Oliveira Lima
PERNAMBUCO, SEU DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO
A hegemonia de Pernambuco, no Norte, pode dizer-se era todo o Norte, porque ainda a Amazônia se não desenhava, estabe-ceu-se neste fim do século XVI. Pernambuco, que já dera o seu contingente de homens e mantimentos para a expedição de Estácio de Sá contra os índios do Rio de Janeiro, colonizou a Paraíba e o Rio Grande do Norte à custa de sangue seu, libertando do gentio estes territórios, e vê-lo-emos mais tarde prosseguir na sua marcha civilizadora até o Ceará e Pará, emancipar o Maranhão de uma brilhante ocupação francesa, e sacudir de todo o Norte o arraigado domínio holandês.
A parte no continente da capitania de Itamaracá, compreendendo fertilíssimas várzeas, começava a atrair a atenção dos plantadores, e via mesmo levantarem-se alguns engenhos de açúcar, expostos porém às duras e freqüentes agressões dos petiguares, quase sempre guiados pelos franceses. Convindo repelir estes ataques, e tendo a família do donatário pouco menos do que abandonado as suas terras brasileiras, várias expedições se organizaram por ordem do Governo da Bahia, com gente de Pernambuco na maior parte. Duas não tinham sequer chegado a partir e outras duas haviam sido destroçadas, quando Manuel Teles Barreto, governador do Brasil, aproveitou a passagem por São Salvador, de volta de uma viagem infeliz ao Estreito de Magalhães, do almirante espanhol Diogo Flores Valdez — já nesse momento Felipe II pela persuasão das armas do Duque d’Alba e do dinheiro espalhado pelo Marquês de Castelo Rodrigo, granjeara a coroa portuguesa —, para confiar-lhe o comando de uma nova expedição ao Norte (1584). Aceitou o marinheiro a missão e para lá seguiu tocando nos Recifes a fim de ajuntar à sua, gente de Pernambuco e Itamaracá. D. Brites de Albuquerque já era falecida, e Jerônimo estava afastado do Governo pelo quebrantamento, aumentado o natural da velhice por dissensões de família: o mísero foi uma vítima das sogras! D. Filipe de Moura, casado com uma filha de Filipe Cavalcânti, neta pela mãe de Jerônimo de Albuquerque, achava-se como lugar-tenente do donatário, e ele próprio e Frutuoso Barbosa, que veio a ser o primeiro governador da Paraíba, partiram por terra a juntar-se com a gente da esquadra de Diogo Flo res na foz do Rio Paraíba. Aí, o almirante delineou a construção dq um forte e confiou-a aos espanhóis, enquanto os pernambucanos, internando-se afoitamente, farejavam os índios pelos campos, vindo a ser vítimas deles. Os que escaparam voltaram para Olinda entristecidos, e o gentio, impando de vaidade, entrou a provocar os defensores do forte, que pediram socorro para Itamaracá. O auxílio não lhes foi negado, mas os bugres eram cada vez mais numerosos e insolentes. De Pernambuco partiu então (1585) uma expedição de duzentos cavaleiros, trezentos infantes e muitos auxiliares negros e índios, comandada pelo Ouvidor-Geral Martim Leitão, correspondendo plenamente o êxito aos gastos e fadigas dos expedicionários. Quando porém estes se recolheram às casas, os colonos sentiram-se morrer de desesperança no seu ermo e, inutilizando num dia os resultados tão penosamente adquiridos,
queimaram o forte, botaram a artilharia ao mar, meteram a pique um navio que aí ficara para os proteger (Varnhagen, História Geral),
e fugiram para Itamaracá, ficando a Paraíba na situação primitiva. Felizmente apareceram entre o gentio as inevitáveis desavenças, e de combinação com um dos principais, o temido Braço de Peixe, com o qual parlamentara João Tavares, de Olinda, Martim Leitão pôs-se à frente de novos povoadores, eles ergueram definitivamente um forte no local da capital, depois de enxotar de toda a capitania (1585 86) os selvagens, que no Rio Grande do Norte ainda seriam perseguidos. A capitania de Itamaracá ficou reduzida a sete léguas de costa, as quais a Coroa quis reivindicar após a guerra holandesa, por não ter o donatário auxiliado a restauração; mas o Marquês de Cascaes, descendente de Pero Lopes, pôde suplantá-la perante a justiça, entrando no gozo do seu feudo quase imaginário, até que em 1763, por honrosa convenção, a família cedeu dos seus direitos em favor do monarca. Itamaracá tornou-se desta data dependente de Pernambuco, exceto nos assuntos judiciais, em que, até 1815, dependeu da ouvidoria da Paraíba.
Pouco depois (1589-90), Pernambuco voltava-se para o Sul, ajudando, no interesse de escravizar algum gentio para as suas plantações, a expedição baiana de Cristóvão de Barros a Sergipe. A Coroa declara justa a guerra, condição obtida pelos onipotentes jesuítas, e necessária para validar a posse e tornar exigível a entrega dos escravos índios, que muitas vezes se acoitavam nas missões da Companhia. Foi produtiva a colheita, conquanto trabalhosa pela resistência tenaz dos atacados, ficando cativos quatro mil no cerco que lhes foi armado: resultado brilhante, além do susto pregado aos ubíquos franceses, que naquele local comerciavam livremente em pau-brasil, algodão e pimenta. Fundou-se uma vila; nos pastos dos campos vizinhos dados em sesmarias, entrou-se a criar gado; c pelas duas margens do São Francisco — a margem norte sabemos que pertencia ao donatário pernambucano —, começou-se a desfazer mais esta solução de continuidade na povoação da costa brasileira.
O gentio não se aquietara porém na Paraíba com as rudes lições que lhe tinham sido administradas. Voltara, concluía como sempre com os franceses, que agora faziam do Rio Grande o seu quartel e asilo, e atacara vivamente a instalação portuguesa do Forte do Cabedelo. Forçoso se tornou ao Governador D. Francisco de Sousa e a Manuel Mascarenhas, capitão-mor de Pernambuco, armarem às custas do Estado, que para isto tributou cada caixa de açúcar de dez quintais em um cruzado, e de particulares, uma expedição, auxiliada pela Paraíba e que a metrópole reforçou (1597), às terras em má hora doadas a Aires da Cunha e João de Barros. Indo uns por mar e outros mais fadigosamente por terra, congregaram-se esses elementos na foz do Rio Grande, onde Manuel de Mascarenhas, com receio logo justificado dos inimigos, entrincheirou-se e levantou um forte de que fêz entrega, antes de volver a Olinda, a Jerônimo de Albuquerque, um dos numerosos filhos naturais do cunhado de Duarte Coelho. O futuro conquistador do Maranhão, prudente como os que têm a consciência do seu valor, aliás já demonstrado nas contendas do velho Jerônimo com os caetés, preferiu às armas recorrer à persuasão, e pôde firmar paz com os selvagens, chamando a si os principais dos petiguares, índios guerreiros de velha nomeada, entre os quais o Camarão, que tão conhecido se tornou depois pela sua parte ativa nas lutas com os holandeses. A cidade do Natal deve a Jerônimo de Albuquerque a sua fundação (1599).
Os franceses contudo já não possuíam o exclusivo da pirataria nas nossas costas, exercida sem respeito algum pelas convenções lealmente firmadas entre o seu país e Portugal, as quais os Valois, no meio das dissensões políticas e religiosas que retalhavam a França no século XVI, eram impotentes para fazer vingar, impedindo as expedições clandestinas. Na segunda metade do século XVI, reinando Isabel na Inglaterra e dominando na Holanda a revolta calvinista, as marinhas destes dois países do Norte desenvolveram-se, ambas pela precisão, ensaiada com glória, de guerrearem Filipe II. Os ingleses tinham começado a aparecer na Madeira e na costa da Mina antes da ocupação espanhola, quando ainda subsistia a aliança entre as duas coroas. Isabel, com sua habitual dissimulação, animava secretamente as expedições dos seus vassalos, e prometia atender, sem que a isso nunca se decidisse, às repetidas e enérgicas reclamações portuguesas. Por fim, em razão de sua atitude, tendo o Conselho de Estado de Lisboa resolvido seqüestrar todas as fazendas inglesas existentes em Portugal, e fechar os portos do reino às mercadorias britânicas, a rainha assinou em 1576 um tratado, suspendendo por três anos as correrias marítimas. A união com Castela desfez porém o conchavo, e trazendo a expulsão dos ingleses do comércio peninsular, estimulou-os a trilhar os mares nunca dantes navegados, herdando com os holandeses o predomínio da era de mercancia, renovada pelos descobrimentos. Ajudou então a Inglaterra as pretensões do prior do Crato, em troca de futuras concessões: a expedição Norris & Drake, em
1598, facultaria, se tivesse vingado, inteira liberdade do comércio aos súditos britânicos nos portos portugueses do continente e das Índias.
Como colônia espanhola, o Brasil sofreu as conseqüências dos desaguisados da nova metrópole. Assim em 1595, Lancaster, fi dalgo educado entre os portugueses, e que andava feito corsário à soldo de mercadores londrinos, entrou com sete veleiros no porto do Recife; tomou de escalada a fortaleza de terra que o defendia, e de parceria com holandeses e franceses que por ali andavam, ou apareceram, como corvos, na ocasião da pilhagem, saqueou durante um mês a vila nascente, de umas cem casas apenas, mas em cujos armazéns estava justamente recolhida a opulenta carga de um galeão da Índia, que nautragara perto, além de muitos produtos da terra, prontos para o embarque. Os portugueses, retirados cm Olinda, tentaram queimar os navios de Lancaster, que se recusara até a parlamentar com eles, e assaltaram por vezes o Recife, morrendo em uma sortida dos ingleses o Vice-Almirante Barker com muitos companheiros; mas nada impediu que os navios ingleses, e outros holandeses adrede fretados no porto, partissem abarrotados.
Os escritores que no século XVI se ocuparam do Brasil, entre os quais avulta sem favor Gabriel Soares de Sousa, senhor de engenho na Bahia que, andando a pretender concessões de minas na Corte de Madri, ofereceu ao amigo de Filipe II, D. Cristóvão de Moura, uma descrição que Varnhagen chama enciclopédica, da colônia americana em 1587, excelentemente observada e graciosamente escrita, são concordes em afirmar que Pernambuco era então a mais adiantada das capitanias, quer no cultivo e produção das terras, quer na polidez dos costumes e conforto da vida. Em Olinda, que tinha setecentos colonos, e com seu termo mais de dois mil, além de outros tantos negros escravos (Pe. Fernão Cardim, Carta, 1584), as casas eram numerosas, e já tinham perdido a miserável aparência das primitivas palhoças, defendidas por paliçadas e fossos, dentro das quais se haviam alojado Duarte Coelho e seus companheiros. Se nessas casas se não viam preocupações de arquitetura, também se as não observavam nas da metrópole. O autor da relação da viagem dos embaixadores venezianos Tron e Lippomani, que em nome do doge vieram a Lisboa cumprimentar Filipe II — escritor habituado em sua terra, centro italiano da arquitetura civil, às elegantes e formosas concepções de Pedro Lombardo, Sansovino Paládio —, notava que na capital portuguesa não se levantasse palácio algum de fidalgo ou de burguês, que merecesse consideração quanto à matéria ou quanto ao estilo da construção. Efetivamente eram apenas edifícios muito grandes, de aspecto conventual cobertos de telhas e revestidos interiormente de frescos azulejos; conquanto ricamente decorados de estofos e tapeçarias estrangeiras e das que então se fabricavam no reino, e encerrando, além dos móveis europeus soberbamente entalhados no gosto da renascença italiana, mil preciosidades importadas da Índia. China e Japão, tais como móveis acharoados e dourados, louças esmaltadas e tetéias grotescas e caras. Em Pernambuco, os traficantes de negros e senhores de engenhos, plebeus ou nobres endinheirados, minhotos quase todos, com as suas qualidades de raça, trabalhadores, e pacientes, punham todo o luxo no número da escravaria, indígena e da Guiné; na riqueza dos vestuários de belos tecidos de seda simples adamascada ou aveludada, a^espeito das disposições suntuárias do regimento, palanquins e liteiras; no padre capelão da casa: finalmente nos banquetes de abundantes vitualhas e bons vinhos portugueses, embora pagassem 1.400 réis por pipa de imposição, "para acudir à construção de fortificações e à reedificação de templos". Não desprezavam eles contudo o adorno das habitações, pois que o Padre Cardim relata que nas fazendas pernambucanas, maiores e mais ricas que as da Bahia, o agasalharam e os seus companheiros, não em em redes indígenas, mas em leitos de damasco carmesim franjados de ouro, e ricas colchas da índia.
Gastavam os pernambucanos com-prodigalidade, porque com facilidade ganhavam. Mais de cem colonos tinham de mil a cinco mil cruzados de renda, alguns de oito a dez mil. Os sessenta e seis engenhos por ali disseminados em 1584 — no Brasil existiam ao todo cento e vinte — produziam duzentas mil arrobas de açúcar, e não podiam dar vencimento à cana. Quarenta e cinco navios fundeavam em média, no correr do ano, diante do Recife, que supriam a importação e transportavam para Portugal o açúcar e o pau-brasil, cujo estanco andava arrendado por dez anos a vinte mil cruzados cada ano, rendendo quase o mesmo o dízimo dos engenhos.
O comércio era todo feito com a metrópole, e realengos os gêneros de maior valia, a não ser o açúcar que todavia constituía o comércio mais rendoso, mesmo para o soberano. Nos Diálogos das Grandezas do Brasil, obra de um espírito claro, aberto ao experimentalismo renascente, e que, embora religioso, se não comenta com explicações sobrenaturais, antes revela-se dotado de ilustração pouco vulgar, analisando com saber e comentando com facilidade assuntos de História Natural, Economia e Medicina, estabelece-se a comparação dos lucros reais no tráfico da índia com os auferidos da exportação do açúcar do Norte do Brasil. Assegura Bento Teixeira Pinto que, pondo de um lado o que o monarca despendia em cada ano com os aprestos das naus que mandava ao Oriente; soldos da gente de guerra e marítima; moradias de seus criados; mercês feitas a particulares; juntamente com o cabedal que remetia para a compra da pimenta do Malabar; e do outro o que esta lhe rendia; e mais o arrendamento dos direitos que pagavam "a canela de Ceilão o cravo de Maluco, a massa e noz-moscada da Banda, o almiscre. benjoim, porcelana e sedas da China, as roupas e anil de Cambaia e Bengala, a pedraria do Balaguate, e Bisnaga e Ceilão", os ganhos excedentes ficavam todavia aquém do rendimento do Consulado, e da entrada no reino do açúcar de Pernambuco, Itamaracá e Paraíba, cultivado somente no litoral, porquanto os colonos não se haviam ainda afastado dez léguas da costa. O açúcar produzido nas capitanias citadas em 1618, tempo em que o autor pernambucano escrevia, era avaliado em quinhentos mil arrobas, levadas anualmente por muito mais de cem naus, todas fretadas por particulares, cujo traba-
lho estimulador excedia proporcionalmente o das grandes companhias postas em moda no decorrer do século XVII. As relações comerciais com outros países, com a Inglaterra, por exemplo, que a princípio I pareciam querer estabelecer-se, foram sofregamente abafadas pela’ política de isolamento, a qual um século depois até dominou o es4 pírito lúcido de Cromwell e, anulando o intercurso de idéias indispensáveis para o desenvolvimento da mentalidade, degradou as colônias latinas, ainda que cm menor escala do que as suas metrópoles, "deixando-as à mercê dos oficiais c eclesiásticos, e agravando o efeito dessa combinação de tirania, santimonía e monopólio sob a qual eram governadas" (Payne, European Colonies).
Em Pernambuco, para mais abandonado do seu donatário, Jorge de Albuquerque, o qual, pai de família e laureado, pensava na maneira de despender tranquilamente em Lisboa a renda de dez mil cruzados que auferia da redízima, do dízimo do pescado que era o único a possuir inteiro, e dos foros dos engenhos do seu feudo, os males eram idênticos aos das outras terras do Brasil. Já Mem de Sá se queixava dos indivíduos em quem eram providos ofícios, e até capitanias. Os empregados de justiça só serviriam para embaraçar as numerosas demandas, e tornar ainda mais acessível a Têmis venal transplantada do reino; padres, sabemos nós que não faltavam, parasitas em grande parte. De 30.825 cruzados, que tanto rendia a colónia em 1583 com todas as dificuldades de cobrança — em 1602 já rendia 106.000, e em 1612, 125.000 —, 7.500 cruzados iam para os jesuítas; e acontecia que, mandando-se 10.000 para a metrópole, havia nos gastos um deficit anual de 2.000 cruzados aproximadamente. Nas despesas de Pernambuco em 1601, fixadas em 12.528 $ 417 réis, entravam os oficiais de justiça e fazenda e o donatário por 6.211 S 917 réis, o clero por 1.547 $ 300 réis e os gastos de guerra por 4.799 $ 200 réis. Verdade é que Olinda, Igaraçu que tinha duzentos colonos, e os engenhos em cada um dos quais viviam vinte a trinta portugueses, afora os das roças circunvizinhas, podiam pôr em campo mais de três mil homens — o colono que possuísse 400 S era obrigado a ter armas —, sendo quatrocentos cavaleiros, além de quatro a cinco mil negros e muitos índios (Gabriel Soares de Sousa, Tratado Descritivo do Brasil em 1587).
A Companhia de Jesus, altamente recomendada pelos reis, era não só por este fato objeto das mais gentis atenções dos governadores, quando a sua ambição não provocava desconfiança nos mais ariscos, como também pelo auxílio que lhes ela prestava nos primeiros tempos, nas expedições contra o gentio e conseqüente funjlação de vilas; não falando em apaziguamentos de rixas não muito raras, como a que em 1562 rompeu entre o donatário de Pernambuco e os principais da terra e, segundo conta o Padre Simão de Vasconcelos, historiador dos feitos da Ordem no Brasil, foi serenada por dois jesuítas. Sob tão bons auspícios, o poderio da Companhia ia crescendo dia a dia na perseguição constante e passiva de um ideal aparentemente desinteressado. Outras ordens religiosas que ainda no século XVI se estabeleceram no Brasil: os beneditinos, que vieram para Pernambuco em 1596; os franciscanos capuchos de Santo Antônio, pedidos por Jorge de Albuquerque para a sua capitania, onde chegaram em 1585, e cujo cronista seria no século XVIII Santa Maria Jaboatam; os carmelitas observantes que deveiam acompanhar Frutuoso Barbosa em uma das expedições malogradas à Paraíba, e que se quedaram em Olinda; todas progrediram e viram multiplicarem-se os seus conventos, mas pela sua forma racional adiantada e pelo seu feitio menos ambicioso c mais contemplativo, não puderam competir com os jesuítas na educação da mocidade nem na conversão do gentio. Os colégios da Ordem, negações da livre crítica ensaiada pela Renascença, levantavam-se no fim do século em Olinda, na Bahia, no Rio, em Piratininga: neles se ensinava além da leitura, escrita e doutrina, o Latim, Humanidades e casuística. As missões aumentavam constantemente, chegando a haver algumas com cinco mil neófitos em tempo de Mem de Sá. Foi este governador grande amigo dos padres, aos quais prodigalizou altos favores nos seus dezesseis anos de administração, ofertando-lhes até, para a fundação dos colégios, o produto das condenações e penas pecuniárias. Nisto não fazia êle mais do que seguir na esteira da Coroa, a qual acumulava sobre a Companhia as graças mais amplas, dando-lhe a redízima, abono de mantimentos que no Rio recebiam em açúcar de Pernambuco, somas de dinheiro; e sobretudo colocando os índios fora da alçada dos colonos, com o que muito lucravam as terras da Ordem.
Os selvagens só podiam ser escravos, decidira-o a Mesa da Consciência de Lisboa, quando cativos em guerra justa, e mesmo assim por dez anos apenas, conforme ficou estatuído em 1611; entregues crianças pelos pais, ou vendidos adultos por moto-pró-prio. Os padres ainda conseguiram que a primeira hipótese fôsse a única válida, mas o clamor levantado pela decisão régia determinou uma modificação desta no sentido anterior, sendo contudo ordenado em 1595 que ficassem livres todos os índios escravizados cm guerras não empreendidas por provisões assinadas pelo próprio soberano. Em 1596, por alvará de 26 de julho, cabiam aos jesuítas o governo e administração do gentio. Estava finalmente ganha a porfiada luta, em que Roma, a futura demolidora da Companhia, batalhara fervorosamente pelos novos defensores da religião católica e da supremacia papal, nesse século no qual a humanidade procurara emancipar-se da tirania espiritual e da opressão política, contrapondo a natureza à fé, a objetividade crítica à subjetividade tradicional.
O tráfico de negros com todos os seus horrores, que ainda presenciaram nossos pais, aumentou na razão direta da proteção dispensada aos índios, e até 1851 apenas se interrompeu um momento durante os primeiros anos da ocupação holandesa. O espiritualismo cristão invocado pelos jesuítas, que na Itália haviam praticado o maquiavelismo, para defesa dos seus neófitos, não serviu para embaraçar a importação dos africanos, trabalhadores rurais requeridos pelos colonos com pleno assentimento real; pois que, ao passo que Duarte Coelho carecia de impetrar de D. João III como uma graça, o introduzir algumas peças da Guiné na sua capitania: em 1559, a rainha regente D. Catarina já permitia a cada senhor de engenho mandar vir do Congo até cento e vinte escravos, pagando somente o terço dos direitos, cm vez da metade. Por tal forma foi avultando o comércio, que nos começos do século XVII, quando em Olinda, por exemplo, os índios eram poucos:
Se ha criado no Brazil uma nova Guiné; cm tanto que, cm algumas das capitanias, ha mais dos escravos vindos d’ella que dos naturaes da terra, e todos os homens que n’clle vivem tem mettida case toda sua fazenda em semelhante mercadoria (B. Teix.a Pinto, ob. cit.).
Os infelizes morriam dizimados pelos maus tratos de bordo, e pelas epidemias de sarampão e bexigas, sem falar nos homicídios, sobretudo por envenenamento, que uns contra outros praticavam; o viveiro porém não ficava demasiado longe para a ganância dos traficantes. Sucediam-se no porto do Recife os navios negreiros, lançando as tristes filas de sórdidos escravos uma nota desconsoladora na vida animada de Olinda, cheia de lojas onde mercadores do lugar expunham as fazendas chegadas do reino, "toda a sorte de louçaria, sedas riquíssimas, panos finíssimos, brocados maravilhosos, que tudo se gastava em grande cópia na terra", à qual afluíam os mercadores de arribação que, vendidas as suas cargas, embarcavam para Lisboa com muito açúcar, algodões e âmbar.
Para os comerciantes de ida por vinda; para os oficiais mecânicos que abundavam; para os jornaleiros que se ocupavam "em encaixamento de açúcares, feitorizar canaviais de engenhos, criarem gados, com nome de vaqueiros, e servirem de carreiros"; para os pequenos agricultores "que tinham partidos de canas ou lavravam mantimentos": toda a mira residia no grosso cabedal, ou pelo menos no farto pé-de-meia, que permitisse o regresso ao torrão natal. A cidade ressentia-se desta existência fugitiva, já na carestia e falta de gêneros, mesmo dos que produzia o país, mas que não eram dos dominantes e lucrativos; já na ausência de jardins, pomares, tanques, aformoseamentos com que os assistem numa terra, procuram dotar as suas habitações. Os jesuítas, que lançavam raízes na capitania, possuíam junto ao seu colégio, fundado e subsidiado por D. Sebastião em 1576, uma grande horta e dentro dela, conta o Padre Cardim com embevecimento, um alegre jardim fechado, com muitas ervas cheirosas, e duas ruas de pilares de tijolo com parreiras, gostosos maracujás, inúmeras romãs, figueiras de Portugal, tantos melões que não havia esgotá-los, laranjeiras e legumes sem conta. Antes de edificado o colégio, tinham os padres levado à cena, em 1575, um auto intitulado O Rico Avarento e o Lázaro Pobre, cujo efeito conta-se ter sido tão sugestivo, que muitos homens abastados se despojaram dos seus bens (Pereira da Costa, Mosaico Pernambucano). A peça entrava certamente no número dos autos e tragicomedias espetaculosas destinadas a ferir as imaginações, e cujo poder moral a Companhia ensaiara alguns anos antes em Coimbra. Eram portanto os jesuítas e os senhores de engenhos que davam fixidez àquela sociedade heterogênea, a qual laboriosamente embolsava os seus ganhos, sem outros pensamentos que a agitassem, além de vagas quimeras provocadas pelas notícias do ouro, vindas do Sul.
O solo ia exercendo a sua ação despótica sobre os proprietários, gentis-homens ou vilãos enriquecidos, entre os quais caloteiros de profissão c até criminosos por índole, tipos merecedores da atenção de um Lombroso, que fugiam do reino. Foram ficando os que se viam presos pelas fábricas em que traziam empenhados não pequenos capitais, pois que cada engenho pronto para o trabalho custa-tava cerca de dez mil cruzados, e entregavam-se sem indolência à indústria tão remuneradora do açúcar. Grandes escravarias colocavam as canas recoltadas entre os eixos que movia a roda, batida pela corrente ou girada por animais; limpavam o sumo nas caldeiras de cocção; faziam-no coalhar e criar corpo, e finalmente purgavam e branqueavam o açúcar em fôrmas de barro. Fora do trabalho, regalavam-se os fazendeiros com banquetes, nos quais a cozinha pátria já não podia blasonar de genuína pela infiltração de temperos indígenas e introdução de novos e magníficos legumes, caças e pescados diferentes que faziam esquecer no gosto os da metrópole. A farinha de mandioca era excelentemente recebida, e, juntamente-com o arroz e o milho, cultivavam-se de preferência ao trigo, centeio e cevada. Os saborosíssimos frutos tropicais, ricos de perfume, opulentavam as sobremesas, e os vinhos e azeites nacionais ensaiavam uma tímida entrada. Por todas as formas se patenteava o esplendor sem igual duma natureza virgem, que fornecia liberalmente nas matas e campos agrestes, onde chilreavam revoadas de pássaros lindíssimos c se abriam milhares de flores incomparáveis de viço: fortíssimas madeiras de construção, fios próprios para serem tecidos, drogas das quais muitas especiarias e paus de tinturaria, gomas, ceras e ervas medicinais.
A lembrança da mãe pátria ressumbrava todavia a cada passo nas cerimônias do culto, que fortaleciam a fé rejuvenescida pelas prédicas insinuantes dos jesuítas; nas festas religiosas de respeitadas usanças; nos jogos e divertimentos peninsulares. O Padre Cardim relata que no dia do casamento de uma olindense abastada, se correram touros e jogaram canas, pato e argolinha, dando assim largas a mocidade aos exercícios de equitação que no reino andavam tão estimados. Dos palanques os aplaudiriam as damas faceiras, tão senhoras e não muito devotas, de que fala o jesuíta; as faces avermelhadas com araribá na clausura dos gineceus cheios de escravas, e cujas distrações caseiras consistiam, além das rezas e leituras em comum, na confecção de guloseimas segundo receitas de Portugal, e na execução de pachorrentos bordados. Trajavam elas com riqueza igual à da Corte, e conversavam, cavalheiros e damas, com facilidade e cortesia elogiadas por Bento Teixeira Pinto, a ponto de escrever que os filhos de Lisboa iam aprender no Brasil, os bons termos com os quais se faziam diferentes na polícia, que dantes lhes faltava.
Isto faz crer que o nosso poeta não guardava recordação agra dável da rudeza lisboeta, sobretudo depois de ter tido, como é por vável, ocasião de compará-la com a urbanidade dos fidalgos espa nhóis, educados na distinção da Casa d’Áustria. Vemos que aida assumira em Pernambuco uma feição de inteira sociabilidade, característica desta capitania, não lhe faltando sequer a paixão do jogo muito espalhada entre os moradores, para dar à nova sociedade um ar de Velho Mundo.
Pamamirim, dezembro de 1919
Fonte: Oliveira Lima – Obra Seleta – Conselho Federal de Cultura, 1971.
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