UM RETRATO DO IMPERADOR
Paulo Setúbal
Dos “Ensaios Históricos”
Tema do mais vivo interesse, que ainda
não tentou a análise da psiquiatria brasileira, mas tema altamente fascinante,
e, ao mesmo tempo, valiosíssima contribuição histórica, seria o estudo, através
de determinantes genealógicos, da individualidade complexa e sedutora desse
irregular D. Pedro I, fundador do império do Brasil. Um psiquiatra de talento,
modernizado, sabendo escrever com agilidade e cor, faria, sem dúvida, dessa
tese, ainda virgem, uma encantadora página de literatura e ciência. Trabalho
penoso, trabalho de esforço e paciência, é certo. Mas que precioso trabalho,
precioso e belo, não seria o de se fixar, através das heranças mentais e dos
atavismos acumulados, a estrutura psicológica desse monarca ardente. Descarnar,
através das taras, dos estigmas, dos legados mórbidos dos avós, os componentes
da alma bravia, da alma desordenada, desse iletrado e desse iluminado, desse
vulgar e desse genial, desse aristocrata e desse plebeu, desse absolutista e
desse liberal, desse piedoso e desse erótico, que foi, ao mesmo tempo, em
contrastes chocantes, aquele galhardo imperador do Brasil.
Porque D. Pedro
é uma estranha cordilheira: tem picos que roçam alto nas nuvens, tem depressões
que descaem fundo ao chão. Foi ele, o homem dos absurdos, quem, num gesto
épico, desistiu da coroa secular de Portugal, para, romanticamente, cingir a
coroa frágil do Brasil que nascia. E foi ele próprio quem, num assomo de
impulsivo, desistiu daquela mesma coroa do Brasil, que criara, e lá foi o
intrépido visionário, reconquistar através de lutas inenarráveis, aquela mesma
co-. roa de Portugal que repudiara. Foi ele quem, com ousado, e, para o seu tempo,
com moderníssimo, admirável liberalismo, elaborou a constituição que devia
reger os seus povos, mas também foi ele quem, num ímpeto de autoritário, que
bem revelava o fundo absolutista do seu caráter, dissolveu, com baionetas e
canhões a assembleia constituinte que se atreveu a discutir a mesma
constituição. Foi ele quem, nos dias efervescentes da Independência, chegando a
dar a José Bonifácio, ternamente o título de "meu pai", guindou o
patriarca às maiores alturas do império, mais foi ele também que, num dos seus
azedumes irreprimíveis, mandou prender a esse mesmo José Bonifácio, desterrá-lo
da pátria, persegui-lo, para afinal, nos dias amargos, buscá-lo de novo,
chamá-lo . publicamente, de "cidadão grande, honrado e probo", e,
mais do que isso, entregar-lhe, como a seu mais fiel amigo, a tutela do filho
pequenino, herdeiro do trono. Foi ele quem, ao tempo da primeira mulher, se
mostrou o mais gelado de todos os maridos e o mais amoroso de todos os amantes,
foi ele também quem, ao tempo da segunda mulher, se mostrou o mais gelado de
todos os amantes e o mais amoroso de todos os maridos. Tipo extraordinário!
Curiosa personalidade! Corno explicar, através dos ancestrais, essa alma
contraditória? Eis– o que seria profundamente interessante.
Logo, no quadro atávico, se nos deparam duas
figuras dignas de serem agudamente observadas: o pai e a mãe de D. Pedro, isto
é, D. João VI
e
D. Carlota Joaquina. D. João é aquele tipo de erótico e de temente a Deus, de
glutão e de beato, em que desembocaram os estigmas da combalida dinastia dos
Braganças. D. Carlota Joaquina, a espanhola, é por seu turno, um paradigma de
mulher desregrada e erótica, e, ao mesmo tempo, de mulher lutadora, audaciosa,
masculinizada, que vivia para ação e pela ação. D. João — detalhe grave — era
filho de D. Maria I, uma louca. D. Carlota, de seu lado, era filha de Carlos IV, que, sensual e
beato, tal como D. João VI, era bem, com as suas degenerescências raciais, o
fruto natural da longa e enfraquecida dinastia da Espanha.
Ressaltam, de golpe, já nítidas, as linhas
mestras, confluentes, que entreteceram a individualidade tão marcada do
Imperador: lado paterno — uma louca, um sensual e um beato; lado
materno — um beato, uma sensual e desregrada. Subir, pela linha portuguesa e
pela linha espanhola, através de heróis, de santos, de guerrilheiros, ou
através de doentes, de psicopatas, de alucinados, catando, à luz das leis da hereditariedade,
as bossas que nitidamente se fixaram e se transmitiram, para afinal, numa
eclosão lógica, caracterizar os complexos e os determinantes que arcabouçaram a
psique de D; Pedro, explicando assim, para júbilo da Teologia e da Ciência, a
razão de ser dos seus atos e dos seus gestos — eis o estudo tentador que
desafia a acuidade dum cientista de boa vontade.
Certos
depoimentos e documentos coevos lançarão, por certo, fortíssimo jacto de luz
a tal ensaio. O depoimento, por exemplo, do Dr. Casanova. Foi o Dr,
Casanova, médico e cientista, que acompanhou ao Brasil o príncipe Augusto,
irmão de D. Amélia. Ele afirmava segundo Melo Morais, que D. Pedro, nos
últimos tempos do seu reinado, quando estava inteiramente obcecado pela
ideia de repor a filha no trono de Por-, tugal, tinha verdadeiras crises de
alienado: "dava evidentes sinais de alienação mental". Junte-se a
isso os documentos (entre outros um dos relatórios do cônsul francês ao seu
Ministro) que falam dos ataques de epilepsia do nosso simpático monarca, e
ver-se-á, com mais evidência, o quanto um estudo no género está gritando por
uma pena de médico e de psiquiatra.
Mas enquanto não aparece o homem de envergadura
capaz para tal obra, força é contentarmo-nos com o que há. Muitos são os que
tentaram fixar de D. Pedro um retrato que o analisasse com relevo. Não há
nenhum que se possa apontar como decisivo. Destaco, hoje, contudo, o retrato
literário mais colorido que me parece o teve o nosso primeiro Imperador. É de
Alberto Pimentel. Ei-lo:
"D. Pedro, filho de português e de
espanhola, era um desses temperamentos meridionais, especialmente peninsulares,
impressionáveis e arrebatadores, expansivos e volúveis, que contrastam
essencialmente com a fleugma, a contração, a atividade fria, metódica, das
raças do norte.
Custam a compreender esses temperamentos, às
vezes egoístas até a intransigência, outras vezes generosos até o sacrifício
umas vezes violentos até a cólera, "outras vezes afáveis até a bonomia,
umas vezes pertinazes, outras vezes submissos, mas quase sempre inclinados a
aceitar e a defender um ideal, embora mal compreendido, de justiça, de
liberdade e de progresso, porque a bondade ingente é como que o fundo das
organizações meridionais, aliás tão caprichosas e contraditórias.
Custam a compreender, sobretudo, quando quem tem
de julgá-los está eivado do mesmo defeito da raça e têm de dominar-se a si
próprios para revestirem a imperturbabilidade
de ânimo, a serenidade de espírito, que é habitual nos povos setentrionais.
Gastam-se depressa esses temperamentos
combustíveis, inflamáveis. O fogo, que os vitaliza, devora-os em um incêndio
dia a dia ateado.
D. Pedro é bem um desses temperamentos,
acrescendo nele a circunstância de que todos os movimentos impulsivos da
natureza meridional não puderam ser moderados pela força repressiva que nasce
da educação, da instrução e do exemplo doméstico.
Criado à lei da natureza, pouco
ilustrado, abandonado a si mesmo pela falta duma prudente tutela paterna, D.
Pedro faz lembrar as plantas silvestres que nascem sem cultivo, que vivem sem
resguardos, e que morrem crestadas pelo sol violento ou pelas geadas
bravas.
E, contudo, havia no caráter desse
Príncipe o quer que fosse de bondade inata, que não raras vezes se deixava
desvairar, e que, outras vezes, se submetia, como uma criança, à menor
resistência.
Nascendo e vivendo no meio duma corte que não
conheceu nunca as grandes ideias do espírito humano, em uma corte onde a
luz intelectual e moral das sociedades modernas jamais deixou coar seus primeiros
dilúculos, não repugnou contudo, a D. Pedro adotar os novos
moldes em que a reação política do século XVII fundiu em bronze
o código das liberdades contemporâneas.
Nascendo e vivendo numa corte onde a
ilustração era um luxo desconhecido, onde o gosto pela educação artístíca não
chegou nunca a deitar raízes. D. Pedro possuía, por um dom da natureza, a
impressionabilidade vibrátil que, se tivesse sido devidamente desenvolvida e
disciplinada, poderia ter feito dele um artista, um poeta, um homem
intelectualmente distinto.
Mas, entregue a si mesmo, depois da morte
do erudito João Rademaker, que lhe guiou os primeiros passos, o herdeiro de D.
João VI
não
passou nunca dum curioso, dum amador incorreto, que amava a música e
a poesia e que, com mau feitio, revelava, em lances difíceis, agudeza de
espírito e facilidade de percepção.
Esse "mau feitio" era, em muitas
ocasiões de sua vida, o bom humor imoderado, que chegava até o sarcasmo; era a
expansão inconveniente que chegava até a indiscrição irritante; era o azedume
desregrado que não escolhia palavras, nem poupava pessoas; era a desconfiança,
o receio da perfídia, a dúvida constante que tinha aprendido com seu pai.
De resto, não havia pessoa de hábitos
mais sim: pies, príncipe menos ostentoso na sua maneira de viver, D.
Pedro passou sempre como um burguês trabalhador que se levanta com o sol e
que se deita às 10 horas da noite, tendo
uma mesa frugal, um guarda-roupa escasso e uma aproximação facilmente acessível.
Predominava nele a alegria expansiva; mas não era raro vê-lo descair de
repente na irritabilidade agreste ou no obumbramento taciturno. Com a gente
moça, especialmente com as crianças, mostrava-se ordinariamente afetuoso, muito
jovial.
Aborreciam-lhe as baixezas do pretendente
servil, do áulico mesureiro e hipócrita; mas recebia de boa sombra os pedidos
que lhe eram feitos em linguagem franca e sincera.
Ativo, incansável, apesar de parecer mais
forte do que era, porque desde muito sofria do fígado e dos rins, gostava, como
seu irmão D. Miguel de todos os exercícios de destreza e força. Contava ele
próprio que havia dado trinta e seis quedas. De uma vez, fraturara duas
costelas; de outra vez, em 1829, sete.
Era elegante, de
estatura mais que regular. Tinha urna bela testa, uns olhos dominadores, um
olhar sobranceiro. Nas faces pálidas divisavam-se-lhe avelados. A
expressão da fisionomia era, por vezes, dura. Dava-lhe a impressão de um
homem bravio: "of a savage looking raan", como diz Napier, que tão de
perto o conheceu e tratou, se bem que não era esse o seu caráter. A sua
índole foi sempre aberta e franca, às vezes demais.
Mas um clarão de alegria, de jovialidade
até, amansava às vezes essa dureza de expressão, tornando-lhe o semblante
comunicativo e simpático.
Não conhecia perigo, nem dificuldades quando
chegava a se aquecer, a se entusiasmar por uma idéia.
A princípio hesitava, pesavam no seu
espírito mais os contra do
que os prós duma empresa. Mas se alguém lhe acordava a razão, se lhe
falavam com energia, como às vezes
acontecia, aceitava o bom conselho, seguia-o, passava corajosamente por cima
dos primeiros e últimos obstáculos.
Era também, como seu irmão Miguel, muito
afeiçoado ao ofício de torneiro, vocação atávica que herdara do rei D. José.
Ainda, como seu irmão D. Miguel, gostava da equitação, da caça, do bilhar, da
esgrima e principalmente do florete. Pelos assuntos militares. .."
Vai já longo o retrato. Terminemos aqui. O
resto, quem quiser ler, leia-o no original. É muito bem feito.
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