Sem fé em crença alguma, o hipócrita professa as mais proveitosas. Atordoado por preceitos que entende mal, sua moral parece um fantoche ôco; por isso, para se conduzir, necessita a muleta de alguma religião. Prefere as que afirmam a existência do purgatório, e oferecem a redenção das culpas por dinheiro. Esta aritmética de além-túmulo permite desfrutar mais tranqüilamente os benícios de sua hipocrisia; sua religião é uma atitude, não é um sentimento. Por isso, costuma exagerá-la: é fanático. Nos santos e nos virtuosos, a religião e a moral podem ir de braço dado; nos hipócritas, a conduta dansa em compasso diferente daquele que os mandamentos indicam.

As melhores máximas teóricas podem converter-se, em ações abomináveis; quanto mais apodrece a moral prática, maior é o esforço no sentido de a rejuvenecer com farrapos de dogmatismo. Por isso, é declamatória e suntuosa a retórica de Tartufo, prototipo do gênero, cuja criação coloca Moliere entre os psicólogos mais geniais de todos os tempos.

Não esqueçamos a história desse oblíquo devoto, a quem o sincero Orgon recolhe piedosamente, e que sugestiona toda a sua família. Clanto, um jovem, atreve-se a desconfiar dele; Tartufo consegue que Orgon expulse do seu lar esse mau filho, e faz que o pai legue, a êle, Tartufo, os seus bens. E não basta: tenta seduzir a consorte do hóspede. Para desmascarar tanta infâmia, a esposa se resigna a celebrar com Tartufo uma entrevista, à qual Orgon, oculto, assiste. O hipócrita, julgando-se só, expõe os princípios de sua casuística perversa: há ações proibidas pelo céu, mas é fácil regularizar com êle essas contabilidades; de conformidade com as conveniências é possível afrouxar as ataduras da consciência, retificando a maldade dos atos com a pureza das doutrinas. E, para retratar-se de uma só vez, acrescenta:

En fin votre escrupule est fácile à détruire:
Vous êtes assurée ici d’un plein secret,

Et le mal n’est jamais que dans l’éclat qu’on fait;
Le scandale du monde est ce que fait l’offense.
Et ce n’est pas pécher que pécher en silence,.

Esta é a moral da hipocrisia jesuítica, sintetizada em cinco versos, que são o seu pentatêuco.

A do homem virtuoso é outra; está na intenção e na finalidade das ações; mais nos feitios, do que nas palavras; na conduta exemplar e não na oratória untuosa.

Sócrates e Cristo foram virtuosos contra a religião do seu tempo; os dois morreram em mãos de fanáticos que já estavam divorciados de toda moral. A santidade está sempre fora da hipocrisia coletiva.

O exagero materialista das cerimônias religiosas sói coincidir com a aniquilição de todos os idealismos, nas nações e nas raças; a história o assinala na decadência das castas governamentais, e diz que o loiolismo é que escora sempre a sua degenerescência moral.

Nessas horas de crise, a fé agoniza no fanatismo decrépito, e toma formidável alento dos ideais que renascem, irreverentes, demolidores, embora freqüentemente predestinados a cair em novos fanatismos, e a obsta-cular ideais vindouros.

O hipócrita é constrangido a guardar as aparências, com afã igual ao do virtuoso que cuida dos seus ideais. Conhece de memória as passagens adequadas do Sar-tor Resartus; por elas admira Carlyle, tanto como outros, por seu culto aos Heróis. O respeito às formas faz com que os hipócritas de toda época e de todo país adquiram traços comuns; há uma "maneira" peculiar que transmuta o tartufismo em todos os seus adeptos, como há "algo" que denuncia o parentesco entre os filiados, a uma tendência artística ou a uma escola literária. Esse estigma comum aos hipócritas, que permite reconhecê-los, não obstante os matizes individuais pela posição social ou pela fortuna, é uma profunda animad-versão da verdade.

A hipocrisia é mais profunda do que a mentira: esta pode ser acidenetal, aquela é permanente. O hipócrita transforma a sua vida inteira em uma mentira metodicamente organizada. Faz ao contrário do que diz, toda vez que isto acarrete um benefício imediato; vive traindo com suas palavras, como esses poetas, que com longos cabelos, disfarçam o fôlego curto da sua inspiração.

O hábito da mentira paralisa os lábios do hipócrita, quando chega a hora de pronunciar a verdade.

Assim como a preguiça é a cheve da rotina, e a avidez, o móvel do servilismo, a mentira é o prodigioso instrumento da hipocrisia. A Humanidade nunca ouviu palavras mais nobres do que algumas de Tartufo; mas nunca homem algum produziu atos mais em desacordo com elas. Seja qual fôr a sua disposição social, na privança ou na proscrição, na opulência ou na miséria, o hipócrita está sempre disposto a adular os poderosos, e a enganar os humildes, mentindo a ambos.

Aquele que se acostuma a proferir palavras falsas, acaba por faltar a si mesmo sem repugnância, perdendo toda a noção de lealdade para com o próprio espírito. Os hipócritas ignoram que a verdade é a condição fundamental da virtude. Esquecem a sentença multisecular de Apolônio:

"De servo é mentir, de livres, dizer verdade".

Por isso, o hipócrita está predisposto a adquirir sentimentos servis. É o lacaio dos que o rodeiam, o escravo de mil anos, de um milhão de amos, de todos os cúmplices da sua mediocridade.

Aquele que mente é traidor: as suas vítimas o ouvem supondo que diz a verdade. O mentiroso conspora contra a quietude alheia, falta ao respeito de todos, semeia a inseguridade e a desconfiança. Com olhar olhi-zaino persegue os sinceros, julgando-os seus inimigos naturais. Aborrece a sinceridade. Diz, que ela é fonte de escândalo e de anarquia, como se fosse possível culpar a escova pela existência da imundice.

No fundo, percebe que o homem sincero é forte, e individualista, repousando nisto a sua altivez inquebrantável, pois a sua oposição à hipocrisia é uma atitude de resistência ao mal que o acossa por todos os lados. Defende-se contra a domesticidade e o descenso comum. E diz a sua verdade como pode, onde pode. Mas, sabe dizê-la. Muitos santos ensinaram a morrer por ela.

O disfarce é útil ao fraco; só se pode fingir o que se julga não ter. Ninguém fala mais de nobreza do que os netos de truões; a virtude dansa nos lábios desavergonhados; a altivez serve de estribilho ao envilecido; o cavalheirismo é a gazúa dos estafadores; a temperança figura no catecismo dos viciosos. Pensam que alguma partícula, de todo esse ouropel, se aderirá à sua sombra. E, com efeito, esta se vai modificando com o constante labor; a máscara é benéfica nas mediocracias contemporâneas, muito embora os que a usam careçam de autoridade moral, diante dos homens virtuosos. Estes não acreditam no hipócrita que foi uma vez descoberto; não acreditam nunca; quem é desleal para com a verdade, não tem razão alguma para ser leal com a mentira.

O hábito da ficção desmorona os caracteres hipócritas, vertiginosamente, como se cada nova mentira os impelisse para o precipício; nada conseguirá deter a sua avalanche na vertente. Sua vida se polariza nessa abjeta honestidade por cálculo, que é simples enaltecimento do vício.

O culto das aparências conduz ao desdém da realidade. O hipócrita não aspira a ser virtuoso, sinão, a parecê-lo: não admira intrinsecamente a virtude; quer ser contado entre os virtuosos, pela plebendas e pelas honras que tal condição pode proporcionar. Faltando-lhe ousadia para praticar o mal, a que está inclinado, contenta-se com sugerir que oculta as suas virtudes, por modéstia; mas nunca consegue usar o seu disfarce com desenvoltura. Seus manejos assomam por alguma parte, como as clássicas orelhas sob a coroa de Midas. A virtude e o mérito são incompatíveis com o tartufis-mo; a observação induz a desconfiar das virtudes misteriosas.

Horácio ensinava que "a virtude oculta difere bem pouco da obscura fanfarronice" (Od., IV, 9, 29).

Não tendo valor para a verdade, não é possível tê-lo para a justiça. Em vão os hipócritas vivem jac-tando-se de uma grande equanimidade, procurando adquirir prestígios catonianos: a sua prudente cobardia impede-os de ser juízes toda vez que possam comprometer-se na lavra do veredito. Preferem tartamudear sentenças bilaterais e ambíguas, dizendo que há luz e sombra em todas as coisas: não o fazem, entretanto, por filosofia, senão, por incapacidade de se responsabilizarem pelos seus juízos. Dizem que estes devem ser relativos, embora no íntimo da sua mioleira julguem infalíveis as suas opiniões. Não ousam proclamar a sua própria suficiência; preferem avançar na vida, sem outra bússola, além do êxito, oferecendo o flanco e margeando, e evitando colocar a proa na direção do mais insignificante obstáculo.

Os homens retos são objetos do seu acendrado rancor, pois, com sua retidão, humilham os oblíquos; estes, porém, não confessam a sua cobardia, e sorriem servilmente aos olhares que os torturam, embora sintam o vexame: enrodilham-se, a estudar os defeitos de homens virtuosos, para filtrar pérfidos venenos na homenagem que, a todas as horas, são obrigados a tributar-lhes. Difamam surdamente; traem sempre, como os escravos, como os híbridos que trazem nas veias sangue servil. Deve-se tremer, quando eles sorriem; vêm acariciando o cabo de algum estilete oculto sob sua capa.

O hipócrita atenua toda amizade com sua dobrez: ninguém pode confiar na sua ambiguidade recalcitrante. Dia a dia, afrouxam as suas anastomoses com as pessoas que os rodeiam; a sua sensibilidade escassa impede-os de se caldearem na ternura, alheia, e a sua afetividade vai empalidecendo, como uma planta que não recebe sol, crestado o coração por um inverno prematuro. Só pensa em si mesmo, e esta é a sua pobreza suprema.

Seus sentimentos se emurchecem nas alternativas da mentira e da vaidade.

Enquanto os caracteres dignos crescem num perpétuo olvido do seu ontem, e pensam em coisas nobres para o seu amanhã, os hipócritas se dobram sobre si mesmos, sem se darem, sem se gastarem, retraindo-se, atrofiando-se. A sua falta de intimidades impede-lhes toda expansão, obsecados pelo temor do que a sua conciencia moral assome à superfície. Sabem que bastaria o sopro de uma brisa, para correr o seu levíssimo véu de virtude. Não podendo confiar em ninguém, vivem embotando as fontes do seu próprio coração: não sentem a raça, a pátria, a classe, a família, nem a amizade, embora saibam mentir tudo isso, para explorar melhor esses sentimentos. Alheios a tudo e a todos, perdem o sentimento da solidariedade social, até cairem em sórdidas caricaturas do egoísmo.

O hipócrita mede a sua generosidade pelas vantagens que dela pode obter; concebe a benificência, como uma indústria lucrativa para a sua reputação. Antes de dar, procura ver si o seu donativo terá notoriedade; figura em primeira linha, em todas as subscrições públicas, mas seria incapaz de abrir a sua mão na sombra. Inverte o seu dinheiro em um bazar de caridade, como si comprasse ações de uma empresa; isto não o impede de exercer a usura privadamente, nem de tirar proveito da fome alheia.

A sua indiferença ao mal do próximo, pode arrastá-lo a cumplicidade indigna. Para satisfazer alguns dos seus apetites, não vacilaria, diante de torpes intrigas, sem se preocupar com as conseqüências imprevistas que elas poderiam ter.

Uma palavra do hipócrita basta para separar dois amigos, ou para distanciar dois amantes. Suas armas são poderosas, devido a serem invisíveis; com uma suspeita falsa, pode envenenar uma felicidade, destruir uma harmonia, quebrar uma concordância. O seu apego à mentira o faz colher benevolamente qualquer infâmia, desenvolvendo-se até o infinito, subterraneamente, sem ver o rumo, nem medir a profundeza, tão irresponsável como essas alimárias que cavam ao acaso a sua lapa, cortando as raízes das flores mais delicadas.

Indigno da confiança alheia, o hipócrita vive desconfiando de todos, até cair no supremo infortúnio da suscetibilidade. Um terror ansioso o apoquenta e o acobarda diante dos homens sinceros, esperando ouvir em cada palavra uma exprobação merecida; não há, nele, dignidade, senão, remorso. Em vão pretenderia enganar-se a si próprio, confundindo a suscetibilidade com a delicadeza; aquela nasce do medo, e esta é filha do orgulho.

Diferem, como a cobardia e a prudência, como o cinismo e a sinceridade. A desconfiança do hiprócrita é uma caricatura da delicadeza do orgulho. Este sentimento pode tornar suscetível o homem de méritos excelentes, toda vez que desdenha dignidade cujo preço é o servilismo e cujo caminho é a adulação; o homem digno exige, então, respeito para esse valor moral que não se manifesta pelos modos vulgares do protesto estéril, mas isto o aparta para sempre dos hipócritas domesticados. É raro o caso. Freqüentíssima parece, entretanto, a suscetibilidade do hipócrita, que teme ser desmascarado pelos sinceros.

Seria estranho que conservasse essa delicadeza, única sobrevivente ao naufrágio das demais. O hábito de fingir é incompatível com esses matizes do orgulho; a mentira é opaca a qualquer resplendor de dignidade. A conduta dos tartufos não pode conservar-se adamantina; os expedientes equívocos se encadeiam, até afogar os últimos escrúpulos. Á força de pedir aos outros os seus juízos, endividando-se moralmente para com a sociedade, perdem o temor de pedir outros favores e bens materiais esquecendo que as dívidas torpemente acumuladas escravizam o homem. Cada empréstimo, não devolvido, é uma malha a mais enganchada em sua cadeia, tornando-se impossível, para eles, viver dignamente, em uma cidade, onde há ruas que não podem cruzar, e entre pessoas cujo olhar não saberiam suportar. A mentira e a hiprocrisia convergem a estas renúncias, tirando ao homem a sua independência. As dívidas contraídas por vaidade, ou por vício, obrigam a fingir e a enganar; aquele que as acumula, renunciam a toda dignidade.

Há outras conseqüências do tartufismo. O homem dútil à intriga priva-se do carinho ingênuo. Sói ter cúmplices, mas não tem amigos; a hiprocrisia não ata pelo coração, senão pelo interesse. Os hipócritas, forçosamente utilitários e oportunistas estão sempre dispostos a trair seus princpios, em homenagem a um benefício imediato; isto lhes veda a amizade dos espíritos superiores.

O gentilhomem tem sempre um inimigo entre eles, pois a reciprocidade de sentimentos só é possível entre iguais; não pode nunca entregar-se à sua amizade, pois espreitariam a ocasião para enfrentá-lo com alguma infâmia, vingando a sua própria inferioridade.

La Bruyère escreveu u’a máxima imorredoura:

"Na amizade desinteressada, há prazeres que os que nasceram medíocres não podem fruir; estes necessitam cúmplices, buscando entre os que conhecem essas secretas forças impulsoras, descritas com simples solidariedade no mal".

Se o homem sincero se entrega, eles aguardam a hora propícia para a traição; poriso, a amizade é difícil para os grandes espíritos, e estes não prodigalizam a sua intimidade quando se elevam demasiadamente sobre o nível comum. Os homens eminentes necessitam dispor de uma infinita sensibilidade e de grande tolerância, para se entregarem; quando o fazem, não há limites para a sua ternura e a sua devoção. Entre nobres caracteres a amizade cresce devagar, e prospera melhor, quando se radica no reconhecimento de méritos recíprocos; entre homens vulgares, cresce sem motivo, mas permanece raquítica, tendo freqüentemente seu fundamento na cumplicidade do vício ou da intriga. Porisso, a política pode criar cúmplices, mas nunca, amigos: muitas vezes conduz à troca destes por aqueles, esquecendo que trocá-los, com freqüência, equivale a não nos ter. Enquanto, nos hipócritas, as cumplicidades se extinguem com o interesse que as determina, nos caracteres leais, a amizade dura tanto como os méritos que a inspiram.

Sendo desleal, o hipócrita também é ingrato. Inverte as fórmulas do reconhecimento; aspira à divulgação dos favores que faz, sem ser, entretanto, sensível aos que recebe. Multiplica por mil o que dá, e divide por um milhão o que aceita. Ignora a gratidão — virtude dos eleitos — inquebrantável cadeia unindo corações sensíveis, forjada pelos que sabem dar a tempo, e de olhos fechados. Às vezes, é ingrato sem saber, por simples erro na sua contabilidade sentimental. Para evitar a ingratidão alheia, acha que não deve praticar o bem; cumpre esta decisão sem esforço, limitando-se a praticar suas formas ostensíveis, na proporção que pode convir à sua sombra. Seus sentimentos são outros; o hipócrita sabe que pode continuar a ser honesto, embora pratique o mal com dissimulação, e, com desenfado, a ingratidão. ,

A psicologia de Tartufo seria incompleta, se esquecêssemos que êle coloca no mais hermético dos seus tarbernáculos tudo quanto anuncia a florescer de paixões inerentes à condição humana. Diante do pudor instintivo, casto por definição, os hipócritas organizam um pudor convencional, impudico e corrosivo. A capacidade de amar, cujas efervescencias santificam a própria vida, eternizando-a, parece-lhes inconfessável, como se o contato de duas bocas amantes fosse menos natural do que o beijo do sol, quando inflama as corolas das flores. Mantém oculto e misterioso tudo o que concerne ao amor, como se, convertê-lo em delito, não aci-catesse a tentação dos castos; mas essa pudicicia visível não os proíbe de ensaiar invisivelmente, as ob jeções mais torpes. Escandalizam-se diante da paixão, sem renunciar ao vício, limitando-se a disfarcá-lo, ou enconbrí-lo. Acham que o mal não está nas próprias coisas em si, e, sim, nas aparências, formando u’a moral para eles, e, outra, para os demais, como essas mulheres casadas que se presumem honestas, embora tenham três amantes, e repudiam a donzela que ama um único homem, sem ter marido.

Não tem limites esta escabrosa fronteira da hipocrisia. Catões ciumentos dos costumes perseguem as mais puras exibições da beleza artística. Colocariam uma folha de parra na mão da "Venus Medicéa", como outrora injuriariam telas e estátuas, para velar as mais divinas formas nuas da Grécia e da Renascença. Confundem a castíssima harmonia da beleza plástica, com a intenção obcena que os acomete, ao contemplá-las. Não percebem que a perversidade está sempre neles, nunca, na obra de arte. O pudor dos hipócritas é a peruca da sua calvíce moral.

II — O homem honesto

A mediocridade moral é impotente para a virtude e, cobardia para o vício. Se há mentes que parecem manequins articulados com rotinas, abundam corações semelhantes a balões inflados de preconceitos. O homem honesto pode temer o crime, sem admirar a santidade; é incapaz de iniciativa para ambas as coisas. As guerras do passado prendem-no pelo coração, estran-gulando-lhe, ainda em germe, todo anelo de aperfeiçoamento futuro. Suas opiniões são os documentos arqueológicos da psicologia social; resíduos de virtudes crepusculares, supervivencias de morais extintas.

As mediocracias de todos os tempos são inimigas do homem virtuoso: preferem o honesto, e o enaltecem, como exemplo. Há, nisso, implícito, um erro, ou uma mentira, que convém dissipar. Honestidade não é virtude, embora também não seja vício. Pode-se ser honesto, sem sentir uma ânsia de perfeição; basta, para isso não ostentar o mal, o que não é suficiente para ser virtuoso. Entre o vício, que é uma tara, e a virtude, que é uma excelência, flutua a honestidade.

A virtude se eleva sobre a moral corrente; implica certa aristocracia do coração, própria do talento moral; o virtuoso se antecipa a alguma forma de perfeição futura, e lhe sacrifica os automatismos consolidados pelo hábilo.

O homem, ao contrário, é passivo, circunstância que lhe marca um nível moral superior ao do vicioso, embora permaneça por baixo daquele que pratica ativamente uma virtude, e orienta a su vida no sentido de algum ideal. Limitando-se a respeitar os preconceitos que o asfixiam, mede a moral com a falsa medida usada pelos seus iguais, a cujas frações são irredutíveis as tendências inferiores dos acanalhados e as aspirações conspícuas dos virtuosos. Se êle não chegasse a assimilar os juízos, até ficar perfeitamente saturado, a sociedade o castigaria como delinqüente, por sua conduta desonesta; se pudesse sobrepor-se aos juízos, seu talento revelaria sulcos dignos de ser seguidos. A mediocridade está em não provocar o escândalo, nem servir de exemplo.

O homem honesto pode praticar ações cuja dignidade conhece, toda vez que a isso se veja constrangido pela força dos preconceitos, que são obstáculos com que os hábitos adquiridos emboraçam as variações novas. Os atos que já são maus, no juízo iriginal dos virtuosos, podem continuar a ser considerados bons pela opinião coletivo. O homem superior pratica tal como a julga, iludindo os prejuízos que subjugam a massa honesta; o medíocre continua denominando bem o que já deixou de ser, por incapacidade de vislumbrar o bem do porvir. Sentir com o coração dos outros, equivale a pensar com a cabeça alheia.

A virtude constuma ser um gesto audaz, como tudo o que é original; a honestidade é um uniforme que se veste resignadamente. O medíocre teme a opinião pública, com a mesma obseqüência com que o crédulo teme o inferno; nunca tem a ousadia de se opor a ela, e, menos ainda, quando a aparência do vício é um perigo ínsito em toda virtude não compreendida. Renuncia a ela pelos sacrifícios que implica.

Esquece que não há perfeição sem esforço; somente aqueles que ousam cravar sua pupila no sol, sem temer a cegueira, podem ver aluz, pela frente. Os corações apoucados não colhem rosas em seu jardim, com medo dos espinhos; os virtuosos sabem que é necessário expôr-se a eles, para colher as flores mais perfumosas.

O honesto é inimigo do santo, como o rotineiro o é do gênio; este é denominado" louco", e aquele é julgado "amoral". Expliça-se: eles os medem com sua própria medida, em que estes não cabem. Em seu dicionário, "cordura" e "moral" são os nomes que eles reservam às suas próprias qualidades. Para a sua moral de sombras, o hipócrita é honesto; o virtuoso e o santo, que a excedem, parecem-lhes "amorais", e, com esta qualificação atribuem-se-lhes, veladamente, certa imoralidade. Homens de pacotilha, dir-se-ia feitos com retalhos de catecismo e com aparas de vergonhas: o primeiro ofertante pode comprá-los a baixo preço. Em geral, mantêm-se honesto, por conveniência; algumas vezes, por simplicidade, se o prurido da tentação não importuna a sua estupidez. Ensinam que é necessário ser como os outros; ignoram que só é virtuoso aquele que aspira o melhor. Quando nos murmuram, aos ouvidos, aconselhando-nos a renunciar o sonho e a imitar o re banho, não têm o valor de nos sugerir, diretamente, a apostasia do nosso ideal, para sentar-nos a ruminar a merenda comum.

A sociedade predica: "não faças o mal, e serás honesto". O talento moral tem outras exigências: "aspira uma perfeição, e serás virtuoso".

A honestidade está ao alcance de todos; a virtude é de poucos eleitos. O homem suporta o jugo a que os seus cúmplices o submetem; o homem virtuoso eleva-se sobre os demais, com um movimento de aza.

A honestidade é uma indústria: a virtude exclue o cálculo. Não há diferença entre o cobarde que modera seus atos, com medo do castigo, e o cubiçoso que os pratica, na esperança de uma recompensa. Ambos levam em partida dupla as suas contas correntes com os preconceitos sociais. Aquele que treme diante do perigo, ou busca uma prebenda, é indigno de proferir a palavra virtude: por esta se arriscam à proscrição e à miséria: Não diremos contudo que o virtuoso é infalível. Mas a virtude implica uma capacidade de retificações espontâneas, o conhecimento leal dos próprios erros, como uma lição paar si mesmo e para os outros, a firme retidão da conduta anterior. Aquele que paga uma culpa, com muitos anos de virtude, é como se nunca tivesse pecado: purifica-se. Ao contrário, o medíocre não reconhece os seus erros, nem se envergonha com eles, agravando-os com impudor, sublinhan-do-os com a reincidência, duplicando-os com aproveitamento dos resultados eventuais.

Predicar a honestidade seria excelente, se ela não fosse uma renúncia da virtude, cujo norte é a perfeição incessante. Seu elogio empana o culto da dignidade, e é a prova mais segura do descanso de um povo. Eneltecendo o fraudulento, afronta-se o severo; pelo tolerante, se esquece o exemplo. Os espíritos acomodaticios chegam a aborrecer a firmeza e a lealdade, a força de medrar com o servilismo e a hiprocrisia.

Admirar o homem honesto, é rebaixar-se; adorá-lo, é envilecer-se. Stendhal reduzia a honestidade a urna simples forma de medo: convém acrescentar que não é um medo ao mal em si, senão da reprovação dos outros; por isso, c compatível com uma ausência total de escrúpulos para com todo ato que não tenha sanção expressa, ou que possa permanecer ignorado.

"J’ai vu le fond de ce qu’on appelle les honnêtes gens: c’est hideux", dizia Talleyrand, perguntando-se a si próprio o que seria de tais indivíduos, se o interesse e a paixão entrassem em jogo. Seu medo ao vício e sua impotência para a virtude se equivalem. Não são assassinos, mas não são heróis; não roubam, mas não dão metade do seu pão ao inválido; não são traidores, mas também não são leais: não assaltam a descoberto, mas não defendem o assalto; não violam virgens, mas não redimem as decaídas; não conspiram contra a sociedade, mas não cooperam para o engrandecimento comum.

Diante da honestidade hipócrita — própria de mentes rotineiras e de caracteres domesticados — existe uma heráldica moral, cujos brasões são a virtude e a santidade. E a antítese da tímida obediência aos prejuízos, que paraliza o coração dos temperamentos vulgares, e que degenera nessa apoteose de frieza sentimental que caracteriza a erupção de todas as burguezias.

A virtude requer fé, entusiasmo, paixão arrojo; vive disso. Requer tais coisas na intenção e nas obras. Não há virtude, quando os atos desmentem as palavras, nem cabe nobreza, onde a intenção se arrasta.

Por isso, a mediocridade moral é mais nociva nos homens conspícuos e nas classes privilegiadas.

O sábio que atraiçoa a sua verdade, o filósofo que vive fora da sua moral, e o nobre que desonra o seu berço, descem às mais ignominiosas das vilanias; são menos desculpáveis, do que o truão enlodaçado no delito. Os privilégios da cultura e do nascimento impõem, ao que desfruta, uma lealdade exemplar para consigo próprio.

E’ inútil que perdure em ridículos pergaminhos a nobreza que não está na nossa ânsia de perfeição; nobre é o que revela, em seus atos, um respeito para com a sua classe, e não o que alega sua ilustre ascendência, para justificar atos ignóbeis. Pela virtude, nunca pela honestidade, é que se medem os valores da aristocracia moral.

III — Os tránsfugas da honestidade

Enquanto o hipócrita saqueia na penumbra, o inválido moral se refugia nas trevas. O vício, que a mediocridade ampara, medra no crepúsculo; durante a noite é que forja.

Desde a hipocrisia consentida, até o crime castigado, a transição é insensível: a noite é incubada no crepúsculo. Da honestidade profissional, passa-se à infâmia gradualmente, por matizes leves e por concessões sutis. Nisto é que está o perigo da conduta acomodatícia e vacilante.

Os tránsfugas da moral são rebeldes à domestici dade; desprezam a prudente cobardia de Tartufo. Ignoram o seu equilibrismo, não sabem simular, agridem os princípios consagrados, e, como a sociedade não pode tolerá-los sem comprometer a sua própria existência, eles levam as suas guerrilhas contra essa mesma ordem cuja custódia é o objeto obstinado dos medíocres.

Comparado com o inválido moral, o homem honesto parece uma alfaia. Esta distinção é necessária; é preciso fazê-la em seu favor, certo de que êle a reputará honrosa. Si é incapaz de ideal, também o é do crime descarado: sabe disfarçar seus instintos, encobre o vício, foge ao delito condenado pela lei. Nos outros, em troca, toda perversidade brota à flor da pele, como uma erupção de pústulas; são incapazes de se susterem na hipocrisia, como os idiotas o são de se embarassarem na rotina. Os honestos esforçam-se para merecer o purgatório; os delinqüentes já se decidiram pelo inferno, investindo, sem escrúpulos nem remorsos, contra o tapume dos preconceitos e das leis, que a sociedade lhes opõe.

Cada agregado humano crê que "a" verdade moral é "sua" verdade, esquecendo que há tantas morais como rebanhos de homens. Um indivíduo é infame, vicioso, honesto ou virtuoso, com relação à moralidade do grupo a que pertence, variável no tempo e no espaço. Cada moral é uma medida oportuna e convencional dos atos que constituem a conduta humana: não tem existência exotérica, como não a teria a sociedade, abstratamente considerada.

Seus cânones são relativos, e se transforman, obe decendo ao emaranhado determinismo da evolueão social. Em cada ambiente e em cada época, existe um critério médio que sanciona, como bons ou como maus, honestos ou delituosos, permitidos ou inadmissíveis, os atos individuais oue são úteis ou nocivos à v:da coletiva. Em cada momento histórico, esse critério é a substrutura da moral, sempre variável.

Os delinqüentes são indivíduos incapazes de adaptar a sua conduta à moralidade média da sociedade em que vivem. São inferiores;’ têm a "alma da espécie" mas não adquirem a "alma social". Divergem da mediocridade, mas em sentido oposto aos dos homens excelentes, cujas variações originais determinam uma desadaptação evolutiva no sentido da perfeição.

São inúmeros. Todas as formas corrosivas da degenerescência desfilam por esse caleidoscópio, como si ao conjunto de maléfico exorcismo, se convertessem em pavorosa realidade os mais sórdidos ciclos de um inferno dantesco: parasitas da escória social, limítrofes da infâmia, comensais do vício e da desonra, tristes que se inovem espicaçados por sentimentos anormais, espíritos que sobreelevam a fatalidade das heranças enfermiças e sofrem a carcoma inexorável das misérias ambientes.

Irredutíveis e indomesticáveis, aceitam como um duelo permanente a vida em sociedade. Passam ao nosso lado, impertérritos e sombrios, levando, na sua fronte fugitiva, o estigma do seu destino involuntário, e, nos mudos lábios, o esgar oblíquo daquele que prescruta o seu semelhante com olhar inimigo. Parecem ignorar que são as vítimas de um determinismo complexo, superior a todo o freio ético; somam-se, neles, os desequilíbrios transfundidos por uma hereditariedade malsã, as disformes configurações morais plasmadas no seio social e as mil circustâncias iniludíveis que se colocam, ao acaso, em sua existência. O lamaçal, em que sua conduta vive a patinar, asfixia os germes possíveis de todo o senso moral, desarticulando os últimos preconceitos que os vinculam ao solidário consórcio dos medíocres.

Vivem adaptados a uma moral à parte, com panoramas de sombrias perspectivas, esquivando os clarões luminosos e deslizando entre as penumbras mais densas; fermentam no agitado torvelinho das grandes cidades, surgem por todas as frinchas do edifício social, e conspiram surdamente contra a sua estabilidade, alheios às normas de conduta características do homem medíocre, eminentemente conservador e disciplinado.

A imaginação permite-nos alinhar as suas torvas silhuetas sobre um longuínqüo horizonte onde a escuridão crepuscular derrama seus tons violentos de ouro e de púrpura, de incêndio e de hemorragia; desfile de macabra legião que marcha, atropeladamente, em direção à ignomínia.

Nessa plêiade anormal, culminam os limítrofes do delito, cuja virulência cresce, devida à sua impunidade em face de lei. O fraco senso moral que possuem, os impede de conservar imaculada a sua conduta, sem caírem, entretanto na delinqüência: são os imbecis da honestidade, diferentes do idiota moral, que roda para o cárcere. Não são delinqüentes, mas são incapazes de se conservarem honestos: pobres espíritos, de caráter claudicante e de vontade relaxada, não sabem opôr trincheiras seguras aos fatores ocasionais, às sugestões do meio, à tentação do lucro fácil, e ao contágio da imitação. Vivem solicitados por tendências opostas, oscilando entre o bem e o mal, como asno de Buridáln.

São caracteres conformados, minutos por minutos, com o molde instável das circustâncias. Ora são auxiliares permanentes do vício e do delito, ora estão a delinquir a meio por incapacidade de executar um plano completo de conduta anti-social, ora têm suficiente astúcia e previsão para chegar à beira do manicômio e do cárcere , sem cair. Estes indivíduos, de moralidade incompleta, larvada, acidental ou alternada, representam etapas de transição entre a honestidade e o delito, a zona de interferência entre o bem e o mal, socialmente considerados. Carecem de equilibrismo oportunista, que salva do naufrágio outros medíocres.

Um estigma irrevogável impede-os de conformarem seus sentimentos aos critérios morais da sua sociedade. Em alguns, é produto de temperamento nativo; pululam nos cárceres, e vivem como inimigos dentro da sociedade que os hospeda. Em muitos, a degenerescência moral é adquirida, é fruto da educação; em certos casos, deriva da luta pela vida em um meio social desfavorável ao seu esforço; são medíocres desorganizados, caídos nos lamaçais, da obra do acoso, capazes de compreender a sua desventura, e de se envergonharem dela, como a fera que errou o salto. Em outros, há uma inversão dos valores éticos, uma perturbação do juízo, que os impede de medir o bem e o mal com a esquadria aceita pela sociedade; são invertidos morais, inaptos para estimar a honestidade e o vício. Há os instáveis, por fim, cujo caráter revela uma ausência de sólidos alicerces que os assegurem contra o oscilante vai-vem dos apuros materiais e da alternativa inquietante das tentações desonestas. Esses inválidos não sentem a co-ersão social; sua moralidade inferior se abeira do vício, até o momento de encalhar no delito.

Estes inadaptáveis são moralmente inferiores ao homem medíocre. Seus matizes são variados, atuam na sociedade, como os insetos daninhos na natureza.

O rebanho teme seus violadores da sua hipocrisia. Os prudentes não lhes perdoam o impudor da sua infâmia, e organizam, entre eles, um complexo aparelho defensivo de códigos, juízes e presídios; através de séculos, o seu esforço tem sido ineficaz. Constituem uma horda estrangeira e hostil, dentro do seu próprio território, audaz na espreita, embuçada no procedimento, infatigável nos trâmites aleivosos dos seus programas trágicos. Alguns confiam a sua vaidade ao fio do cutelo sub-reptício, sempre alerta para o brandir com fulgurante presteza, contra o coração ou as costas; outros deslizam furtivamente a sua garra ágil sobre o ouro ou a gema que estimula a sua avidez, com seduções irresistíveis; estes violam, como brinquedos infantis, os obstáculos com que a prudência do burguês custodia o tesouro acumulado em intermináveis etapas de economia e sacrifício; aqueles denigram virgens inocentes, para lucrar, oferecendo os encantos do seu corpo venus-to à insaciável luxúria de sensuais e de libertinos; muito sugam as entranhas da miséria, com inverosímens aritméticas de usura, como tênias que alimentam a sua inextinguível voracidade nas pústulas chorosas do intestino social enfermo; outros captam consciências inexpertas para explorar os riquíssimos veios da ignorância e do fanatismo. Todos são equivalentes no desempenho de sua parasitária função anti-social, idênticos na inadaptação dos seus sentimentos mais elementares. Neles converge uma inveterada promiscuidade de instintos e de perversões, o que faz de cada conciência uma pústula, arrastando-se à má vida do vício e do delito.

Seja qual fôr, entretanto, a orientação da sua inferioridade biológica ou social, encontramos uma pincelado comum em todos os homens que estão abaixo do nível da mediocridade: a inadaptação constante para adaptar-se às condições que, em cada coletividade humana, limitam o campo da luta pela vida. Carecem de aptidão que permite ao homem medíocre imitar os preconceitos e as hipocrisias da sociedade em que vegeta.

IV — Função social da virtude

A honestidade é uma imitação; a virtude é uma originalidade. Somente os virtuosos possuem talento moral, e, qualquer ascensão no sentido do mais perfeito, é obra deles; o rebanho se limita a seguir suas pegadas, incorporando na honestidade banal aquilo que foi, antes, virtude de poucos. E sempre rebaixando.

Fizemos distinção entre o delinqüente e o honesto. É preciso insistir em que a honestidade deste último não é virtude; êle se esforça para confundir essas duas coisas, sabendo que a segunda lhe é inacessível.

A virtude é outra coisa. É ativa; excede infinitamente em variedade, em retidão, em coragem, as práticas rotineiras que livram os indivíduos medíocres da infâmia ou do cárcere.

Ser honesto implica submissão às conveniências correntes; ser virtuoso significa, freqüentemente, ir contra elas, expondo-se a passar por inimigos de toda moral, quando o é apenas de certos preconceitos inferiores.

Se o sereno ateniense tivesse adulado os seus concidadãos, a história helénica não estaria manchada pela sua condenação, e o sábio não teria bedido a cicuta; mas não seria Sócrates.

Sua virtude consistiu em resistir aos preconceitos dos demais.

Se fosse possível viver entre dignos e santos, a opinião alheia poderia evitar tropeços e quedas; mas, vivendo entre atartufados, é cobardia rebaixar-se ao nível comum, em conseqüência do medo de atrair suas iras. Fazer como fazem os outros, pode implicar no sobrevir da familiaridade com o indigno; o progresso moral tem, como condição, resistir à decadência comum e adiantar-se ao seu tempo, como qualquer outra ordem de progresso.

Se existisse uma moral eterna — e não tantas morais quanto são os povos — seria possível tomar a sério da lenda bíblica da árvore carregada de frutos do bem e do mal. Só teríamos dois tipos de homens: o bom e o máu, o honesto e o desonesto, o normal e o inferior, o moral e o imoral. Mas assim não acontece. Os critérios de valor se transformam : o bem de hoje pode ter sido o mal de ontem; o mal de hoje pode ser o bem de amanhã. E vice-versa.

Não é o homem moralmente medíocre — o honesto — quem determina as transformações da moral.

São os virtuosos e os santos, inconfundíveis com êle. Precursores, apóstolos, mártires, inventam formas superiores do bem, ensinam-nas, prégam-nas. Toda moral futura é um produto de esforços individuais, obra de caracteres excelentes que concebem a praticam perfeições inacessíveis ao homem comum. Nisto está o talento moral, que forja a virtude, e o gênio moral, que implica santidade. Sem estes homens originais, não seria concebível a transformação dos costumes; conservaríamos os sentimentos e as paixões dos primitivos seres humanos. Toda ascensão moral é um esforço do talento virtuoso no sentido da perfeição futura; nada de inertes condescendências para com o passado, nem simples acomodações ao presente.

A evolução das virtudes depende de todos os fatores morais e intelectuais. O cérebro sói antecipar-se ao coração; mas os nossos sentimentos influem mais intensamente do que nossas idéias na formação dos critérios morais. O fato é mais evidente nas sociedades do que nos indivíduos. 

Já se pôde afirmar que, se um grego ou romano ressuscitasse, seu cérebro permaneceria atônito, diante da nossa cultura intelectual, mas o seu coração poderia palpitar em uníssono com muitos corações contemporâneos. Suas idéias sobre o universo, o homem e as coisas, constrastariam com as nossas, mas os seus sentimentos se ajustariam em grande parte às palpitações do sentir moderno.

Num século, mudam-se as idéias fundamentais da ciência e da filosofia; os sentimentos centrais da moral coletiva, apenas sofrem ligeiras oscilações, porque os atributos biológicos da espécie humana variam muito lentamente.

Os conhecimentos infantis dos clássicos fazem-nos sorrir; mas os seus sentimentos nos comovem, suas virtudes nos entusiasmam, seus heróis nos causam admiração, e nos parecem honrados pelos mesmos atributos que hoje fariam que fossem honrados por nós. Naquele tempo, como agora, os homens exemplares, embora de idéias opostas, praticavam análogas virtudes, em face dos hipócritas de suas éras. O fundo varia pouco; o que se transforma incessantemente, é a forma, o critério de valor que lhe confere a força ética.

Há, sem dúvida, um progresso moral coletivo. Muitos dogmatismos, que antes foram virtudes, são julgados, maist arde, como opiniões. Em cada momento histórico, coexistem virtudes e preconceitos; o talento moral pratica as primeiras; a honestidade se apega aos segundos. Os virtuosos, cada um à sua maneira, combatem pelo mesmo objetivo, na forma que a sua cultura e o seu temperamento lhes sugerem. Embora por caminhos diferentes, e partindo de premissas racionais antagônicas todos se propõem melhorar o homem; são igualmente inimigos dos vícios de seu tempo.

Os virtuosos não são iguais aos santos; a sociedade opõe demasiados obstáculos ao seu esforço. Pensar na perfeição não implica praticá-la totalmente; basta o firme propósito de caminhar no seu sentido. Os que pensam como profetas podem ser obrigados a proceder como filisteus em muitos dos seus atos.

A virtude é uma tensão real na direção do que se concebe como perfeição ideal.

O progresso ético é lento, mas seguro. A virtude arrasta e ensina; os honestos se resignam a imitar alguma parte das excelências que os virtuosos praticam. Quando se afirma que somos melhores do que nossos avós, apenas quer dizer-se que o somos diante de nossa moral contemporânea. Seria mais exato dizer que nos diferenciamos deles.

Sobre as necessidades perenes da espécie, organizam-se conceitos de perfeição, que variam através dos tempos; sobre as necessidades transitórias de cada sociedade, elabora-se o protótipo da virtude mais útil ao seu progresso. Enquanto o ideal absoluto permanece indefinido, e oferece escassas oscilações no curso de séculos inteiros, o conceito concreto das virtudes se vai plasmando nas variações reais da vida social; os virtuosos ascendem por mil azinhagas, em direção a metas que se afastam, até o infinito.

Cada um dos sentimentos úteis para a vida humana, engendra uma virtude, uma forma de talento moral. Há filósofos que meditam, durante longas noites de insónia; sábios que sacrificam a sua vida nos laboratórios; patriotas que morrem pela liberdade dos seus concidadões; altivos que renunciam a todo favor que tenham por preço a sua dignidade; mães que sofrem a miséria, custodiando a honra de seus filhos.

O homem medíocre ignora essas virtudes; limita-se a cumprir as leis, com medo das penalidades que ameaçam aquele que as viola, conservando a honra para não se defrontar com as conseqüências que se poderiam seguir à sua perda,

V — A pequena virtude e o talento moral

Assim como há um grama de intelectos, cujos tons fundamentais são a inferioridade, a mediocridade e o talento, — aparte o idiotismo e o gênio, que ocupam os extremos — também há uma hierarquia moral representada por termos equivalentes. No fundo dessas desigualdades, há uma profunda heterogeneidade de temperamentos. A conformação com os catecismos alheios é coisa fácil para os homens débeis, crédulos, timoratos, sem grandes desejos, sem paixões veementes, sem necessidade de independência, sem irradiação de sua personalidade; é inconcebível, entretanto, nas naturezas idealistas e fortes, capazes de paixões vivas, bastante intelectuais para não se deixarem enganar pela mentira dos outros. Aqueles nada sofrem pela coação moral do rebanho, pois a hipocrisia é o seu clima propício; estes sofrem, lutando entre suas inclinações superiores e o falso conceito do dever que a sociedade impõe. Os homens honestos se ajustam a tudo, mas o homem moralmente superior nunca se escraviza.

"Pode conceder-se, a este conceito — diz Remy de Gourmont — o valor de u’a moda a que um indivíduo se resigna, para não chamar a atenção, mas que não interessa o seu sêr íntimo, nem lhe causa um sacrifício profundo".

Nessa não-conformidade, com a hipocrisia coletivamente organizada, consiste a virtude, que é individual, contra as suas caricaturas coletivas; na caridade e na beneficência mundanas, a miséria dos corações alimenta a vaidade dos cérebros vasios.

Os temperamentos capazes de virtude diferem pela sua intensidade. O primeiro germe da perfeição moral se manifesta em uma decidida preferência para o bem: praticando-o, ensinando-o, admirando-o. A bondade é o primeiro esforço no sentido da virtude: o homem bom, esquivo às condescendências permitidas pelos hipócritas, leva em si uma partícula de santidade; o "bonismo" é o moral dos pequenos virtuosos; sua pregação é plausível, sempre que ensine a evitar a cobardia, que é um perigo.

Há alguns excessos de bondade que não poderiam diferenciar-se do envilecimento; há falta de justiça na moral do perdão sistemático. Fica bem perdoar uma vez, e seria iníquo não perdoar nunca; mas, aquele que perdoa duas vezes, torna-se cúmplice dos malvados.

Não sabemos o que teria feito Cristo, se lhe tivessem esbofeteado a outra face que ofereceu ao que o afrontara, esbofeando a primeira: os escolásticos preferem não discutir este problema.

Ensinemos a perdoar; mas ensinemos, também, a não ofender. Será mais eficiente. Ensinemos com exemplo, não ofendendo. Admitamos que, na primeira vez, ofende-se por ignorância; mas convém crer que, na segunda, seja por vilania. O mal não se corrige com a complacência, nem com a cumplicidade; isto é nocivo, como os venenos, e devem opôr-se, a tal conceito, antídotos eficazes: a reprovação e o desprezo.

Enquanto os hipócritas receitam a autoridade, reservando a indulgência para si mesmas, os pequenos virtuosos preferen a prática do bem à sua pregação; evitam os sermões e enaltecem a sua própria conduta. Para o próximo, encontram uma desculpa na debilidade humana, ou na tentação do meio: "tout comprendre c’est tout pardonner"; só são severos para consigo próprios. Nunca esquecem as próprias culpas e os próprios erros; e, se não justificam as alheias, também não se preocupam com rebatê-las com seus ódios, peis sabem que o tempo as castiga fatalmente, por essa gravitação que abisma os perversos, como se fossem balões esvasiados. Seu coração é sensível às pulsações dos outros, abrindo-se, a todo momento, para aliviar as penas de um desventurado, e prevenindo as suas dificuldades, para poupar-lhe a humilhação de pedir auxílio; fazem sempre tudo o que podem, pondo nisso tanto afã que transluz o desejo de fazer mais e melhor. Aprovam e estimulam qualquer germe de cultura, prodigalizando os seus aplausos a toda idéia original, e mostrando-se complacentes para com os ignorantes, sem admoestações inoportunas; sua cordialidade sincera, para com os espíritos humildes, não está carcomida pela urbanidade convencional.

Essas pequenas virtudes são usuais, de aplicação freqüente, quotidiana; servem para distinguir o bom do medíocre, e diferem tanto da honestidade, como o bom-senso difere do senso-comum. Importam numa elevação sobre a mediocridade; os aue a sabem praticar, merecem os elogios que tão prodigamente se lhes tributam.

Desde Platão e Plutarco, está feita a sua apologia: isto não impede a sua assídua reiteração por escritores que glosam, em estilo decisivo, a surrada frase do Hugo:

"E se fait beaucoup de grandes actions dans les petites luttes. Il y a des bravoures opiniâtres et ignorées qui se défendent pied à pied dans l’ombre contre l’envahissement fatal des nécessités. Nobles et mystérieux qui aucun regard ne voit, qu’aucune renomée ne paye, qu’aucune fanfare ne salue. La vie, le malheur, l’isolement, l’abandon, la pauvreté, sont des champs de bataille que ont leurs héros; héros obscurs plus grandes parfois que les héros illustres".

Não esqueçamos, todavia, que essas virtudes são pequenas: é erro grave colocá-las em face das grandes. Elas revelam uma louvável tendência, mas não podem ser comparados com assíduo zelo de perfeição que converte a bondade em virtude.

Para isto, é necessária certa intelectualidade superior; as mentes exíguas não podem conceber um gesto transcendente e nobre, nem um caráter amorfo saberia executá-lo. Aos que dizem. "Não há tolo máu", po-der-se-ia responder que a sua incapacidade para o mal não é bondade.

Ainda está para ser resolvido o antigo litigio que propunha eleger entre um imbecil bom e um inteligente mau; mas já está certamente resolvido que a imbecilidade não é uma presunção de virtude, assim como a inteligência não o é da perversidade. Tal coisa não impede que muitos nécios protestem contra o engenho e a ilustração, glosando o paradoxo de Rousseau, até inferir dele que a escola povoa o cárcere, e que os melhores homens são os torpes e os ignorantes.

Mentira. Grosseira patranha a esgrimir contra a dignificação humana, mediante a instrução pública, requisito básico para o enaltecimento moral.

Sócrates ensinou — faz já alguns anos, — que a ciência e a virtude se confundem em uma só e mesma resultante: a Sabedoria, para fazer o bem, basta velo claramente; não n’o praticam os que n’o vêem. Ninguém seria mau, sabendo-o.

O homem mais inteligente e mais ilustrado pode ser o melhor; "pode" ser, embora nem sempre seja. Ao contrário, o nécio e o ignorante não podem ser bons, nunca, irremessivelmente.

A moralidade é tão importante como a inteligência, na composição global do caráter. Os maiores espíritos são os que associam as luzes do intelecto às magnificências do coração. A "grandeza de alma" é bilateral. São raros os talentos completos: são exceções os gênios. Os homens excelentes brilham por esta ou por àquela aptidão, sem resplandecer em todas: há, mesmo assim, talentos em algum gênero intelectual, que não o são em virtude alguma, e homens virtuosos que não assombram por seus dotes intelectuais.

Ambas essas formas de talento, embora distintas e multiformes, são igualmente necessárias, e merecem a mesma homenagem. Podem existir isoladas; soem germinar, em uníssono, nos homens extraordinários. Isoladas, valem menos.

A virtude é inconcebível no imbecil, e o engenho é infecundo no desavergonhado.

A subordinação da moralidade à inteligência ó uma renúncia a toda dignidade; o mais engenhoso dos homens seria detestável, se puzesse o seu engenho ao serviço da rotina, do prejuízo e do servilismo: seus triunfos seriam a sua vergonha; não a sua glória. Foi por isso que Cícero disse, há muito:

"Quanto mais fino e culto é um homem, tanto mais repulsivo e suspeito êle se torna, quando perde a sua reputação de honesto" (De offis., 11-9).

É verdade que o tempo perdoa algumas culpas aos gênios e aos heróis capazes de exceder, pelo bem que fazem, o mal que não deixaram de praticar; mas estes são exceções raras, e, na vida, seria necessário medi-los com o critério da posteridade: a transcedente magnitude de sua obra.

Estas noções suprimem alguns problemas inocentes, como o de falar sobre si são preferíveis os que criam, inventam e aperfeiçoam nas ciências e nas artes, ou os que possuem um admirável conjunto de energias morais, que impele a jogar o futuro e a vida em defesa da dignidade e da justiça.

Entre os talentos intelectuais e os talentos morais, estes últimos soem ser preferidos, com razão, pois são concebidos como mais necessários.

"O talento superior é o talento moral", escreveu Smiles, glosando o inexgotável Mr. de la Palisse. Dessa comparação, está excluído, a priori, o homem medíocre pois êle só tem rotinas no cérebro, e preconceitos no coração .

Aapoteóse do tolo bom encaminha-se, evidentemente, ao protesto, como o fazia Cícero, contra os que pretendiam consentir ao engenho um absurdo direito à imoralidade. O sistema é equívoco; igualmente injusto seria desacreditar os santos mais exemplares, com fundamento na existência de simuladores da virtude.

É capcioso opôr o engenho à moral, como termos inconciliáveis. Só poderia, pois, ser virtuoso o rotineiro ou o imbecil? Só poderia ser engenhoso o desonesto ou o degenerado?

A humanidade deveria corar, diante destas perguntas. Sem embargo, elas são insinuadas por catequizado-res, que adulam os tolos, procurando o êxito, diante do seu número infinito. O sofisma é ingênuo. Em muitos grandes homens se encontram anomalias morais ou de caráter, que não soem ser encontradas no medíocre, nem no imbecil; logo, aqueles são imorais e estes são virtuosos.

Embora as premissas fossem exatas, a conclusão seria ilegítima. Se se concedesse — e é mentira — que os grandes engenhos são forçosamente imorais, não haveria, mesmo assim, razão alguma para outorgar aos imbecis o privilégio da virtude, reservado ao talento moral.

Mas a premissa é falsa. Se temos notícias dos desequilíbrios dos gênios, e não dos pacóvios, não é porque estes sejam faróis de virtude, sinão, por outro motivo muito singelo: a história somente se ocupa com os primeiros ignorando os segundos.

Para cada poeta alcoólatra, há dez milhões de ta-fues que bebem, como êle; para cada filósofo uxoricida, há cem mil uxoricidas que não são filósofos; para cada sábio experimentador, cruel para com um cão, ou uma rã, há uma incontável coorte de caçadores e toureiros, que levam vantagens na impiedade.

E que dirá a história? Houve um poeta alcoólatra, um filósofo uxoricida, e um sábio cruel: os milhões de anônimos não têm biografia.

Moreau de Tours errou o caminho; Lombroso se extraviou; Nordau fez, dessa questão, uma simples polêmica literária. Não comunguemos com rodas de moinho; a premissa é falsa.

Nós, que temos visitado cem cárceres, podemos assegurar que havia neles cincoenta mil homens de inteligência inferior, ao lado de cinco ou de vinte homens de talento. Não vimos siquer um homem de gênio.

Volvamos ao sadio conceito socrático, irmanando a virtude ao engenho, fazendo-os aliados e não adversários. Uma elevada inteligência é sempre propícia ao talento moral, e é esta a condição da virtude. Só ha uma coisa mais vasta, exemplar, magnífica: é o movimento de aza que eleva no sentido do desconhecido até então, re-montando-nos aos cimos eternos desta aristocracia moral: são gênios que ensinam virtudes não praticadas até à hora das suas profecias, ou que praticam as conhecidas com extraordinária intensidade. Se um homem consegue encarrilhar, em absoluto, a sua vida, no sentido de um ideal, fugindo ou contrastando todas as contigências materiais que conspiram contra êle, esse homem se eleva sobre o próprio nível das mais altas virtudes. Entra na santidade.

VI — O gênio moral: a santidade

A santidade existe: os gênios morais são os santos da humanidade. A evolução dos sentimentos coletivos, representados pelos conceitos do bem e da virtude, opera-se por meio de homens extraordinários. Neles se resume ou se polariza alguma tendência imanente do contínuo vir-a-ser moral.

Alguns legislam e fundam religiões, como Manú, Confúcio, Moisés ou Buda, em civilizações primitivas, quando os Estados são teocracias; outros pregam e vivem a sua moral, como Sócrates, Zenão ou Cristo, confiando a sorte dos seus novos valores à eficácia do exemplo; há, enfim, os que transformam racionalmente as doutrinas, como Antístenes, Epicuro ou Spinoza.

Seja qual fôr o juízo que, da posteridade, mereçam os seus ensinamentos, todos eles são inventoras forças originais na evolução do bem e do mal, na metamorfose das virtudes.

Os que ensinam, são sempre homens de exceção, gênios. Os talentos morais aperfeiçoam ou praticam, de maneira excelente, essas virtudes por eles criadas; os medíocras morais, limitam-se a imitá-los timidamente.

Toda santidade é excessiva, transbordante, obsidente, absorvente, incontrastável: é gênio.

Um homem é santo por temperamento, não, por cálculo; por impulsos firmes de coração, mais do que por doutrinarismos racionais: quasi todos foram assim.

A inflexível rigidez do profeta ou do apóstolo é simbólica; sem ela, não teríamos a iluminada firmeza do virtuoso, nem a obediência disciplinada do honesto.

Os fatores práticos da vida social não são os santos, e, sim, as massas que imitam dèbilmente a sua fórmula. Francisco não foi um instrumento eficaz da beneficência, virtude cristã, que o tempo substituirá pela solidariedade social; seus efeitos úteis são produzidos por inumeráveis indivíduos que seriam capazes de praticá-la por iniciativa própria, mas que, no exaltado protótipo, recebem sugestões, tendências e exemplos, graduando-os, difundindo-os.

O santo de Assis morre de consunção, obcecado por sua virtude, sem cuidar de si próprio, e entrega a sua vida ao seu ideal; os medíocres que praticam a beneficência por êle pregada, cumprem uma obrigação, tibia-mente, sem perturbar a sua tranqüilidade em holocausto aos outros.

A santidade cria ou renova.

"A extensão e o desenvolvimento dos sentimentos sociais e morais — disse Ribot — produziram-se lentamente e por obra de certos homens que merecem ser chamados inventores em moral. Esta expressão pode soar estranhamente a certos ouvidos de gente imbuída da hipótese de um conhecimento do bem e do mal inato, universal, distribuído a todos os homens a todos os tempos. Se, ao contrário, se admite uma moral que se vai formando, é necessário que ela seja a criação, o descobrimento praticado por um indivíduo, ou por um grupo. Toda gente admite inventores em geometria, em música, nas artes plásticas ou mecânicas; mas, também, houve homens que, por suas disposições morais, eram muito superiores aos seus contemporâneos, por serem promotores, iniciadores. É importante observar que a concepção teórica de um ideal moral mais elevado, de uma etapa a ser vencida, não basta; é preciso uma emoção poderosa que seja capaz de fazer agir, e, por contrário, comunicar aos outros o seu próprio arrojo. A avançada é proporcional ao que se sente, e não, ao que se pensa".

Por isto, o gênio moral é incompleto, enquanto não atua; a simples visão de ideais magníficos não implica a santidade, que está mais no exemplo, do que na doutrina, sempre que encerra uma criação original. Os assim chamados — santos, de certas religiões, raras vezes são criadores: são simples virtuoses ou alucinados, aos quais o interesse do culto e a política do sentimento religioso, somente são gênios os que fundam ou transformam, mas, de maneira alguma, os que organizam ordens, estabelecem regras, repetem um credo, praticam uma norma, ou difundem um catecismo.

O santoral católico é irrisório. Ao lado de poucas vidas que merecem a agiografia de um Fra Domênico

Cavalca, há muitas que não interessam, nem ao moralista, nem ao psicólogo; numerosas tentam a curiosidade dos alienistas, e outras só revelam a interessada homenagem dos concílios ao fanatismo localista de certos rebanhos industriosos.

Coloquemos mais alta a santidade: coloquemo-la onde possa assinalar uma orientação inconfundível na história da moral.

Cada hora da humanidade tem um clima, uma atmosfera e uma temperatura, que, sem cessar, variam. Cada clima é propício ao florescimento de certas virtudes; cada atmosfera se carrega de crenças que assinalam a sua orientação intelectual; cada temperatura marca os graus de fé com que se acentuam ideais e aspirações.

Uma humanidade que evolue, não pode ter ideais imutáveis, sinão, incessantemente perfectíveis, cujo poder de transformação deve ser infinito, como a vida.

As virtudes do passado não são as virtudes do presente; os santos de amanhã não serão os mesmos de ontem. Cada momento da história, requer certa forma de santidade que seria estéril, si não fosse oportuna, pois as virtudes se vão plasmando nas variações da vida social.

No amanhecer dos povos, quando os homens vivem lutando denodadamente contra a natureza avarenta, é indispensável que eles sejam fortes e valentes, para impor a hegemonia, ou assegurar a liberdade do grupo; então, a qualidade suprema é a excelência física, e a virtude da coragem se transforma em culto de heróis, equiparados aos deuses. A santidade está no heroísmo.

Nas grandes crises de renovação moral, quando a apatia ou a decadência ameaçam dissolver um povo ou uma raça, a virtude excelente entre todas é a integridade do caráter, que permite viver ou morrer por um ideal fecundo, para o engrandecimento comum. A santidade está no apostolado.

Nas civilizações em plena madureza, serve mais à humanidade aquele que descobre uma nova lei da natureza, ou ensina a dominar alguma das suas forças, do que aquele que culmina por seu temperamento de herói ou de apóstolo. Por isso, o prestígio rodeia as virtudes intelectuais: a santidade está na sabedoria.

Os ideais éticos não pertencem exclusivamente ao sentimento religioso; nem a virtude, nem a santidade. Eles podem florescer em cada sentimento. Cada época tem seus ideais e seus santos: seus heróis, seus apóstolos, seus sábios.

As nações que chegaram a um certo nível de cultura, santificam, nos seus grandes pensadores, os porta-luzes e arautos de sua grandeza espiritual. Se os heróis dão o exemplo supremo para os que combatem, e os apóstolos, para os que crêem, os filósofos o dão para os que pensam.

Na moral das sociedades que se formam, culminam Alexandre, Cesar ou Napoleão; quando se renovam, Sócrates, Cristo ou Bruno; mas chega um momento em que os santos se chamam Aristóteles, Bacon e Goethe.

A santidade varia em consonância com o ideal.

Os espíritos cultos concebem a santidade nos pensadores, tão luminosa como nos heróis e nos apóstolos; nas sociedades modernas, o "santo" é um antecipado visionário de teorias ou profeta de feitos, que a posteridade confirma, aplica ou realiza. Compreende-se que, em suas horas, haja santidade no ato de servir um ideal nos campos de batalha, ou desafiando a hipocrisia, como nos supremos protagonistas de uma Ilíada, ou de um Evangelho; mas também é santo, de outros ideais, o poeta, o sábio ou o filósofo, que vivem eternos em sua Divina Comédia em seu Novum Organum ou em sua Origem das Espécies.

Se é difícil olhar, por um instante, para o semblante da morte que ameaça paralizar o nosso braço, mais difícil ainda é resistir, durante toda uma vida, aos prejuízos e rotinas que ameaçam asfixiar a nossa inteligência .

Entre névoas que alternativamente se adensam, e se dissipam, a humanidade ascende, sem repouso, a caminho de remotas alturas. As maiorias as ignoram; poucos eleitos as podem ver e pôr, nelas, o seu ideal, aspirando aproximar-se cada vez mais. Orientadas pela exígua constelação dos visionários, as gerações caminham, da rotina, para Verdades cada vez menos inexatas, e do prejuízo para Verdades cada vez menos imperfeitas.

Todos os caminhos da santidade conduzem ao ponto do infinito que assinala a sua imaginária convergência.


 Fonte: Livraria Paratodos, 1953

 

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