Apologia
de Sócrates
por
Platão
Tradução de Maria Lacerda de Moura.
Copista: Miguel Duclós
A numeração de Stephanus aproximada encontra-se entre colchetes.
Primeira Parte – Sócrates apresenta sua defesa
I
[17a] O que vós, cidadão atenienses, haveis sentido,
com o manejo dos meus acusadores, não sei; certo é que eu, devido a eles, quase
me esquecia de mim mesmo, tão persuasivamente falavam. Contudo, não disseram,
eu o afirmo, nada de verdadeiro. Mas, entre as muitas mentiras que divulgaram,
uma, acima de todas, eu admiro: aquela pela qual disseram que deveis ter
cuidado para não serdes enganados por mim, como homem hábil no falar.
[17b] Mas, então, não se envergonham disto, de que
logo seriam desmentidos por mim, com fatos, quando eu me apresentasse diante de
vós, de nenhum modo hábil orador? Essa me parece a sua maior imprudência, se,
todavia, não denominam "hábil no falar" aquele que diz a verdade.
Porque, se dizem exatamente isso, poderei confessar que sou orador, não porém à
sua maneira.
Assim, pois, como acabei de dizer, pouco ou
absolutamente nada disseram de verdade; mas, ao contrário, eu vo-la direi em
toda a sua plenitude. Contudo, por Zeus, não ouvireis, por certo, cidadãos
atenienses, discursos enfeitados de locuções e de palavras, ou adornados como
os deles, mas coisas ditas simplesmente com [17c] as palavras que me vieram à boca; pois
estou certo de que é justo o que eu digo, e nenhum de vós espera outra coisa.
Em verdade, nem conviria que eu, nesta idade, me apresentasse diante de vós, ó
cidadãos, como um jovenzinho que estuda os seus discursos. E, todavia, cidadãos
atenienses, isso vos peço, vos suplico: se sentirdes que me defendo com os
mesmos discursos com os quais costumo falas nas feiras, perto dos bancos, onde
muitos de vós tendes ouvido, e em outros lugares, não vos espanteis por isso,
nem provoqueis clamor. Porquanto, há o seguinte: é a primeira vez que me
apresento diante de um tribunal [17d], na idade de mais de setenta anos: por isso,
sou quase estranho ao modo de falar aqui. Se eu fosse realmente um forasteiro,
sem dúvida, perdoaríeis, se eu falasse na língua e maneira pelas quais tivesse
sido educado; assim também agora [18 a] vos peço uma coisa que me parece justa:
permiti-me, em primeiro lugar, o meu modo de falar – e poderá ser pior ou mesmo
melhor – depois, considerai o seguinte, e só prestai atenção a isso: se o que
digo é justo ou não: essa, de fato, é a virtude do juiz, do orador – dizer a
verdade.
II
É justo, pois, cidadãos atenienses, que em
primeiro lugar, eu me defenda das primeiras e falsas acusações que me foram
apresentadas, e dos primeiros acusadores; depois, me defenderei das últimas e
dos últimos. Porque muitos dos meus acusadores [18b] têm vindo até vós já bastante
tempo, talvez anos, e sem jamais dizerem a verdade; e esses eu temo mais do que
Anito e seus companheiros, embora também sejam temíveis os últimos. Mais temíveis
porém são os primeiros, ó cidadãos, os quais tomando a maior parte de vós,
desde crianças, vos persuadiam e me acusavam falsamente, dizendo-vos que há um
tal Sócrates, homem douto, especulador das cosias celestes e investigador das
subterrâneas e que torna mais forte a razão mais fraca.[18c] Esses, cidadãos
atenienses, que divulgaram tais coisas, são os acusadores que eu temo; pois
aqueles que os escutam julgam que os investigadores de tais coisas não
acreditam nem mesmo nos deuses. Pois esses acusadores são muitos e me acusam já
há bastante tempo; e, além disso, vos falavam naquela idade em que mais
facilmente podíeis dar crédito, quando éreis crianças e alguns de vós muito
jovens, acusando-me com pertinaz tenacidade, sem que ninguém me defendesse. E o
que é mais absurdo [18d] é que não se pode saber nem dizer os seus nomes, exceto,
talvez, algum comediógrafo.
Por isso, quantos, por inveja ou calúnia, vos
persuadiam, e os que, convencidos, procuravam persuadir os outros, são todos,
por assim dizer, inabordáveis; porque não é possível fazê-los comparecer aqui,
nem refutar nenhum deles, mas devo eu mesmo me defender, quase combatendo com
sombras e destruir, sem que ninguém responda.
Admiti, também vós, como eu digo, que os meus
acusadores são de duas espécies, uns, que me acusaram recentemente, outros, há
muito dos quais estou falando e convinde que devo me [18e] defender primeiramente
destes, porque também vós os ouvistes acusar-me em primeiro lugar e durante
muito mais tempo que os últimos.
Ora bem, cidadãos atenienses, devo defender-me
e empreender remover de vossa mente, em tão breve hora, a má opinião [19a] acolhida
por vós durante muito tempo.
Certo eu desejaria consegui-lo, e seria o
melhor, para vós e para mim, se, defendendo-me, obtivesse algum proveito; mas
vejo a coisa difícil, e bem percebo por quê. De resto, seja como deus quiser:
agora é preciso obedecer à lei e em defender.
III
Prossigamos, pois, e vejamos, de início, qual é
a acusação, de onde nasce [19b] a calúnia contra mim, baseado no qual Meleto me moveu
este processo.
Ora bem, que diziam os caluniadores ao
caluniar-me? É necessário ler a ata da acusação jurada por esses tais
acusadores: – Sócrates comete crime e perde a sua obra, investigando as
coisas terrenas e as celestes, e tornando mais forte a razão mais débil,
e ensinando isso aos outros. – Tal é, mais ou menos, [19 c] a acusação: e isso já
vistes, vós mesmos, na comédia de Aristófanes, onde aparece, aqui e ali, um
Sócrates que diz caminhar pelos ares e exibe muitas outras tolices, das quais
não entendo nem muito, nem pouco.
E não digo isso por desprezar tal ciência, se é que há
sapiência nela, mas o fato é, cidadãos atenienses, [19d] que, de maneira alguma, me
ocupo de semelhantes coisas. E apresento testemunhas: vós mesmos, e peço vos informei
reciprocamente, mutuamente vos interrogueis, quantos de vós me ouviram
discursar algum dia; e muitos dentre vós sois desses. Perguntai-vos uns aos
outros se qualquer de vós jamais me ouviu orar, muito ou pouco, em torno de
tais assuntos, e então reconhecereis que tais são, do mesmo modo, as outras
mentiras que dizem de mim.
IV
Na realidade, nada disso é verdadeiro, e,
se tendes ouvido de alguém que instruo e ganho dinheiro [19 e] com isso, não é
verdade. Embora, em realidade, isso me pareça bela coisa: que alguém seja capaz
de instruir os homens, como Górgias Leontino, Pródico de Coo, e Hípias de
Élide. Porquanto, cada um desses, ó cidadãos, passando de cidade em cidade, é
capaz de persuadir os jovens, os quais poderiam conversar gratuitamente com todos
os cidadãos que quisessem; é capaz de persuadir a estar com eles, [20a] deixando as
outras conversações, compensado-os com dinheiro e proporcionando-lhes prazer.
Mas aqui há outro erudito de Paros, o qual eu
soube que veio para junto de nós, porque encontrei por acaso um que despendeu
com os sofistas mais dinheiro que todos os outros juntos, Cálias de Hipônico. Tem
dois filhos e eu o interroguei: – Cálias, se os teus filhinhos fossem
poldrinhos ou bezerros, deveríamos escolher e pagar para eles um guardião, o
qual os deveria aperfeiçoar nas suas qualidades [20b] inerentes: seria uma pessoa que
entendesse de cavalos e de agricultura. Mas, como são homens, qual é o mestre
que deves tomar para eles? Qual é o que sabe ensinar tais virtudes, a humana e
a civil? Creio bem que tens pensador nisso uma vez que tem dois filhos. Haverá
alguém ou não? – Certamente! – responde. E eu pergunto: – Quem é, de onde e por
quanto ensina? Eveno, respondeu, de Paros, por cinco minas. – E eu acreditaria
Eveno muito feliz, se verdadeiramente possui essa arte e a ensina com tal
[20 c] garbo. Mas o que é certo é que também eu me sentiria altivo e orgulhoso, se
soubesse tais coisas; entretanto, o fato é, cidadãos atenienses, que não sei.
V
Algum de vós, aqui, poderia talvez se opor a
mim: – Mas Sócrates, que é que fazes? De onde nasceram tais calunias? Se não
tivesses te ocupado em alguma coisa diversa das coisas que fazem os outros, na
verdade não terias ganho tal fama e não teriam nascido acusações. Dizes, pois,
o que é isso, a fim de que não julguem a esmo.
[20 d] Quem diz assim, parece-me que fala justamente,
e eu procurarei demonstrar-vos que jamais foi essa a causa produtora de tal
fama e de tal calúnia. Ouvi-me. Talvez possa parecer a algum de vós que eu
esteja gracejando; entretanto, sabei-o bem, eu vos direi toda a verdade. Porque
eu, cidadãos atenienses, se conquistei esse nome, foi por alguma sabedoria. Que
sabedoria é essa? Aquela que é, talvez propriamente, a sabedoria humana. É, em
realidade, arriscado ser sábio nela: mas aqueles de quem falávamos ainda [20 e] há
pouco seriam sábios de uma sabedoria mais que humana, ou não sei que dizer,
porque certo não a conheço. Não façais rumor, cidadãos atenienses, não fiqueis
contra mim, ainda que vos pareça que eu diga qualquer coisa absurda: pois que
não é meu o discurso que estou por dizer, mas refiro-me a outro que é digno de
vossa confiança. Apresento-vos, de fato, o deus de Delfos como testemunha de
minha sabedoria, se eu a tivesse, e qualquer que fosse. Conheceis bem Querofonte. Era meu amigo desde jovem, também amigo do [21 a] vosso partido
democrático, e participou de vosso exílio e convosco repatriou-se. E sabeis
também como era Querofonte, veemente em tudo aquilo que empreendesse. Uma vez,
de fato, indo a Delfos, ousou interrogar o oráculo a respeito disso e – não
façais rumor, por isso que digo – perguntou-lhe, pois, se havia alguém mais
sábio que eu. Ora, a pitonisa respondeu que não havia ninguém mais sábio. E a
testemunha disso é seu irmão, que aqui está.
VI
[21 b] Considerai bem a razão por que digo isso: estou
para demonstra-vos de onde nasceu a calúnia. Em verdade, ouvindo isso, pensei:
que queria dizer o deus e qual é o sentido de suas palavras obscuras? Sei bem
que não sou sábio, nem muito nem pouco: o que quer dizer, pois, afirmando que
sou o mais sábio? Certo não mente, não é possível. E fiquei por muito tempo em
dúvida sobre o que pudesse dizer; depois de grande fadiga resolvi buscar a
significação do seguinte modo: [21 c] Fui a um daqueles detentores da sabedoria, com a
intenção de refutar, por meio dele, sem dúvida, o oráculo, e, com tais provas,
opor-lhe a minha resposta: Este é mais sábio que eu, enquanto tu dizias que eu
sou o mais sábio. Examinando esse tal: – não importa o nome, mas era, cidadãos
atenienses, um dos políticos, este de quem eu experimentava essa impressão. – e
falando com ele, afigurou-se-me que esse homem parecia sábio a muitos outros e
principalmente a si mesmo, mas não era sábio. Procurei demonstrar-lhe que ele
parecia sábio sem o ser. Daí me veio o ódio [21 d] dele e de muitos dos presentes.
Então, pus-me a considerar, de mim para mim, que eu sou mais sábio do que
esse homem, pois que, ao contrário, nenhum de nós sabe nada de belo e bom, mas
aquele homem acredita saber alguma coisa, sem sabê-la, enquanto eu, como não si
nada, também estou certo de não saber. Parece, pois, que eu seja mais sábio do
que ele, nisso – ainda que seja pouca coisa: não acredito saber aquilo que não
sei. Depois desse, fui a outro daqueles que possuem ainda mais sabedoria que
esse, e me pareceu que todos são a mesma coisa. [21 e] Daí veio o ódio também deste e
de muitos outros.
VII
Depois prossegui sem mais me deter. Embora
vendo, amargurado e temeroso, que estava incorrendo em ódio; mas também me
parecia dever fazer mais caso da resposta do deus. Para procurar, pois o que
queria dizer o oráculo, eu devia ir a todos aqueles que diziam saber qualquer
[22 a] coisa. E então, cidadãos atenienses, já que é preciso dizer a verdade, me
aconteceu o seguinte: procurando segundo o dedo do deus, pareceu-me que os mais
estimados eram quase privados do melhor, e que, ao contrário, os outros,
reputados ineptos, eram homens mais capazes, quando à sabedoria.
Ora, é preciso que eu vos descreva os meus
passos, como de quem se cansava para que o oráculo se tornasse acessível
a mim. Depois dos políticos, fui aos poetas trágicos, [22 b] e, dos ditirâmbicos fui
aos outros, convencido de que, entre esses, eu seria de fato apanhado como mais
ignorante do que eles. Tomando, pois, os seus poemas, dentre os que me pareciam
os mais bem feitos, eu lhes perguntava o que queriam dizer, para aprender
também alguma coisa com eles.
Agora, ó cidadãos, eu me envergonho de vos
dizer a verdade; mas também devo manifestá-la. Pois que estou para afirmar que todos
os presentes teriam discorrido sobre tais versos quase melhor do que
aqueles que os haviam feito.
Em poucas palavras direi ainda, em relação aos
trágicos, que não faziam por sabedoria aquilo que faziam, mas por certa natural
inclinação, [22 c] e intuição, assim como os adivinhos e os vates; e em verdade,
embora digam muitas e belas coisas, não sabem nada daquilo que dizem. O mesmo
me parece acontecer com os outros poetas; e também me recordo de que eles, por
causa das suas poesias, acreditavam-se homens sapientíssimos ainda em outras
coisas, nas quais não eram. Por essa razão, pois, andei pensando que, nisso eu
os superava, pela mesma razão que superava os políticos.
VIII
Por fim, também fui aos artífices, porque
estava persuadido de que, por assim dizer, nada [22 d] sabiam, e, ao contrário, tenho
que dizer que os achei instruídos em muitas e belas coisas. Em verdade, nisso
me enganei: eles, de fato, sabiam aquilo que eu não sabia e eram muito mais
sábios do que eu. Mas, cidadãos atenienses, parece-me que também os
artífices tinham o mesmo defeito dos poetas: pelo fato de exercitar bem a
própria arte, cada um pretendia ser sapientíssimo também nas outras coisas de
maior importância, e esse [22 e] erro obscurecia o seu saber.
Assim, eu ia interrogando a mim mesmo, a
respeito do que disse o oráculo, se devia mesmo permanecer como sou, nem sábio
da sua sabedoria, nem ignorante da sua ignorância, ou ter ambas as coisas, como
eles o têm.
Em verdade, respondo a mim e ao oráculo que me
convém ficar como sou.
IX
Ora, dessa investigação, cidadãos atenienses,
me vieram muitas inimizades e tão odiosas e graves [23 a] que delas se derivaram
outras tantas calúnias e me foi atribuída a qualidade de sábio; pois que, a
cada instante, os presentes acreditam que eu seja sábio naquilo que refuto os
outros. Do contrário, ó cidadãos, o deus é que poderia ser sábio de verdade, ao
dizer, no oráculo, que a sabedoria humana é de pouco ou nenhum preço; e parece
que não tenha querido dizer isso de Sócrates, mas que se tenha servido do meu
nome, tomando-me, por exemplo, como se dissesse: [23 b] Aqueles dentre vós, ó homens,
são sapientíssimos os que, como Sócrates, tenham reconhecido que em realidade
não tem nenhum mérito quanto à sabedoria.
Por isso, ainda agora procuro e investigo
segundo a vontade do deus, se algum dos cidadãos e dos forasteiros me parece
sábio; e quando não, indo em auxílio do deus, demonstro-lhe que não é sábio. E,
ocupado em tal investigação, não tenho tido tempo de fazer nada de
apreciável, nem nos negócios públicos, nem nos privados, mas encontro-me em
extrema [23 c] pobreza, por causa do serviço do deus.
Além disso, os jovens ociosos, os filhos dos
ricos, seguindo-me espontaneamente, gostam de ouvir-me examinar os homens, e
muitas vezes me imitam, por sua própria conta, e empreendem examinar os outros;
e então, encontram grande quantidade daqueles que acreditam saber alguma coisa,
mas, pouco ou nada sabem. Daí, aqueles que são examinados por eles
encolerizam-se comigo assim como com eles, e dizem que há um tal Sócrates,
perfidíssimo, [23 d]que corrompe os jovens. E quando alguém os pergunta o que é que
ele faz e ensina, não tem nada o que dizer, pois ignoram. Para não parecerem
embaraçados, dizem aquela acusação comum, a qual é movida a todos os filósofos:
que ensina as coisas celestes e terrenas, a não acreditar nos deuses, e a
tornar mais forte a razão mais débil. Sim, porque não querem, ao meu ver, dizer
a verdade, isto é, que descobriram a presunção de seu saber, quando não sabem
nada. [23 e] Assim, penso, sendo eles ambiciosos e resolutos e em grande número, e
falando de mim concordemente e persuasivamente, vos encheram os ouvidos
caluniando-me de há muito tempo e com persistência. Entre esses,
arremessaram-se contra mim Meleto, Anito e Licon: Meleto pelos poetas, Anito[24 a] pelos
artífices, Licon pelos oradores. De modo que, como eu dizia no princípio,
ficaria maravilhado se conseguisse, em tão breve tempo, tirar do vosso ânimo a
força dessa calúnia, tornada tão grande.
Eis a verdade, cidadãos atenienses, e eu falo
sem esconder nem dissimular nada de grande ou de pequeno.
Saibam, quantos o queiram, que por isso sou
odiado; é que digo a verdade, e que tal é a calúnia contra mim e tais são as
causas. E tanto agora como mais tarde ou em qualquer tempo, [24 b] podereis considerar
essas coisas: são como digo.
X
É suficiente, pois, esta minha defesa diante de
vós, contra a acusação movida a mim pelos primeiros acusadores. Agora
procurarei defender-me de Meleto, homem de bem e amante da pátria, como dizem,
e um dos últimos acusadores.
Voltemos, portanto, ao ato de acusação, jurado
por ele, como por outros acusadores. É mais ou menos assim:
-Sócrates – diz a acusação – comete
crime corrompendo os jovens e não considerando como deuses os deuses que a
cidade considera, porém outras divindades novas.[24 c] – Esta é a acusação.
Examinemo-la agora, em todos os seus vários pontos. Diz, primeiro, que cometo
crime, corrompendo jovens. Ao contrário, eu digo, cidadãos atenienses, Meleto é
quem comete crime, porque brinca com as coisas graves. Conduzindo com
facilidade os homens ao tribunal, aparentando ter cuidado e interesse por
coisas em que de fato nunca pensou. Procurarei mostrar-vos que é bem assim.
XI
-Agora, dize-me, Meleto: não é verdade que te
importa [24 d ] bastante que os jovens se tornem cada vez melhores, tanto quanto
possível?
-Sim, é certo.
-Vamos, pois, diga-lhes quem os torna melhores;
é claro que tu o deves saber, sendo coisa que te preocupa, tendo de fato
encontrado quem os corrompe, como afirmas, uma vez que me trouxeste aqui e me
acusa. Continua, fala e indica-lhes quem os torna melhores. Vê, Meleto, calas e
não sabes o que dizer. E, ao contrário não te parece vergonhoso e suficiente
prova do que justamente eu digo, que nunca pensaste em nada disso? Mas, dizes,
homem, de bem, [24 e] quem os torna melhores?
-As leis.
– Mas não pergunto isso, ótimo homem, mas qual
o homem que sabe, em primeiro lugar, isso exatamente, as leis.
– Aqueles, Sócrates, os juízes.
– Como, Meleto, esses são capazes de educar os
jovens e os tornar melhores?
-Como não?
-Todos, ou alguns apenas, outros não?
– Todos.
– Muito bem respondido, por Hera: Vê quanta
abundância de pessoas [25 a] úteis! Como? Também estes, que nos escutam, tornam
melhores os jovens ou não?
– Também estes.
-E os senadores?
-Também os senadores.
– É assim, Meleto. Não corrompem os jovens os
cidadãos da Assembléia, ou também todos esses os tornam melhores?
– Também esses.
-Assim, pois, todos os homens, como parece,
tornam melhores os jovens, exceto eu. Só eu corrompo os jovens. Não é isso?
– Isso exatamente afirmo de modo conciso.
– Oh! Que grande desgraça descobriste em mim! E
responde-me: será assim também para os cavalos? que aqueles que os tornam
melhores [25 b] são todos homens e que só um os corrompe? ou será o contrário, que um
só é capaz de os tornar melhores, e bem poucos aqueles que entendem de
cavalos; e os mais, quando querem manejá-los e usá-los, os estragam? Não é
assim, Meleto, para os cavalos como para todos os animais? Sim, certamente,
ainda que tu e Anito o neguem ou afirmem. Pois [25 c] seria uma grande fortuna para os
jovens que um só corrompesse e os outros lhe fossem todos úteis. Mas, na
realidade, Meleto, mostraste o suficiente que jamais te preocupaste com os
jovens, e claramente revelaste o teu desmazelo, que nenhum pensamento te passou
pela mente, disto que me acusas.
XII
– E, agora, dize-me, por Zeus, Meleto: que é
melhor: viver entre virtuosos cidadãos ou entre malvados? Responde, meu caro,
não te pergunto uma coisa difícil. Não fazem os malvados alguma maldade aos que
são seus vizinhos, e alguns benefícios os bons?
– Certamente.
– [25 d] E haverá quem prefira receber malefícios a
ser auxiliado opor aqueles que estão com ele? Responde, porque também a lei
manda responder. Há os que gostam de ser prejudicados.
-Não, por certo.
-Vamos, pois, tu me acusas como pessoa que
corrompe os jovens e os torna piores, voluntariamente ou involuntariamente?
– Para mim, voluntariamente.
– Como, Meleto? Tu, nesta idade, és mais sábio
do que eu, tão velho, sabendo que os maus [25 e] fazem sempre mal aos mais
próximos e os bons fazem bem: eu, pois, cheguei a tal grau de ignorância que
não si nem isso, que se tornasse maus alguns daqueles que estavam comigo,
correria o risco de receber dano, se é que faço um tão grande mau, como dizes.
Não te creio, Meleto, quanto a isso, e ninguém te acredita, penso.
[26 a] Mas, ou não os corrompo, ou, se os corrompo, é
involuntariamente, e em ambos os casos mentiste. E, se os corrompo
involuntariamente, não há leis que mandem trazer aqui alguém, por tais fatos
involuntários, mas há as que mandam conduzi-lo em particular, instruindo-o,
advertindo-o; é claro que se me convencer, cessarei de fazer o que estava fazendo
sem querer. Tu, ao contrário, evitaste encontrar-me e instruir-me, não o
quiseste; e me conduzes aqui, onde a lei ordena citar aqueles que tem
necessidade de pena e não de instrução.
XIII
Mas, cidadãos atenienses, os fatos evidenciaram
o que eu sempre disse. Jamais Meleto prestou [26 b] atenção a tais coisas, nem muita,
nem pouca. Todavia, explica, Meleto, o que significa a tua expressão, dizendo
corrompo os jovens. É claro, segundo a acusação escrita por ti mesmo, que
ensino a não respeitar os deuses que a cidade respeita, porém, outras
divindades novas. Não dizes que os corrompo, ensinando tais coisas?
-Sim, é isso mesmo que eu digo, sempre que
posso.
– Assim, pois, Meleto, por estes mesmos deuses,[26 c]
de que agora está falando, fala ainda mais claro, a mim e aos outros. Não
consigo entender se dizes que eu ensino a creditar que existem certos deuses –
e em verdade creio que existem deuses, e não sou de todo ateu, nem sou culpado
de tal erro – mas não são os da cidade, porém outros, e disso exatamente me
acusam, dizendo que eu creio em outros deuses. Ou dizes que eu mesmo não creio
inteiramente nos deuses e que ensino isso aos outros?
– Eu digo isso, que não [26 d] acreditas inteiramente
nos deuses.
– Admirável Meleto, a quem disse eu isso? Não
creio, pois, do mesmo modo que os outros homens, que o sol e a lua são deuses?
-Não, por Zeus, ó juízes: ele disse de fato que
o sol é uma pedra, e a lua, terra.
– Tu acreditas acusar Anaxágoras, caro Meleto;
e me desprezas tanto e me consideras tão privado de letras a ponto de não saber
que os livros de Anaxágoras Clazomênio estão cheios de tais raciocínios? De
modo que os jovens aprendem coisas de mim, pelas quais podem talvez, [26 e] pagando
todos no máximo uma dracma, rir-se de Sócrates, quando se lhe atribui
arrogância, embora isso pareça estranho. Mas, por Zeus, assim te parece, que eu
creio que não exista nenhum deus?
-Nenhum, por Zeus, nenhum mesmo.
– És de certo indigno de fé, Meleto, e também a
ti mesmo, me parece, tais coisas são inacreditáveis. Porque este homem,
cidadãos atenienses, me parece a própria arrogância e imprudência, e certamente
escreveu essa acusação por medo, intemperança e leviandade juvenil. De fato
ele, para mim, se assemelha a alguém que proponha um enigma e diga,[27 a] interrogando-se
a si mesmo: Perceberá Sócrates, o sábio, que eu estou zombando dele e me
contradigo, ou conseguirei enganá-lo e aos outros que me ouvem? E, ao
contrário, me parece que, no ato da acusação, se contradiz de propósito, como
se dissesse: Sócrates comete crime, não acreditando nos deuses, mas acreditando
nos deuses. E isso, na verdade é fazer zombaria.
XIV
– Considerai, pois, comigo, ó cidadãos, de que
modo me parece que ele diz isso. Responde-nos tu, Meleto, e vós, como pedi a princípio,
não façais [27 b] rumor contra mim, se conduzo o raciocínio desse modo. Existem entre
os homens, Meleto, os que acreditam que há coisas humanas, que não há homens?
Que responda ele, ó juízes, sem resmungar ora uma coisa ora outra. Há os que
acreditam que não há cavalos, e coisas que tenham relação com os cavalos sim?
Ou acreditam que não há flautistas, e coisas relativas à flauta sim? Não há?
Ótimo homem, se não queres responder, digo-o eu, aqui, a ti e aos outros
presentes. Mas, ao menos, responde a isto: Há quem acredite que há coisas
demoníacas, [27 c] e demônios não?
– Não há.
-Oh! como estou contente que tenhas respondido
de má vontade, constrangido por outros! Tu dizes, pois, que eu creio e ensino
coisas demoníacas, sejam novas, sejam velhas; portanto, segundo o teu
raciocínio, eu creio que há coisas demoníacas e o juraste na tua acusação. Ora,
se creio que há coisas demoníacas, certo é absolutamente necessário que eu
creia também na existência dos demônios. Não é assim? Assim é: estou certo de que
o admites, porque não respondes.[27 d] E não temo em apreço os demônios como deuses
ou filho de deuses? Sim, ou não?
– Sim, é certo.
– Se, pois, creio na existência dos demônios,
como dizes, se os demônios são uma espécie de deuses, isso seria propor que não
acredito nos deuses, e depois, que, ao contrário, creio nos deuses,
porque ao menos creio na existência dos demônios. Se, por outra parte, os
demônios são filhos bastardos dos deuses com as ninfas, ou outras mulheres, das
quais somente se dizem nascidos, quem jamais poderia ter a certeza [27 e]de que são
filhos dos deuses se não existem deuses? Seria de fato do mesmo modo absurdo
que alguém acreditasse nas mulas, filas de cavalos e das jumentas, e
acreditassem não existirem cavalos e asnos. Mas, Meleto, tua acusação foi feita
para me pôr à prova, ou também por não saber a verdadeira culpa que me pudesses
atribuir: por que, pois, te arriscas a persuadir um homem, mesmo de mente
restrita, de que pode a mesma pessoa acreditar na existência das coisas demoníacas
e divinas, e, de outro lado, essa pessoa não admitir demônios, nem deuses, nem
heróis?[28 a] Isso não é possível.