Introdução a Sociologia – PRIMEIRA PARTE – OS PROBLEMAS SOCIOLÓGICOS
Professor A. Cuvillier (1939).
Capítulo III – A ESPECIFICIDADE DO SOCIAL: O PONTO DE VISTA
PROPRIAMENTE SOCIOLÓGICO
Faltava percorrer uma última
etapa. Era ainda preciso abrir caminho à noção de um determinismo propriamente sociológico,
quer dizer, irredutível a fatores puramente biológicos ou mesmo psicológicos,
e no qual, contudo, o homem aparecesse como ator.
I. — os historiadores
Os historiadores, muitas vezes,
têm sido levados, pelas necessidades da explicação histórica, a enunciar certas proposições gerais que
tomam o aspecto de leis. Bouglé
mostrou-o
luminosamente no no seu trabalho Qu’est-ce que la Sociologie? e, mais recentemente ainda (1934), nos Annales Sociologiques.
Quando
um Guizo explica certos caracteres do regime feudal (ociosidade do senhor no
seu castelo, o que criava o espírito de aventura, respeito pela mulher,
obediência às tradições, etc.) pelo fenômeno do
"isolamento"; quando um Renan nota a influência da vida da tenda sobre as tribos do deserto ou quando
enuncia a lei: "Um poder absoluto é tanto mais vexatório quanto mais
restrito fôr o grupo sobre que é exercido"; quando um fustel de Coulanges afirma que "as
desigualdades sociais são sempre em proporção inversa da força da autoridade"
— todos eles fazem mais sociologia que história. E o mesmo sucede com os
historiadores contemporâneos: Langlois
permite-se
o seguinte aforismo: "É instintivamente natural, tanto nos corpos como
nos indivíduos que já se não renovam, recolher-se em si mesmos e defender seu
repouso"; Albertini
explica a
decad ência do Império Romano pela "excessiva extensão das suas
fronteiras", pela "situação humilhada e desprezada em que fora deixada
uma grande parte do povo" e, finalmente, "pela despopulação e as
crises de produção" ; Petit-Dutailjjs, no livro La Monarchie féodale (que, ao prefaciar Berr, qualifica de livro de sociologia), ao pôr em relevo o
papel dos indivíduos, apresenta as causas gerais que prepararam em França a
religião da monarquia.
Muitos historiadores tiveram,
de resto, a consciência nítida das condições daquilo a que chamaram uma
"história científica", isto é, de uma sociologia. Em primeiro lugar
deve ser citado Paul Lacombe (1839-1919), autor de De L’Histoire
considérée comme science (1894) Segundo Lacombe, a história, que poderia também chamar-se "sociologia", não
tem apenas por objeto o singular ou o individual. É necessário distinguir os acontecimentos, quer dizer, os fatos únicos, e
os fatos institucionais,
ou seja, os
fatos de repeti ção, de similitude. A
hist ória
vulgar põe os primeiros em primeiro plano. Mas, se a história quer ser uma ciência, deve
procurar as "semelhanças constantes", como fazem as outras ciências, Esse
trabalho é possível, porque todos os seres humanos contêm, ao mesmo tempo,
além do indivíduo singular, cujos atos não são previsíveis, nem mesmo
inteiramente explicáveis, um "homem temporário" e um "homem
geral". O que Lacombe
chama
"o homem temporário" é o "homem de uma época e de um
lugar", aquele que tem "maneiras de pensar, de sentir e de agir, não
singulares, nem gerais, mas comuns a um grupo mais ou menos numeroso": é
êle que representa propriamente o homem "histórico". Quanto ao
"homem geral", é o constituído pelas necessidades essenciais do ser
humano, que a psicologia nos faz conhecer. Com efeito, nisto Lacombe está, antecipadamente, de acordo com os psicosso-ciólogos: "As leis explicativas da
história — afirma êle — só se podem encontrar na psicologia".
Precisamente como Lester
Ward ou Mac Dougall, faz corresponder as diferentes
instituições às necessidades (nutritiva, genesíaca, simpática, honorífica,
artística, intelectual) do homem, admitindo, ao mesmo tempo, que algumas
dessas instituições, como a família, por exemplo, derivam de várias necessidades ao mesmo tempo. Arrisca-se,
até, a dar explicações um pouco ousadas, como quando relaciona com a pouca ação da simpatia nas
formas primitivas da família o fato de a criança ser nela, por vezes, comida
ou trocada! Lacombe é mais feliz quando mostra "o poder de coação"
da opinião: "A opinião faz dos homens o que quer: muda o caráter pessoal;
muda as idades e os sexos, dando a um as qualidades e os vícios próprios do
outro". O mesmo sucede quando fala das sanções que a opinião aplica:
"Quando, em qualquer parte, um homem é posto à mercê da opinião, é difícil
que a lei possa protegê-lo contra as crueldades reais. É preciso estudar o caso
numa aldeia. Esse pária é mais batido e, sobretudo, mais roubado do que pode
imaginar o legislador, na sua esfera elevada e distante". E o autor
enuncia até uma lei de morfologia social: "A
opini ão
exerce sobre o indivíduo uma influência inversamente proporcional à extensão do meio".
Outros historiadores, como A. D. Xenopol
(La théorie de l’histoire, 1908), ainda que sustentando que a história é essencialmente o
estudo daquilo que só acontece uma vez, admitem que ao lado dos fatos
propriamente históricos, que se sucedem sem nunca se repetirem, podem distinguir-se fenômenos
de repetição,
que a sociologia
tem por fun ção estudar.
Recordemos aqui a famosa
controvérsia travada entre historiadores e sociólogos por ocasião da fundação
da Revue
de Synthèse historique (1900).
Dessa controvérsia
concluía Mantoux, em 1903, que a história e a sociologia, tendo missões distintas, estão unidas por
laços cada vez mais íntimos. Henri Berr, quer na sua obra sobre La synthèse en histoire
(1911), quer nos seus substanciais
prefácios aos volumes da coleção L’Évolution de l’Humanité, atribuiu, também, um grande
lugar à sociologia.
No início de um dos volumes mais característicos dessa coleção: Des Clans aux Empires (1923) (obra, precisamente, resultante da colaboração de um
sociólogo e de um historiador) Berr
exprime-se
assim: "Definida com rigor, limitada com cuidado, a sociologia aparece,
essencialmente, como estudo dessas instituições que, na vida social, correspondem às funções da vida
orgânica, como estudo da estrutura das sociedades, como estudo das relações que
existem entre as funções e a estrutura e, também, entre as diversas funções. É abstrata e comparativa, pois que isola, para os aproximar
entre si, elementos tirados da historia em pontos diversos do espaço e do tempo. E depois de ter elaborado esses elementos, obtém para a historia um
conjunto de necessidades
ou de leis".
No entanto, se a sociologia fornece "uma
contribuição capital" à síntese histórica, Berr recusa-se a identificá-la com essa mesma síntese. É
que, na sua opinião, convém reservar, com efeito, ao lado do elemento social,
um lugar para a influência dos indivíduos. /Em última análise, é mesmo no psiquismo individual que se encontraria a
origem principal da sociedade: "A sociedade, tal como a história a mostra,
é, sem dúvida, uma realidade sui generis: tem a sua natureza própria e as suas leis. Mas poderá
admitir-se que essa realidade tenha aparecido já completamente constituída?…
Ora, se as primeiras modalidades da organização social, se a série das
hesitações iniciais estão fora do nosso alcance, e se é necessário ter o cuidado de
não fabricar o romance das origens, é inconcebível que o princípio dessa
organização possa procurar-se sem ser no indivíduo, no instinto social do indivíduo". Explicar assim a sociedade pelo
"instinto social" não será voltar à "virtude soporífica?" Mas que importa? Não são as
questões de origens
que nos
interessam, e é bastante estranho ver os historiadores, que nunca atingem senão produtos sociais
já muito evoluídos, apresentar assim o problema. O essencial é reconhecer que
a sociedade, tal
como podemos observá-la, na sua realidade concreta e viva, possui uma realidade própria.
II. — A SOCIOLOGIA "FORMALISTA"
Encontra-se a mesma idéia na
base dos trabalhos das diversas escolas chamadas "formalistas",
sobretudo
nos EE.UU. e na Alemanha.
A escola formalista americana, em boa verdade, está
ainda muito próxima da escola psicológica, e certos sociólogos (que,
geralmente, são considerados da escola formalista) como Emory Bogardus
(Introduction to Sociology, 1913; Fundamentals of Social Psychology, 1931), poderiam igualmente, apesar das suas tendências para
introduzir em sociologia o ponto de vista objetivo e quantitativo, ser
classificados na escola psicológica. Contudo, um autor como Edward Ross, aliás muito eclético, que sofrera, primeiro, a influência de Tarde e que, na primeira edição dos seus Principies of Sociology (1820), adotara a teoria dos instintos de Mac Dougall, quase a abandonou completamente na edição de 1930. Cada vez mais se procuram estudar as formas dos grupos sociais, as relações entre grupos e as
transformações que neles se efetuam.
A mesma evolução se produziu na
Alemanha. O autor que aí inaugurou os estudos deste gênero foi Ferdinand Tönnies
(nascido em
1855). Na sua célebre obra Gemeinschaft und Gesellschaft, que foi publicada em 1887, apresentava êle uma distinção entre a
"comunidade" e a "sociedade", cujos fundamentos eram
tirados da psicologia de Wundt. A "comunidade" (gemeinschaft) assenta sobre o querer
profundo, inerente ao ser (Wesenwüle), isto é, sobre "essas formas do querer que têm a
sua origem na sensibilidade, na tendência, no instinto, e que, fortificando-se pelo exercício, se tornam’
hábito e acabam sob a forma de crença ou de confiança"à "comunidade" correspondem os grupos naturais
fundados no parentesco, na simpatia e, de uma maneira geral, no consenso
espontâneo dos indivíduos: é o costume (sitte) que domina nela A "sociedade" (gesellschaft) desenvolve-se pouco a pouco
graças à vontade livre, à vontade de escolha (Kürivüle). Aparecem então os grupos que
dão um maior lugar à liberdade e à vontade individual, propondo-se um fim
exterior a si mesmos: neles o costume transforma-se em moda. Esta distinção
teve na história da sociologia alemã uma extraordinária vaga, a ponto de Hans Freyer ter podido escrever que a história da sociologia se poderia reduzir, em
grande parte, à história desses dois conceitos de "comunidade" e de
"sociedade". Alguns interpretando-os como aplicáveis a estruturas fundamentais
existentes em todos os agrupamentos, outros vendo neles tipos de agrupamentos
opostos, e outros, finalmente, esforçando-se por conduzir essa distinção em
sentidos tendenciosos./ Nestes encontra-se a noção de "comunidade"
ora apoiada em noções de sangue, de raça e sobre os sentimentos elementares,
ora em oposição com a «los agrupamentos artificiais resultantes de uma convenção
ou de um constrangimento exterior/ Foi mesmo utilizada por certos sociólogos
franceses (Gaston Richard) e não deixa de ter uma certa
analogia com a que, mais tarde, Durkheim
estabeleceu entre a "solidariedade
mecânica" e a "solidariedade orgânica".
A sociologia de Georg Simmel (1858-1918), é ainda mais característica dessa
tendência formalista. Já na sua Soziale Differenzierung (1890), de mostrava como o
entrelaçamento dos grupos so ciais pode produzir a emergência da
individualidade.
Na sua Soziologie (1908), distingue a sociologia
das ciências sociais especiais: economia política, direito, história da
civilização, demografia, política, etc, atribuindo-lhe como finalidade um
estudo puramente formal, abstraindo da "matéria" da vida social, isto é, dos fins
econômicos, jurídicos, etc.
"É assim — escreve êle —
que um fenômeno como a formação dos partidos tanto se pode observar no mundo artístico como nos
meios políticos, na indústria como na religião". Pela mesma forma se pode
estudar o conflito
em geral, a
sua utilidade, os seus perigos, a maneira por que a sociedade se defende
deles, etc, sem considerar se a concorr ência é de ordem econômica, religiosa ou
estética. Mais geralmente até, pode procurar saber-se "como as formas
sociais se mantêm". A
sociologia
assim compreendida, ainda que mantendo apertadas rela ções com a psicologia —
porque tudo se reduz para Simmel, a uma "interação"
das consciências individuais — tem, no entanto, o seu objeto próprio e "é
justo apresentar a sociedade como uma unidade sui generis, distinta dos seus elementos
individuais".
Podemos também ligar à sociologia formalista, pelo menos nas suas últimas
obras, Alfred Vierkandt, que publicou em 1930-1931, com a colaboração de F. Tönnies, F. Oppenheimer, W. Sombart, F. Eulenburg, etc, um importante Dicionário de Sociologia (Handwörterbuch der
Soziologie). Na
sua primeira grande obra, Naturvölker und Kulturvölker (1896), que apresentou como uma
"contribuição à psicologia social", Vierkandt estava ainda muito próximo do ponto de vista de Tönnies. Repartia as formas de organização social em dois grandes
tipos: os povos primitivos (Naturvölker), nos quais predomina a atividade involuntária, impulsiva, e os povos civilizados (Kulturvölker) nos quais aparece a atividade refletida. — O ponto de vista
formalista torna-se
muito mais nítido na sua Gesellsrhaftslehre, publicada em 1923. Nessa obra, opõe ele a sociologia propriamente dita à sociologia "enciclopédica",
tal como foi
concebida
por Comte e Spencer e que, segundo êle, não é mais que um prolongamento da filosofia da história. O objeto
próprio da sociologia é o estudo das propriedades do grupo social como grupo,
as "interações" que o constituem e as formas que toma nas diferentes sociedades
concretas: família, clã, grupo profissional, classe, partido, nação, Estado, etc. O autor não abandona, contudo,
o seu ponto de vista psicológico. Mas as suas análises são mais nitidamente
orientadas no sentido de um estudo das relações sociais e conduzem a uma
teoria da consciência coletiva (noção rejeitada, ao contrário, por Tönnies) considerada como uma realidade que ultrapassa e domina
os indivíduos.
A sociologia formalista atinge a sua expressão mais
sistemática na sociologia relacional (Beziehungs-soziologie) de Leopold von Wiese, que expôs a sua
doutrina numa Sociologia geral (Allgemeine Soziologie) cujo primeiro volume (1924) é uma "teoria das relações" (Beziehungslehre) e o segundo (1929) uma "teoria das
formas" (gebildelehre) sociais. A "sociologia geral" ou "sociologia
pura" é, para êle, absolutamente independente da sociologia
econ ômica, jurídica, religiosa,
estética, etc., e neste ponto von Wiese está de acordo com Simmel. É que, com efeito, "o social ou o inter-humano"
consiste, essencialmente, segundo êle, "numa rede complicada de relações entre os homens",
e o objeto próprio da sociologia
é estabelecer uma classificação sistemática dessas relações
inter-humanas. Por outras palavras, há uma esfera corporal humana, objeto da
biologia; há uma esfera espiritual humana, objeto da psicologia; mas esses
elementos corporal e espiritual, aos quais, no fim de contas, tudo se reduz,
agem, no entanto, de maneira diferente conforme os homens estão mais ou menos
aproximados ou afastados, mais ou menos distantes uns dos outros.
Os processos sociais que dão origem a essas relações
serão, portanto, essencialmente, fenômenos de "distância": serão
processos de ligação,
como os de
aproxima ção, de adaptação, de assimilação, de união, ou então processos de separação, tais como os de concorrência,
de oposição e de conflito. Os processos sociais engendram as formas sociais, que o autor classifica em três
categorias: 1.a
as massas, em que as rela ções dos
indivíduos influem imediatamente sobre a ação coletiva; e ainda é preciso distinguir
entre as "massas concretas" e as "massas abstratas", tais
como "as massas populares", a "boa sociedade", o
"público", etc.; 2.a os grupos, formas sociais relativamente
duráveis, nas quais os indivíduos estão ligados de tal maneira que podem ser
considerados como pertencendo-se reciprocamente; 3.a os coletivos abstratos, como o Estado, a Igreja, as
profissões, as classes, e os coletivos abstratos da vida espiritual: as artes e
as ciências. É preciso evitar cuidadosamente, diz-nos von Wiese, "substantivar"
essas formas sociais: a sociedade é um "objeto fictício", que só tem
uma realidade puramente ideológica e até verbal; cada forma social resume-se,
em última análise, numa pluralidade de relações, que formam uma combinação
considerada na vida corrente como -uma unidade. Von Wiese reconhece, contudo, que essas
formas sociais possuem uma eficiência, agem sobre a vida, e mostra que os
processos sociais são, por seu turno, influenciados por elas, o que dá lugar a
processos de "segunda ordem". Assim, se o social nos remete para o psíquico, inversamente o psíquico remete-nos para o
social: "Os processos sociais supõem motivações, que supõem, por sua vez,
fenômenos sociais. O psicólogo pode fazer derivar dos instintos os sentimentos
e os pensamentos: o que nos interessa, pelo contrário, é a extensão em que
todos esses sentimentos e representações dependem da organização da vida
social".
A vantagem desses estudos de
sociologia formalista foi manter a noção de um conjunto social a estudar como tal. Mas, separando o
estudo das formas
ou das rela ções sociais, do estudo do seu conteúdo,
a sociologia formalista chegou, por vezes, a um estudo puramente abstrato,
despojando os fenômenos sociais da sua realidade concreta e viva, e
contentando-se com classificações por vezes bem artificiais, arbitrárias e até um pouco escolásticas.
III. — A sociologia de Durkheim
Foi bem diversa, apesar de
certas concordâncias, a
concepção que da sociologia tiveram Durkheim e os seus continuadores.
Emile Durkheim (1858-1917)
criou em
França uma escola que teve o mérito, não só de acumular nos catorze volumes de l’Année Sociologique e tios dos Annales Sociologiques, que continuaram aqueles,
uma documentação extraordinariamente rica, mas também, e sobretudo, de fazer penetrar nos
espíritos a noção de uma ciência positiva e total dos fenômenos sociais. Ao
contrário da sociologia formalista, Durkheim
recusa-se,
com efeito, a separar a sociologia das ciências sociais especiais. Enquanto
permaneceram isoladas, a economia política, a demografia, a história do direito, a
história das religiões, etc, estavam ainda, como diria Augusto Comte, na "era da especialidade". Existia assim,
"por um lado, uma quantidade bastante incoerente de ciências ou de quase
ciências que, muito embora tendo o mesmo objeto, ignoravam o seu parentesco, a
uniformidade profunda dos fenômenos que estudavam e só vagamente lhes sentiam
a racionalidade; por outro, a sociologia, que tinha consciência dessa unidade,
mas que planava muito alto acima dos fatos para ter qualquer ação sobre a
maneira como eles eram estudados. A reforma mais urgente consistia, pois,
precisamente em
introduzir a idéia sociológica nessas técnicas especiais e, por essa forma,
transformá-las, fazendo delas ciências sociais. , Só nessas condições ela podia
deixar de ser uma metafísica abstrata, e os trabalhos dos especialistas, de
ser monografias sem ligação entre elas e sem valor explicativo".
É, portanto, o ponto de vista sociológico que fará a unidade de todas essas ciências
particulares, as quais quase deixarão de ser ciências autônomas para ser os
diferentes ramos de uma única ciência. Mas em que consistirá esse ponto de
vista? Notou-se, com razão, que o pensamento de Durkheim se modificou ligeiramente neste ponto. Sem dúvida, Durkheim sempre mais ou menos considerou os fenômenos sociais
como sendo de natureza mental. Todavia, na sua tese sobre a Division du Travail Social. (1893), esforçava-se,
sobretudo, por mostrar que esses fenômenos mentais,
próprios da vida coletiva, são produtos da estrutura social. Os espiritualistas,
escrevia êle, prestaram à ciência "o grande serviço… de combater todas
as doutrinas que reduzem a vida psíquica a uma simples eflorescencia da vida física". Mas, do fato de, em parte, a
primeira ser independente da segunda, "não se conclui que ela não depende
de nenhuma causa natural e que seja necessário colocá-la fora da
natureza".
"Do fato de haver uma
vasta região da consciência cuja gênese é ininteligível só pela psicofisiologia,
não se deve concluir que ela se formou sozinha e que, por conseguinte, é
refrataria à investigação científica, mas apenas que depende de uma outra
ciência positiva, a que poderemos chamar a sociopsicologia. Os fenômenos que constituiriam
a sua matéria são, com efeito, de natureza mista; têm 08 mesmos caracteres essenciais
que os outros fenômenos psíquicos, mas provêm de causas sociais… A maior
parte dos nossos estados de consciência… derivam, portanto, não da natureza
psicológica do homem em geral, mas da maneira pela qual os homens, depois de
associados, se afetam mutuamente, conforme são mais ou menos numerosos, ou
estão mais ou menos aproximados. Produtos da vida em grupo, só a natureza do
grupo pode explicá-los."
Voltaremos a tratar, no
capítulo VI, desta "morfologia social", destas noções de volume e de densidade dos grupos, pelas quais Durkheim pretendia explicar os fenômenos sociais. O ponto
essencial a notar, de momento, é que, Durkheim, nas suas primeiras obras,
punha fortemente em destaque esse "substrato" social, como êle lhe
chamava, que constituía, então, a seus olhos, a base de toda a vida
coletiva. É a mesma doutrina que voltamos a encontrar ainda nas Règles de la méthode
sociologique :
"Os
fenômenos de morfologia social ‘— lê-se nessa obra —- desempenham na vida
coletiva e, por conseguinte, nas explicações sociológicas, um papel preponderante".
Com efeito, desde que "a condição determinante dos fenômenos sociais
consiste no próprio fato da associação", é portanto na constituição do
meio social interno que se deve procurar "a origem principal de qualquer processo social de certa
importância". ‘
É justo reconhecer que Durkheim nunca renunciou totalmente a esta idéia. No entanto,
três razões deviam diminuir-lhe rapidamente a importância no seu espírito. Em
primeiro lugar, o caráter puramente mecanista dessa concepção. Como se explicam, segundo Durkheim, .as variações de densidade e de volume das
sociedades? Uma simples nota da Division du Travail Social responde a esta pergunta : os
tabiques que separam as diferentes partes da sociedade diminuem cada vez mais,
"pela força das circunstâncias, em virtude de uma espécie de usura
natural". Compreende-se que uma tal explicação rapidamente tenha parecido
insuficiente. — Durkheim só atribuía à vida econômica, considerada
como tal, na parte em que ela nada tem de psicológica, uma importância social
muito secundária. O econômico, a seus olhos, é o que se destina a satisfazer
as necessidades físicas; é uma coisa orgânica, portanto individual. Di-lo claramente nas Règles: "As relações puramente econômicas deixam os homens
fora uns dos outros". Voltará a repeti-lo em 1908 quando, na Société d’économie politique, se esforçou por demonstrar,
precisamente para os incluir na sociologia, que os fenômenos econômicos são
"coisas de opinião", isto é, de natureza psíquica. A não ser assim, diz êle,(‘"os
fenômenos de que trata a economia política e aqueles que são o objeto das
outras ciências sociais parecem de natureza muito diferente": as
realidades estudadas pelo economista não realidades "exteriores,
objetivas, quase físicas". E, em virtude disso, o econômico é o imóvel, é o estático: são "os objetos materiais
incorporados na sociedade" e "os produtos da atividade social
anterior" que o constituem. Ora, acrescenta êle, "é claro que não é
de uns nem de outros que pode vir o impulso que determina as transformações
sociais; porque eles não contêm qualquer força motriz".
Em segundo lugar, nunca se deve
esquecer que DURKHEIM,
ao mesmo
tempo que soci ólogo, quis ser filósofo: quis utilizar a sociologia na solução
dos problemas tradicionais da ética e da teoria do conhecimento; e não é sem
uma certa razão que R.
E. Lacombe, no estudo que consagrou ao seu m étodo sociológico, o
censura por não ter podido "libertar-se do metafísico". É bem conhecida, por outro lado,
a influência exercida por Renouvier
sobre o
pensamento de Durkheim. Assim se explica, em nossa
opini ão, que a sociologia de Durkheim
se tenha inclinado
cada vez mais no sentido idealista e que êle se tenha visto obrigado a insistir
cada vez mais sobre
as "representações coletivas".
Acrescentemos, finalmente, que Durkheim parece ter querido vincar fortemente as diferenças que
separavam a sua própria doutrina das concepções vizinhas, com as quais havia
quem a confundisse, e sobretudo do socialismo marxista. A introdução escrita
por Mauss para o curso de Durkheim (1895-1896), Socialisme, fornece-nos, a este, respeito, informações precisas. Durkheim, diz-nos Mauss,
"procurava
tomar partido e fundamentar esse partido. A isso o levava uma série
de acontecimentos, alguns pequenos e de caráter pessoal, outros mais graves.
Esbarrava com a censura de coletivismo que lhe fizeram, a propósito da sua Division du Travail, alguns moralistas suscetíveis e
vários economistas clássicos ou cristãos.. . Por outro lado, entre os seus
próprios alunos, alguns dos mais brilhantes tinham-se convertido ao socialismo,
mais especialmente ao marxismo". Por isso vemos Durkheín, ao dar notícia do aparecimento do livro de Labriola sobre a concepção materialista da histeria, La Conception materialiste de l’Histoire, na Revue Philosophique de dezembro de 1897, reagir
vigorosamente: "Julgamos fecunda — afirma êle aí — a idéia de que a vida
social deve explicar-se, não pela concepção que dela têm os que nela
participam, mas por causas profundas, que escapam à consciência; e pensamos
também que essas causas devem ser procuradas, principalmente, na maneira por
que estão agrupados os indivíduos associados. é mesmo, parece-nos, sob essa condição, e só nessa
condição, que a história pode vir a ser uma ciência e que a sociologia, por
conseqüência, pode existir. Porque, para que as representações coletivas sejam
inteligíveis, é necessário que provenham de qualquer coisa e, como não podem
formar um círculo fechado sobre si próprias, a fonte de onde derivam deve
encontrar-se fora delas. Ou a consciência coletiva flutua no vácuo, espécie de
absoluto irrepresentável, ou ela se liga ao resto do mundo por intermédio de um
substrato de que, por conseguinte, depende".
Mas Durkheim protesta contra a identificação desta concepção
objetiva da história com o materialismo histórico: "Essa confusão — escreve êle — é inteiramente destituída de
fundamento e é preciso acabar com ela. Não há qualquer solidariedade entre essas duas teorias, cujo valor
científico è singularmente desigual". Nem tudo depende do "estado da
técnica industrial", e "o fator econômico" não é a mola do progresso. É a
religião — e não a técnica
— que é "o mais primitivo de todos os fenômnenos sociais… No princípio, tudo é
religioso. Ora,
nós não
conhecemos nenhum meio de reduzir a religião à economia, nem qualquer tentativa para operar
realmente essa redução". Finalmente DurkHEIm,
que assimila o materialismo histórico ao «pilcnomismo psicofisiológico, objeta que as
representações coletivas, "uma vez
constituídas, são, por isso
mesmo,
realidades sui
generis, aut ônomas,
capazes de ser causas por sua vez e de produzir novos fenômenos". — Volta
a insistir nas suas Formes elementaires de la vie religieuse: "Devemos evitar — precisa
êle — ver nessa teoria da religião (que afirma que o ideal nasce da vida
coletiva) um simples rejuvenescimento do materialismo histórico: seria desconhecer completamente o
nosso pensamento. Apresentando a religião como uma coisa
essencialmente social, não pretendemos, por forma alguma, dizer que ela se
limita a traduzir, numa linguagem diferente, as formas materiais da sociedade i as suas necessidades vitais imediatas… A consciência
coletiva é mais que um simples epifenómeno da sua base morfológica, precisamente como a consciência
individual é mais que uma simples eflorescencia do sistema nervoso".
Já em 1897,
no seu
livro sobre Le
Suicide, Durkheim tinha afirmado que a vida social "é essencialmente
feita de representações", Mas é sobretudo a partir do célebre artigo de 1898 sobre as representações coletivas (Représentations collectives), que essa doutrina vai afirmar-se.
Nesse artigo já êle restringia a importância da morfologia social, e já afirmava que A desde que se constituiu um primeiro fundo de
representações, elas tornam-se realidades parcialmente autônomas, que vivem uma
vida própria" e que, por conseqüência, "têm como causas próximas
outras representações coletivas, e não um ou outro caráter da estrutura social’
Disso concluía êle que a vida social se define por "uma hiper-cspiritualidade", e que "a psicologia
coletiva é toda
a
sociologia". Este espiritualismo sociológico manifesta-se mais nitidamente ainda na
comunicação de 1911 ao Congresso de Bolonha, sobre
os Jugements de valeur: "Diminui-se a sociedade
quando apenas se vê nela um corpo organizado tendo em vista certas funções
vitais. Nesse corpo vive uma alma: é o conjunto dos ideais coletivos’/’ De futuro,
as "representações coletivas" vão explicar tudo, e, no capítulo do
livro De la Méthode dans les Sciences, consagrado à Sociologia, Durkheim não receia afirmar que /’o salário dos operários
depende de certas condições morais", e que "sobe ou desce conforme a
idéia que formamos do bem-estar que pode reivindicar um ser humano, isto é, no
fim de contas, conforme a idéia que tivermos da pessoa humana". V
Todavia, mesmo reduzindo assim os
fenômenos sociais aos fenômenos psíquicos, Durkheim mantém a afirmação da especificidade do social. Já nas
Régies
êle
escrevia: "A sociedade não é uma simples soma de indivíduos, mas o
sistema formado pela sua associação representa uma realidade específica que tem
os seus caracteres próprios. É inegável que não se pode produzir nada de
coletivo sem utilizar as consciências particulares; mas esta condição necessária
não é suficiente. é
ainda
necessário que essas consciências estejam
associadas, combinadas, e combinadas de uma certa
maneira; é dessa combinação que resulta a vida social e,
por conseguinte, é essa combinação que a explica. Agregando-se, pe-netrando-se,
fundindo-se, as almas individuais dão nascimento a um ser, psíquico se
quiserem, mas que constitui uma individualidade psíquica dum novo gênero. . .O grupo pensa, sente e age
de maneira muito diversa do que fariam os seus membros se estivessem isolados.
Portanto, se partirmos destes últimos, nada poderemos compreender do que se passa no grupo. Numa palavra, entre a
psicologia e a sociologia, há a mesma solução de continuidade que existe entre
a biologia e as ciências físico-químicas**.]
É neste sentido que "se
pode e deve falar de uma consciência coletiva, distinta
das consciências individuais". Ela constitui uma síntese original em relação a estas, precisamente como a
célula viva é unia síntese original em face dos átomos de carbô-nio, de azôto, de oxigênio e de
hidrogênio que a compõem. O artigo sobre as Représentations collectives reproduz a mesma idéia:
"As representações coletivas,
produzidas pelas ações e reações trocadas entre as consciências elementares de que
é feita a sociedade, não derivam diretamente destas últimas e, por
conseguinte, ultrapassam-nas". E é assim "o agregado na sua totalidade", que
"pensa, sente e quer, ainda que
só possa querer, sentir ou agir por intermédio das consciências particulares".
Examinaremos mais longe o valor
deste ponto de vista. Seja qual fôr, na nossa opinião, a sua insuficiência, nem por isso deixou de permitir
que a escola de Durkheim
apresentasse
os problemas no terreno propriamente sociológico e estabelecesse um vasto
programa de investigações sociológicas que, em parte, ela própria realizou.
No seu artigo de 1909, Durkheim resumia esse programa no
seguinte quadro:
- Morfologia social: Estudo da base geográfica dos
povos, nas suas relações com a organização social. Estudo da população, seu
volume, sua densidade, sua disposição sobre o solo. - Fisiologia social: Sociologia religiosa moral
jurídica econômica lingüística estética - Sociologia geral.
Tratava-se de um simples quadro
de estudos, que, naturalmente, se ampliou e enriqueceu com o tempo. Basta
consultar os diferentes volumes de L’Année Sociologique para se ter a sensação dêsse enriquecimento. A fim de darmos uma idéia do desenvolvimento
atingido, vamos, simplesmente, transcrever os títulos dos capítulos da parte
bibliográfica do tomo I
da nova
série (1925) :
- I. — Sociologia geral: 1.° — Filosofia social; 2.° — Psicologia e Sociologia; 3.°’— História das
doutrinas; 4.° — Metodologia; 5.°
—
Civilizações; 6.° — Raça e Sociedade. - II. — Sociologia religiosa: 1.° — Filosofia e psicologia religiosa; 2.° — Sistemas religiosos das sociedades inferiores
(totêmicas, de totemismo evoluído, de tribos) ; 3.° — Sistemas religiosos nacionais;
4. ° — Sistemas religiosos universalistas; 5.° Sistemas religiosos dos grupos
secundários (sei-tas) ; 6.° — Cultos especiais; 7.° — Crenças e práticas
populares; 8.° — Crenças e atos referentes aos mortos; 9.° — Magia; 10.° —
Ritual; 11.° — Mitos, lendas e contos, dogmas; 12.° — Organização religiosa. - III. — Sociologia moral e jurídica: 1.° — Di
reito e Moral; 2.° — Sistemas jurídicos e morais; 3° — Organização doméstica e matrimonial (famí lia, casamento, condição da mulher, moral sexual) ;
4.° — Organização dos grupos
secundários; 5.°— Organização política (o Estado, tipos de organização
pol ítica) ;
6.° — Direito de propriedade, direito contratual; 7.° — Direito penal; 8.° — Organização judiciária, processo; 9.° — Direito internacio
nal; moral internacional. - IV. — Sociologia criminal e
estatística moral: 1° — Criminalidade em geral; 2.° — Criminalidade segundo
os países, as condições econômicas, as confissões religiosas, a idade e o
sexo; 3.° — Formas diversas da criminalidade e da moralidade; 4.° — Sistema
repressivo. - V. — Sociologia econômica: 1.° — Estudos gerais; 2.° — Sistemas econômicos (na
sua constituição); 3.° — Funcionamento do sistema econômico; 4° — Espécies da produção; 5.° — Regimes da produção;
6.° — Formas da produção; 7.° — Classes econômicas; 8.° — Instituições da
repartição; 9.° — Morfologia da repartição; 10.° —
Funcionamento da repartição; 11.° — Relações entre os fenômenos econômicos e
outras ordens de fenômenos. - VI.
— Morfologia social: 1.° — Bases geográficas da
vida social ; 2.° — A população em geral ; 3.° — Movimentos migratórios ; 4.° —
Agrupamentos urbanos e rurais; 5.° — Geografia econômica. - VII.
— Diversos: 1.° — Língua e escrita; 2.° —
Tecnologia ; 3.° — Estética.
É claro que, como observaram Mauss, no tomo II da nova L’Année Sociologique (1927), e Faucon-net, numa comunicação ao Institut Français de Sociologie
(9 de dezembro de 1931), esta classificação está sujeita a muitas reservas. Nem a morfologia social nem a sociologia geral
estão no seu lugar. A tecnologia está reduzida a fazer figura de parente pobre.
E como observou Bouglé, talvez também fosse conveniente
reservar à sociologia
política, incluída na sociologia jurídica, uma rubrica especial.
No entanto, tal como é, esse
programa de investigações serviu de quadro a uma infinidade de trabalhos,
entre os quais devemos salientar a bela obra de Lucien Lévy-Brüll
sobre a mentalidade primitiva e a participação.
Dubkheim soube reunir à sua volta uma plêiade de estudiosos que, apesar de cruelmente dizimada pela
guerra, deu e continua a dar uma importante contribuição para a edificação de
uma sociologia positiva. E por outro lado, especialmente em França, se a noção
de uma ciência social distinta e, por conseguinte, a da especificidade dos
fenômenos sociais acabaram por se fazer aceitar, isso deve-se principalmente à escola de Durkheim.
IV. — a sociologia marxista
Bem diversa foi a contribuição da sociologia marxista, e seria inútil
procurar nela
a
mesma riqueza de informação que encontramos
nos trabalhos
da
escola de Durkheim.
Karl Marx foi, principal-mente, um homem de ação. Mas nunca separou a ação da teoria, da investigação científica, e essa investigação leva nele, precisamente, a
urna concepção
dos
caracteres e da natureza dos fenômenos sociais que foi desenvolvida tanto
pelo seu fiel colaborador Frederico Engels, como pelos seus discípulos ulteriores — é por isso que dela tratamos em último lugar — e que nos parece interessante para o sociólogo.
É evidente que não se trata de estudar aqui o marxismo como uma doutrina rígida, como uma
espécie de dogma, coisas de que, por vezes, tem sido acusado de
ser. Um desvio dessa natureza seria absolutamente contrário ao próprio
espírito da doutrina: já recordamos como, no seu Anti-Dühring, ENGELS criticava a pretensão de estabelecer, fosse em que ordem fosse,
verdades imutáveis; numa carta de 2
de
agosto de 1890, dirigida a Conrad Schmidt, escrevia êle ainda mais
explicitamente:
A nossa concepção da história é, sobretudo, uma
diretiva para o estudo… É
necessário estudar novamente toda a
história, é preciso submeter a uma investigação detalhada as condições de existência das
diversas formações sociais antes de tentar deduzir delas os modos de concepção políticos, jurídicos, estéticos,
filosóficos, religiosos, etc., que lhes correspondem.
A este respeito, pouco se
tem feito at é hoje, porque muito poucas pessoas se têm dedicado verdadeiramente
a isso. Sobre esta matéria, necessitamos de uma ajuda em massa; o campo
de tra balho é infinitamente vasto, e quem quiser traba lhar com vontade pode fazer
muito e distinguir-se nele".
Censurou-se também o marxismo
por ter empregado, arrastado por um sistema preconcebido, um método puramente
dedutivo, partindo de alguns princípios abstratos e só depois recorrendo aos
fatos. Maurice Bourguin parece-nos ter visto melhor a verdade quando escreveu (Revue d’économie politique, 1893, p. 199) : "Olhando
apenas ao processo de investigação e de raciocínio, temos de reconhecer que o
método seguido por Marx
é,
efetivamente, o método histórico. Isso não se vê, à primeira vista, no Capital, porque é a crítica da sociedade
capitalista que nele ocupa o maior lugar e porque essa crítica está exposta sob
a forma de análise e de silogismo. Mas, fora da dialética, rigorosamente
aplicada aò estudo do regime econômico moderno, a concepção marxista das formas
sucessivas de organização social é um produto autêntico do método histórico e
indutivo". Os métodos empregados hoje em dia pela sociologia positiva
foram praticados por Marx
e Engels tanto quanto lhes permitiam os dados de seu tempo. N ão
só o método histórico-comparativo, mas também o método estatístico se encontram
largamente utilizados no Capital; Engels
recorreu ao
m étodo etnográfico no seu estudo sobre a Origem da Família, da propriedade
privada e do Estado (L’Ori gine de la Famille, de la Propriété privée et de l’État).
Dito isto, observemos que o
marxismo trazia à apresentação dos problemas sociológicos um elemento
essencial, que nos interessa particularmente aqui: a afirmação da especificidade do social, que em Marx se exprime na fórmula famosa: "Não é a consciência do homem que determina a sua
existência, mas, pelo contrário, é a sua existência social que de termina
a sua consciência"./ Como judiciosamente observou Auguste Cornu, numa tese recente, é esse ponto de vista sociológico que, desde
o início, separa Marx
e Engels dos Jovens Hegelianos: "Em vez do fazer do
indivíduo, do Eu, o elemento essencial do progresso, consideravam a massa, o
proletariado — ao qual atribuíam o papel ativo da antítese, da negação
hegeliana —, como o fator determinante da evolução social". é bem sabido como Marx criticou as "robinsonadas" dos
economistas clássicos. No Capital, mostra que a produção, a troca, a mercado ria, são coisas essencialmente
sociais. No fim do capítulo I, denuncia "a ilusão
produzida sobre a maior parte dos economistas pela aparência material dos atributos sociais do trabalho" e troça da
economia política cujo "primeiro dogma" é que "as coisas, os
instrumentos de trabalho, por exemplo, são, por natureza, capital, e pretendendo
despojá-los do seu caráter puramente social, comete-se um crime de
lesa-natureza" Por diversas vezes, repete que: "O homem, no sentido
mais literal, é um zôon politikon, não somente um animal sociável, mas também um animal que só pode isolar-se na
sociedade. A produção de indivíduos
isolados, fora da sociedade, é uma coisa tão louca como o
desenvolvimento da língua sem indivíduos que vivam e falem
uns com os outros".^
O mesmo ponto de vista
sociológico volta a aparecer quando Marx repudia as interpretações "artificialistas", segundo as quais
os fenômenos sociais resultariam de puras convenções entre os indivíduos, Na Misère de la Philosophie observa que, nos diferentes
regimes econômicos, a divisão do trabalho obedece a certas regras, mas, acrescenta,
"foram essas regras estabelecidas por um legislador? Não: nascidas,
primitivamente, das condições da produção material, só muito mais tarde foram
erigidas em leis". A propósito da moeda, notará também no Capital que, desde que só
vejamos nos caracteres sociais que revestem as coisas "simples
sinais", era-prestamos-lhe o sentido de "ficções convencionais"
e voltamos ao "modo de explicação em voga no século XVIII".
De resto, uma das idéias fundamentais do método
"dialético",
pedido
a Hegel, é que a síntese ultrapassa, embora conservando-as- e resolvendo a sua oposição, a tese e
a antítese. NoNseu artigo Marxism et Sociologie, Bouglé pôde mostrar como esse método permitiu que Marx salvaguardasse o princípio de qualquer
explicação propriamente sociológica, afirmando que "o todo social é
uma coisa diferente da soma das suas partes" Marx utiliza assim o axioma hegeliano segundo o qual
uma mudança quantitativa, chegada a um certo grau, provoca uma modificação
qualitativa, para mostrar no Capital como "a produção capitalista só começa a estabelecer-se onde um só patrão
explora muitos assalariados ao mesmo tempo" mesmo se se ficar na
"simples cooperação", sem divisão do trabalho, produz-se uma transformação nas
condições do trabalho pelo simples fato do aumento do número de operários;
disso resultam, não só uma economia nos meios de produção, mas também certas conseqüências psíquicas, tais como
"uma emulação que eleva a capacidade individual de execução".
Mas, dir-se-á, essa
sociologia, pois que de sociologia se trata, não estará também subordinada a
uma "filosofia da história" sistemática, unilateral, que não é mais que o materialismo histórico ? Não afirma este que as
"relações de produção" que cons tituem a organização econômica da
sociedade são "a base real sobre a qual se eleva a superestrutura" jurídica, política, intelectual
(ideológica), e que elas próprias correspondem ao desenvolvimento das "forças
rodutivas", de forma que, no fim de contas, se gundo as próprias
expressões de Marx,
"o modo de produção da vida material condiciona a evolução da vida social,
política e intelectual no seu conjunto"? A "sociologia" marxista
não implica desta maneira: 1°,. um economismo exclusivo que nega a ação de todos os outros fatores da
vida social; 2.°, especialmente, o desconhecimento do papel dos fatores psicológicos ou ideológicos, reduzidos a simples epifenômenos sem eficácia; 3.°, um fatalismo, em virtude do qual os fatores
econômicos determinam, mecanicamente, a evolução social, com exclusão de
qualquer Intervenção da vontade humana?
Em nossa opinião, estamos em
face de um tríplice erro de interpretação, ao qual certas fórmulas, amplificadas e
exageradas propositadamente com um fim de polêmica, deram lugar, mas
contra o qual Marx, Engels e os seus discípulos, por
várias vezes, protestaram.
1.° Sobre o primeiro ponto, Engels explica-se com toda a clareza numa carta de 21 de
setembro de
1890,
dirigida a Joseph
Bloch:
"Segundo
a concepção materialista da história, o fator que, em últi ma instância, é determinante na história é a
pro-dução e a reprodução da vida real.
Nem Marx, nem ou afirmamos mais do que isso. Mas, se nos fazem dizer que
o fator econômico é o único determinante, então, a primeira proposição
transforma-se numa frase ôca, abstrata e absurda. A situação econômica é a
base, mas os diferentes fatores da superestrutura — formas políticas da luta das
classes e seus resultados: constituições estabelecidas, após a vitória, pela
classe vitoriosa, etc; formas jurídicas; e também, bem entendido, os reflexos
de todas essas lutas reais no cérebro dos que nelas participam, teorias
políticas, jurídicas, filosóficas, instituições religiosas e seus ulteriores desenvolvimentos em sistemas
dogmáticos, — exercem, igualmente, a sua influência sobre o curso das lutas
históricas e determinam-lhes, em muitos casos, as formas de maneira
preponderante. Há ação e reação de todos esses fatores".
Esta noção da ação recíproca (Wechselwirkung), que já se encontra indicada no
manuscrito redigido em comum por Marx e Engels, em 1845-1846, l’Idéologie allemande, é indispensável à inteligência da doutrina:
"Tudo o que até agora se tem dito — escreve Plekhanov — acerca do pretenso caráter unilateral do marxismo,
provém, simplesmente, da incompreensão do papel que Marx e Engels reservam à ação e à reação recíprocas entre a base e a superestrutura". Engels precisa, numa carta escrita a Mehring em 14 de julho de 1893, que esse erro nasceu de uma
"concepção banal, não dialética, da causa e do efeito". Já no Anti-Dühring êle explicara que, enquanto
para o metafísico, "causa e efeito se opõem em antítese rígida", sob
o ponto de vista dialético, pelo contrário, "causa e efeito são idéias que
só valem como tais quando aplicadas a um caso particular na sua conexão geral
com o conjunto do universo; causa e efeito confundem-se, resolvem-se na
concepção de ação e de reação universais em que causas e efeitos andam em
contínuo movimento, tornando-se além ou num outro momento cansa o que aqui
ou agora é efeito, e vice-versa". Longe, portanto, de censurar ao marxismo
uma espécie de economismo exclusivo, é conveniente inscrever no seu ativo
esta noção da ação recíproca, das interações causais, como uma contribuição, de
que mais tarde mostraremos toda a importância, para o aparecimento de uma
sociologia científica.
De resto, quando, na realidade,
se trata de casos concretos, Marx tem sempre em conta a multiplicidade dos fatores e todo o complexus causal, No Manifeste communiste no Dix-huit brumaire de L. N. Bonaparte, põe em relevo as lutas e
acontecimentos políticos e o papel do Estado. No livro I do Capital mostra, a propósito do "dia de trabalho", a
ação decisiva da legislação, "que é bem, observa Engels, um ato político", e é a fatores da mesma ordem
que êle recorre, com freqüência, nos capítulos do mesmo livro sobre a história da
burguesia. Finalmente, no livro III,
chega até a
escrever : "É na relação direta entre o proprietário dos meios de produção
e o produtor imediato que encontramos, em da caso, o segredo íntimo, a base
oculta de toda a construção social… O que não impede que a mesma base econômica, pelo menos nas suas
linhas essen ciais, possa apresentar, na realidade, infinitas variações, devidas a circunstâncias
empíricas inumeráveis, às condições naturais, relações de raças, influências
históricas, etc, que só podem ser compreendidas pela análise dessas
circunstâncias empíricas".
Vemos igualmente Plekhanov criticar como "demasiadamente unilateral" a
tese, sustentada por ESPINAS,
segundo a
qual "a ideologia" dos gregos (religião e filosofia) teria sido
diretamente determinada pela sua "tecnologia". Esta explicação, diz
êle, só serve para as sociedades primitivas, isto é, para as sociedades sem
classes. Inversamente, "procurai dar uma explicação econômica direta da escola de David na pintura francesa do século XVIII, e chegareis a um resultado que não passará
de um contra-senso ridículo e fastidioso. Mas considerai essa escola como o
reflexo ideológico da luta de classes que se desenvolvia no seio da sociedade
francesa nas vésperas da grande Revolução, e, imediatamente, a questão mudará
totalmente de aspecto".
O marxismo não se baseia, por
forma alguma, numa concepção unilateral da vida social. Trata-se apenas, como
diz Engels, de uma hipótese de trabalho,
de um "fio condutor", graças ao qual, através das múltiplas ações e
reações recíprocas dos diversos elementos, a análise distingue um fator, não somente ativo, mas primordial,
fundamental e, "em última instância", determinante: o fator
econômico, e, especialmente, o desenvolvimento das forças produtivas.
2.° Igualmente se errou acerca
do papel que o materialismo histórico concede aos fatores psíquicos, àquilo a que
êle chama "a ideologia". Ora lhe atribuíram a afirmação de que esta
não passa de um fator sem interesse, ou seja um epifenômeno sem eficácia. Ora lhe
atribuíram uma psicologia acanhada, reduzindo todos os móbeis humanos ao "primado dos
interesses materiais", segundo a expressão de Bouglé e Raffault
nos seus Eléments de Sociologie.
Na realidade, nem Marx nem Engels
negaram a eficácia
das idéias, o que, de resto, teria sido uma singular inconsequência da parte de autores que tanto
escreveram! Sob o ponto de vista "dialético", pelo contrário, — e isto já está indicado
na L’Idéologie
allemande
— "o
conhecimento do desenvolvimento do mundo pelo espírito humano leva a um novo
grau de desenvolvimento, aquele em que o homem transforma o mundo para seu uso, em que o
mundo se humaniza e se racionaliza" (René Maublanc). No Manifeste communiste, Marx e Engels insistem sobre a necessidade "de despertar entre os operários a consciência, o mais clara possível, da
oposição que existe entre a burguesia e o proletariado": para
que serviria isso, se a consciência fosse apenas um "epi-fenômeno"? No Capital, Marx, em vez de desprezar os fatores psicológicos, antecipa-se a Max Weber acerca das afinidades da Reforma e do espírito
protestante com o desenvolvimento do capitalismo. Roma, portanto, em conta até
essas interações
entre
fenômenos econômicos e fenômenos religiosos, que René Maunier
também
assiná-la no seu livro L’économie politique et la Sociologie. No Anti-Dühring, Engels mostra que a idéia de igualdade, apesar de ser "um produto
histórico", desempenha e continua a desempenhar um papel muito importante, tanto
sob o
ponto
de vista teórico como sob o ponto de vista prático. No seu Feuerbach, define nos termos seguintes
o papel da ideologia: "Qualquer ideologia, logo que se constitui,
evolui em estreita união com o respectivo fundo de representações, e desenvolve-o. De outra maneira, não
seria uma ideologia, quer dizer, uma operação que consiste em tratar pensa
mentos como realidades autônomas, evoluindo de forma independente e
submetidas unicamente às suas próprias leis. As
condições materiais de exis tência dos homens, no cérebro dos quais se realiza essa evolução de
pensamentos, determinam, por fim, o curso dessa evolução; mas esse fato é, necessariamente,
ignorado por êle; se assim não fosse, acabariam todas as ideologias".
Mais, ainda, o materialismo histórico reconhece, até certo
ponto, à ideologia o poder de se desenvolver, partindo de um fundo de idéias
determinado, segundo as suas próprias leis. Não somente a ideologia, escreve Engels, "reage por sua vez sobre a base econômica",
mas, especialmente no que diz respeito ao direito, "acontece raramente
que um código seja a expressão brutal, intransigente, autêntica, do domínio de
uma classe: não seria isso mesmo contrário à noção de direito?. . . É por essa
razão que o curso do "desenvolvimento do direito" consiste, em grande
parte e em primeiro lugar, na tentativa de eliminar as contradições resultantes
da tradução direta de relações econômicas em princípios jurídicos, para
estabelecer um sistema jurídico harmonioso". Por maioria de razões, o
mesmo diremos das "regiões ideológicas que planam ainda mais alto", e
é por isso que, acrescenta Engels. "certos países,
economicamente retardatários, podem, no entanto, ocupar o primeiro lugar na filosofia".
Encontramos o mesmo ponto de
vista em dois intérpretes mais recentes do marxismo. G. Plekhanov observa que a maior parte dos "usos e convenções" da
"boa sociedade" se não explicam diretamente pelo estado das forças
produtoras, mas sim pela psicologia de uma classe não produtora, e que, por conseguinte, "o
fator econômico cede, neste ponto, o lugar ao fator psicológico". N. Boukharine declara que "é uma afirmação sem fundamento dizer
que a teoria do materialismo histórico se recusa a atribuir qualquer importância às superestruturas em geral e à ideologia em
particular". Ainda, segundo BOUKHARINE, a ideologia não passa da cristalização, num sistema de
pensamentos, sentimentos ou regras de conduta, de uma psicologia social; por exemplo, logo que nasceu o
movimento operário, o proletariado teve o sentimento da injustiça do regime;
capitalista. Mas tudo isso era ainda confuso, mal determinado; pouco a pouco,
no entanto, esse sentimento vago dá origem a fórmulas claras e coe rentes, a um
sistema de reivindicações, a um "programa", a um "ideal";
a partir desse momento, ficou constituída a ideologia da classe operária.
O marxismo acentuou fortemente
o caráter coletivo
dessas superestruturas ideológicas, e adiante veremos
que Boukharine não hesita em dar, exatamente como Durkheim, um lugar à noção de "consciência coletiva". No Dix-huit brumaire de E. N. Bonaparte, Marx precisa que todas essas superestruturas "de impressões, de
ilusões, de maneiras de pensar, de concepções da vida", que se devam
sobre a base das condições sociais de existência, "é a classe inteira que
as cria e lhes dá forma". Engels
escreve
igualmente no seu Feuerbach: "Se se trata de procurar as forças motrizes que —
consciente ou inconsciente, e, em boa verdade, muitas vezes, inconscientemente
— se encontram por trás dos móbeis da ação histórica dos homens e que, de fato, constituem
as verdadeiras forças motrizes da história, não se podem ter em atenção os motivos individuais, por mais eminentes
que sejam, mas sim os que põem em movimento grandes massas, povos inteiros e,
em cada povo, classes inteiras da população".
Por outro lado,
essa ideologia coletiva implica fenômenos psicológicos complexos, graças aos
quais a realidade, que ela tem a obrigação de traduzir, se encontra
transformada, idealizada, sublimada, em resumo: desfigurada. Por conseguinte,
que ela não se reduz ao "primado dos interesses materiais", e leva,
segundo a linguagem marxista, a representações "fantásticas", é
ainda uma das idéias fundamentais da doutrina e, ao mesmo tempo, uma idéia
essencialmente sociológica. Sem dúvida — escreve Engels — "na história da sociedade, os fatores atuantes
são, exclusivamente, os homens dotados de consciência", e assim "nada
se produz sem um fim consciente, desejado"; mas, por outro lado, "as
inúmeras vontades individuais que atuam na história dão, na maior parte das
vezes, resultados bem diferentes dos que se esperavam, muitas vezes até resultados
absolutamente opostos". Mas é sobretudo Marx quem, mostrando, no Capital, o "caráter fetichista da mercadoria" (quer
dizer, essa "fantasmagoria que faz aparecer o caráter
social do trabalho como um caráter das coisas e dos próprios produtos")
faz, sobre as representações coletivas, considerações que qualquer discípulo
de Durkheim não se recusaria a subscrever :
"A forma valor e a relação do valor dos produtos do trabalho nada têm que
ver com a sua natureza física, unicamente uma determinada relação social dos
homens entre si é que reveste aqui, para eles, a forma fantástica de uma
relação de coisas entre elas. Para encontrar uma analogia a esse fenômeno,
temos de ir procurá-la às regiões nebulosas do mundo religioso. Aí, os produtos
do cérebro humano têm o aspecto de seres independentes, dotados de corpos
especiais, em comunicação com os homens e entre eles. O mesmo sucede com os
produtos da mão do homem, no mundo do comércio. É aquilo a que podemos
chamar o fetichismo ligado aos produtos do trabalho, desde que se apresentam como
mercadorias"
O materialismo histórico não ignora, portanto,
o lado psicológico e ideológico da
vida social. Recusa-se, apenas, a ver nele o fator fundamental, e, sobretudo, a
tradução fiel da realidade sociológica. Implica, na expressão de Masaryk, um ilusionismo, isto é, uma concepção segundo a qual "os fins conscientemente procurados pelos indivíduos
não são as causas suficientes da evolução
social". Ora, esta concepção, longe de excluí-lo das doutrinas sociológicas, como alguns julgaram,
constitui, pelo contrário, como mostraremos adiante, um dos postulados
Indispensáveis de uma sociologia verdadeiramente objetiva. Não vimos já que o
próprio Durkheim, no seu artigo sobre Labriola, declara "fecunda" a idéia de "que a vida
social deve explicar-se, não pela concepção que dela formam os que nela
participam, mas por
causas profundas que escapam à consciência"? "Que, de resto, —
escreve também BouglÉ
— as razões que o homem arranja para
explicar a sua conduta raramente exprimem as verdadeiras causas das
instituições, é um ponto sobre que chegariam a acordo a maior parte dos
sociólogos. Contra os historiadores historizantes, mantêm eles que a desconfiança
a respeito dos motivos confessados, ain de que estejam explicitamente
formulados em vinte documentos, é uma precaução de método que se im põe". Ainda aqui, o marxismo está,
portanto, inteiramente na linha da sociologia científica.
3.° Finalmente,
é inexato, apesar de certas imprecisões de terminologia, que o marxismo se baseie numa concepção fatalista da evolução social. Bem pelo
contrário, êle é, sobretudo, uma "filosofia da ação", como dirá Engels, em 1892, recordando a frase do Fausto de Goethe: ‘Os
homens agem
antes de argumentar. No princípio, era a ação. E a ação humana resolveu a dificuldade, muito antes de a
sutileza humana a ter descoberto". Mas era já este o ponto de vista
central das teses de Marx
a respeito
de Feuerbach (1845) ; a praxis, a atividade humana como ação
real, concreta, sobre a natureza, era a sua idéia fundamental, e Marx, criticando o velho materialismo "segundo o qual os homens
são os produtos das circunstâncias e da educação", censura-o,
precisamente por esquecer "que as circunstâncias são, justamente,
transformadas pelos homens e que o próprio educador tem, necessariamente, de
ser educado". Em La Sainte Famille, objetava aos que nela
personificam a história: "A história nada faz. É o homem, o
homem real, o homem vivo, que faz, que possui, que combate; não é a história
que utiliza o homem para realizar os seus fins, como se fosse uma pessoa
independente; ela não é nada, nada mais que a atividade do homem procurando
atingir os seus fins".
Sem dúvida, o campo de ação do
homem é limitado pelas condições em que essa ação se exerce: "Os homens
fazem sua própria história; não a fazem, contudo, arbitrariamente, em
condições escolhidas por eles, mas sim em condições diretamente dadas e
herdadas do passado" Mas, nesse determinismo que, segundo o marxismo, se
reduz, em última análise, à ação dos fatores econômicos e, especialmente, das
forças produtoras, não se deve ver, como observa R. Mondolfo, qualquer fatalismo: "O próprio homem — escreve
Marx nas suas Théories de la plus-value — é a base da sua produção material". Se a economia acaba, por vezes, por dominar a atividade humana, se há, então, "rebelião das forças produtoras" contra o homem, essa economia, essas forças produtoras, são já, por
sua vez, um produto da atividade humana; é, na imagem famosa, o aprendiz de feiticeiro
impotente para dominar as forças que a sua própria ação pôs em movimento. E
assim — como observa Labriola
—’"a
dependência
em que o
homem se encontra em relação às circunstâncias não passa, no fundo, da sua
dependência
em relação
a si mesmo".
Ainda neste ponto, os
intérpretes mais recentes estão de acordo. D. RIAZANOV, antigo diretor do Instituto
Marx-Engels, mostrando como Marx fêz da filosofia puramente contemplativa de Feuerbach uma doutrina de ação e de transformação social, escreve:
"Segundo Feuerbach, o homem é, apenas, um
elemento passivo que registra docilmente todos os impulsos que recebe da
natureza. A esta afirmação, opôs Marx uma outra: tudo o que se passa no homem, todas as modificações do homem
em si, são o
resultado
não só cia ação da natureza sobre êle, mas ainda, numa mais larga escala, da
sua própria ação sobre a natureza. . . Êle próprio atua sobre a natureza e, transformando-a,
transforma as condimos da sua existência e, ao mesmo tempo, transforma-se a
si mesmo". Eis-nos bem longe do fatalismo! É o que afirma também Boukharine: "O determinismo social — escreve
êle a propósito do materialismo histórico — não deve confundir-se com o fatalismo. O fatalismo é a crença num destino cego e inevitável… Ao
contrário do determinismo, essa doutrina nega a vontade humana como fator da
evolução".
Vê-se- agora como, no decurso
da sua história, a sociologia chegou a compreender que, para se apresentar como
ciência objetiva e autônoma dos fenômenos sociais, não precisa de desprezar
nenhum dos elementos propriamente humanos da realidade social. Partindo de um
ponto de vista puramente normativo, só pouco a pouco chegou a compreender o
determinismo que lhe é próprio. Primeiro, procurou-o fora do homem, em vagas
analogias com os fenômenos biológicos, depois, como reação, em fatores
subjetivos que só salvaguardavam o seu caráter de "ciência do homem"
arruinando a especificidade do seu objeto. Começamos agora a entrever que
essa especificidade pode ser respeitada, que o determinismo sociológico pode
ser afirmado, sem que para isso seja necessário desconhecer o papel dos fatores
psíquicos ou "ideológicos", e sem cair num fatalismo teórica e praticamente
inaceitável.
Fonte: Editorial Andes.
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