PEDRO, O GRANDE (czar da Rússia) – por Voltaire

"HISTÓRIA DE CARLOS XII, Rei da Suécia"

PEDRO, O GRANDE

Autor: VOLTAIRE

Veja também: História da Suécia no século XVI.

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Pedro Alexiowitz recebera uma educação que tendia a aumentar ainda mais a barbaria dessa parte do mundo. Seu temperamento levou-o a apreciar os estrangeiros, antes de saber a que ponto eles lhe poderiam ser úteis. Le Fort1 foi o primeiro instrumento de que se serviu para transformar a face da Moscóvia. Seu génio dominador, que uma educação bárbara moderara, mas não pudera destruir, desenvolveu-se quase de repente. O czar resolvera ser homem, comandar homens e criar uma nação nova. Vários príncipes tinham, antes dele, renunciado à coroa por desgosto, pelo peso das responsabilidades; mas nenhum havia deixado de ser rei para aprender melhor a reinar: foi o que fez Pedro, o Grande.

Deixou a Rússia em 1698 2, não havendo ainda reinado senão dois anos, e dirigiu-se para a Holanda, disfarçado sob um nome vulgar, como criado desse mesmo Le Fort, por ele enviado na qualidade de embaixador extraordinário junto aos Estados Gerais3. Chegando a Amsterdão, inscreveu-se na lista dos carpinteiros do Almirantado das índias e pôs-se a trabalhar nos estaleiros, com os outros carpinteiros. Nos intervalos do trabalho aprendia as partes da matemática que podiam ser úteis a um príncipe, às fortificações, à navegação, à arte de levantar planos. Entrava nas oficinas dos operários, examinando todas as manufacturas; nada lhe escapava à observação. Dali passou para a Inglaterra, onde se aperfeiçoou na ciência da construção de navios; retornou à Holanda, procurando ver tudo que poderia trazer vantagem ao seu país. Finalmente, depois de dois anos de viagem e de trabalho, a que nenhum homem senão ele ter-se-ia submetido, reapareceu na Rússia, trazendo consigo as artes da Europa. Artífices de toda espécie seguiram-no em bandos. Viram-se pela primeira vez grandes navios russos no mar do Norte, no Báltico e no Oceano4. Construções de arquitectura regular e nobre ergueram-se no meio das cabanas moscovitas. O czar instalou colégios, academias, prelos, bibliotecas; as cidades foram policiadas; as vestes, os costumes transformaram-se pouco a pouco, embora com dificuldade. Os Moscovitas foram conhecendo gradativamente o que se chama sociedade. Mesmo as superstições foram abolidas, a dignidade de patriarca suprimida; o czar declarou-se chefe da religião, e esta última iniciativa, que teria custado o trono e a vida a um príncipe menos absoluto, não encontrou empecilho, assegurando o êxito de todas as outras inovações.

Depois de haver humilhado um clero ignorante e bárbaro, ousou procurar instruí-lo, correndo, com isso, o risco de torná-lo perigoso; mas julgava-se bastante poderoso para não temê-lo. ..

O czar não submeteu somente a Igreja ao Estado, a exemplo dos sultões turcos; melhor político ainda, destruiu uma milícia semelhante à dos janízaros; e o que os Otomanos haviam inutilmente tentado, ele o executou em pouco tempo: dissolveu os janízaros moscovitas denominados strelitz, que tutelavam os czares. Essa milícia, mais temível para os seus senhores do que para os vizinhos, era composta de trinta mil infantes, dos quais a metade permanecia em Moscou, enquanto a outra achava-se espalhada pelas fronteiras. Se um strelitz não percebia mais que quatro rublos de soldo por ano, os privilégios ou os abusos compensavam-no amplamente.

Pedro, o Grande, organizou primeiro uma companhia de estrangeiros, na qual ele próprio se alistou, não desdenhando começar como simples tambor e exercer essa função, de tal mineira a nação necessitava de exemplos; e chegou a oficial pelas promoções normais. Organizou, pouco a pouco, novos regimentos, e, por fim, vendo-se senhor de tropas disciplinadas, suprimiu os strelitz, que não ousaram insurgir-se contra a medida.

A cavalaria era mais ou menos o que é a cavalaria polonesa e o que fora, outrora, a francesa, quando o reino da França não passava de um conglomerado de feudos. Os nobres russos montavam a cavalo às próprias expensas e combatiam sem disciplina, às vezes sem outras armas além de um sabre ou uma aljava, incapazes de serem comandados e, por conseguinte, de vencerem.

Pedro, o Grande, ensinou-lhes a obedecer pelo seu exemplo e pelos suplícios; pois servia na qualidade de oficial subalterno e punia rigorosamente, como czar, os boiarás5, isto é, os fidalgos que pretendiam ser privilégio da nobreza servir o Estado voluntariamente. Estabeleceu um corpo regular para a artilharia e tomou quinhentos sinos às igrejas para fabricar canhões. Em 1714 fabricaram-se nada menos de treze mil dessas armas. Organizou também corpos de dragões, milícia que se adaptava às tendências dos Moscovitas e ao tipo dos seus cavalos, que são pequenos. Foi ele o primeiro a criar hussardos na Rússia. Enfim, manteve até uma escola de engenheiros, num país onde ninguém conhecia antes elementos de geometria.

Era bom engenheiro ele próprio, distinguindo-se sobretudo nas artes náuticas; bom capitão de navio, hábil piloto, bom marinheiro, destro carpinteiro, e tanto mais louvável nessas artes quanto nascera com um medo excessivo da água. Não podia, na mocidade, atravessar uma ponte sem tremer, mandando logo descer as cortinas de madeira da carruagem; o ânimo forte e o espírito dominaram nele essa fraqueza instintiva.

Mandou construir um belo porto0 perto de Azov, na embocadura do Tánais: queria enchê-lo de navios; em seguida, julgando que os navios longos, chatos e leves deviam adaptar-se melhor ao Báltico, mandou construir mais de trezentos na sua cidade favorita de Petersburgo. Revelou aos súbditos a arte de construir navios com o emprego exclusivo do pinho e a de conduzi-los. Havia aprendido até a cirurgia; viram-no, num caso de necessidade, fazer punção num hidrópico. Distinguia-se também nas artes mecânicas e introduziu na Rússia os artesãos. . .

Modificando os costumes, as leis, a milícia, o aspecto do seu país, o czar Pedro, o Grande, quis também ser grande pelo comércio, que faz a riqueza de um Estado e a prosperidade do mundo inteiro. Empenhou-se em tornar a Rússia o centro dos negócios da Ásia e da Europa. Queria unir através de canais, cujo plano ele próprio traçou, o Duína, o Volga, o Túnais, e abrir novas rotas do mar Báltico ao Ponto Euxino, a té o mar Cáspio, e desses dois mares ao Oceano Setentrional.

O porto de Arcangel, fechado pelo gelo durante nove meses do ano e cuja abordagem exigia um circuito longo e perigoso, não lhe parecia muito cómodo. Nutria, desde 1700, o desejo de construir no mar Báltico um porto que se tornasse o entreposto do Norte, e uma cidade que seria a capital do seu império. Já procurava ele uma passagem pelos mares do Nordeste, para a China; as manufacturas de Paris e Pequim deviam embelezar a nova cidade.

Um caminho por terra, de setecentas e cinquenta e quatro verstas 7, rasgado através de pântanos drenados, conduz de Moscou a essa nova cidade 8.

A maioria dos seus projectos, ele a executou com as próprias mãos, e duas imperatrizes que o sucederam, uma após outra, levaram esses projectos muito além, quando eles eram impraticáveis, e não abandonaram senão os que eram de todo irrealizáveis.

 

O czar costumava percorrer os seus Estados, tanto quanto lhe permitiam as guerras, mas*viajava como observador e como físico, examinando por toda parte a natureza, sondand as profundezas dos rios e dos mares, construindo diques, visitando estaleiros, mandando perfurar minas, examinando os metais, fazendo o levantamento de cartas exactas e sempre trabalhando com as próprias mãos.

Construiu em lugar inóspito a cidade imperial de Petersburgo,*que possui hoje sessenta mil casas e onde se formou, em nossos dias, uma corte brilhante, e onde, enfim, se conhecem os prazeres delicados. Construiu o porto de Cronstadt, sobre o Neva; Santa Cruz, nas fronteiras da Pérsia; fortes na Ucrânia e na Sibéria; estabeleceu almirantados em Arcangel, em Petersburgo, Astracã e Azov; arsenais e hospitais. Todas as casas que construiu eram pequenas e de mau gosto, mas os edifícios eram belos e majestosos.

As ciências, que foram em outras partes o fruto demorado de muitos séculos, vieram para os Estados do czar já aperfeiçoadas, graças aos seus desvelos. Criou ele uma academia calcada no modelo das famosas instituições de Paris e de Londres; os Delisle, os Bulfinger, os Hermann, os Bernouilli9, o célebre Wolff, que se destacava em todo género de filosofia, foram chamados a Petersburgo, sendo-lhes pagas todas as despesas.

Foi assim que um só homem logrou transformar o maior império do mundo. É lastimável tenha faltado a esse reformador de homens a principal virtude: a humanidade. À brutalidade dos seus prazeres, à ferocidade dos seus costumes, à barbaria de suas vinganças se associavam muitas virtudes. Civilizava seu povo, e era selvagem. Foi, com suas próprias mãos, o executor de suas sentenças contra criminosos; na orgia de um festim mostrou sua destreza em cortar cabeças. Existem na África soberanos habituados a derramar o sangue dos súbditos com as próprias mãos; e esses monarcas passam por bárbaros. A morte de um filho, que era preciso corrigir ou deserdar, tornaria a memória do czar odiosa, se o bem por ele feito aos súbditos não os levasse quase a perdoar a crueldade para com os do seu sangue l0.

 

Tal era o czar Pedro. Os seus grandes planos achavam-se apenas delineados quando ele se aliou aos reis da Polónia e Dinamarca contra uma criança que desdenhavam. O fundador do grande império russo quis ser conquistador; julgou que poderia sê-lo sem grande esforço e que uma guerra bem planejada seria útil aos seus propósitos. A arte da guerra era uma arte nova, e ele precisava mostrá-la ao povo. Tinha, aliás, necessidade de um porto a leste do mar Báltico, para a execução de todos os seus planos. Tinha necessidade da província de Íngria, a nordeste da Livónia; os Suecos estavam de posse dessa província, e ele precisava desalojá-los dali. Seus antecessores haviam tido direitos sobre a íngria, a Estónia, a Livónia; o momento parecia-lhe propício para fazer reviver esses direitos perdidos há cem anos e anulados por tratados. Aliou-se ele, por conseguinte, ao rei da Polónia, para arrebatar ao jovem Carlos XII todas essas terras situadas entre o golfo da Finlândia, mar Báltico, Polónia e Moscóvia.

 

1 Um dos melhores auxiliares de Pedro, o Grande. Nasceu em Génova, em 1656, e morreu em Moscou, em 1699.

2 Mais exactamente em Março de 1697, como o próprio Voltaire diz em sua " História da Rússia ".

3 Assembleia nacional que governava a República da Holanda.

4 O mar Branco, no Oceano Glacial Árctico.

5 Senhores feudais da Rússia.

6 O porto de Taganrog, na embocadura do Don (Tánais).

7 Uma versta corresponde a 1.067 metros (Nota de Voltaire).

8 Petersburgo, fundada em 1703; depois Petrogrado, depois Leningrado.

9 Delisle, geógrafo francês ; Bulfinger, teólogo e naturalista ; Hermann, matemático suíço; Bernouilli, célebre geómetra suíço.

10 Alusão à morte do czarevitch Aléxis, acusado de conspiração contra o pai.

Fonte: VOLTAIRE. Clássicos Jackson vol XXII. Tradução de Brito Broca.

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