Viana do Castelo e Caminha

Oliveira Lima

Viana do Castelo e Caminha

Para um pernambucano que se tem ocupado da história da sua terra natal, Viana do Castelo oferece um particular atrativo: das cidades minhotas é a que mais íntimas ligações teve com o feudo de Duarte Coelho, desde os seus inícios. Ao que escrevia o jesuíta Fernão Cardim, na segunda metade do século XVI, os habitantes mais nobres de Pernambuco, os que mais luxavam em Olinda, eram oriundos de Viana: por eles se distribuíra o melhor das sesmarias outorgadas pelo donatário. De Viana era o instituidor dos primeiros morgados em Pernambuco, esse Paes Barreto de filantrópicos sentimentos, que também fundou o nosso primeiro hospício de caridade c quis morrer entre os seus pobres.

Não só Pernambuco contou vianeses nas suas origens. De Viana era o donatário da capitania de Porto Seguro, Pedro de Campos Tourinho, o qual, para bem corresponder à mercê real, vendeu todos os seus haveres e partiu levando consigo família, parentes, amigos, dependentes e conhecidos destes, com eles fundando Porto

Seguro, Santa Cruz e Santo Amaro. Se o fidalgo vianês não foi tão feliz no seu empreendimento quanto Duarte Coelho, sua obra não foi entretanto das mais precárias entre tantas aventurosas e heróicas empresas de colonização. Nem com a forma político-social do feudalismo ultramarino tem propriamente a ver a resistência do elemento transplantado de povoamento, o qual vingou com uma outra modalidade administrativa.

Ao lado da bela vivenda do meu velho amigo Sr. Antônio Tomás Quartin, que foi meu anfitrião, ergue-se o templo de N. S. da Agonia cuja festa é tradicional e das de maior renome no país, e onde repousa, exposto num altar, o corpo de S. Severino, de milagrosa memória, que em Pernambuco 6 também objeto de fervorosa devoção, sendo a sua igreja na linha férrea do Limoeiro visitada por numerosos romeiros.

Olhando para a esquerda descortina-se entre as árvores do jardim, perto do antigo Convento de S. Domingos, em cuja igreja, com uma portaria de ingênuas esculturas, se encerra o túmulo do grande Arcebispo de Braga, D. Frei Bartolomeu dos Mártires, de quem Frei Luís de Souza escreveu tocante biografia, o palácio do célebre Capitão-General de Pernambuco, o último da série, que se chamou Luís do Rêgo. Era natural de Viana e aqui veio residir, constituindo um elo mais entre o Minho, Viana do Castelo especialmente, e Pernambuco.

Seu nome é muito odiado entre nós e não foi êle por certo um modelo de brandura. Nem foi despachado para o Recife, uma vez sufocada a revolução de 1817, para exercer clemência e sim para reprimir novos levantes independentes e republicanos. Não devemos contudo esquecer que, no cumprimento dos seus deveres de militar e de procônsul, êle não recorreu a crueldades, antes recomendou que cessassem as perseguições da justiça civil, já que estavam castigados os cabeças. O constitucionalismo de Luís do Rêgo parece ter sido sincero, pois que em Portugal, após seu regresso, aceitou êle combater pelo governo os revolucionários absolutistas de Trás-os-Montes.

A vivenda do Sr. Quartin tem em frente o campo do Castelo, com o forte filipino — na sua origem afonsino e depois manuelino — que na extremidade do terreno das feiras se debruça sobre o mar com suas cortinas musgosas e suas guaritas intactas, e por trás levanta-se o Monte de Santa Luzia, cuja encosta é uma sucessão de quintas de pequenos campos de lavoura de milho divididos por baixos muros de pedra solta, de ermidas perdidas no arvoredo, e no remate o clássico pinheral. Sob o céu de azul de uma luz incomparável, esta paisagem tem um quê de italiana e a impressão não é desmanchada pelas velas latinas que se divisam ao longo das praias, inclinadas pelo vento.

No alto de Santa Luzia, hoje servido por um funicular, existe um grande hotel edificado há anos pelo benemérito vianense Domingos de Moraes e existe também em construção, com as obras porém momentaneamente paradas, um amplo templo destinado a substituir a ermida, que perdura na sua modéstia. Existem igualmente curiosas ruínas para cuja escavação muito contribuiu o Sr. Quartin, na intenção de reconstituir um pequeno povoado dos séculos IX e XVII antes de Cristo.

O arqueólogo Félix Alves Pereira devia proceder a esta recons-lituição e ocupou-se do ópido de Santa Luzia numa publicação sobre as habitações castrejas, provavelmente pré-célticas e possivelmente lígures, filiada nos estudos de Martins Sarmento, que é a grande autoridade portuguesa na matéria e que êle próprio iniciara a reconstrução de uma das habitações circulares da Citânia, de toscamente ornamentadas.

* O Sr. Quartin, antigo negociante da praça do Rio de Janeiro e homem instruído, não se preocupa porém apenas com reconstituições arqueológicas; é tipicamente representativo da classe de brasileiros que têm dotado o Minho de tantos estabelecimentos de ensino primário e profissional, de beneficência pública e do culto, não sendo demasiados quaisquer louvores à sua filantropia cívica e religiosa. De Braga para Guimarães, por exemplo, notei duas importantes fundações do Sr. Conde de Agrolongo; o grande hospício da capital minhota e formosa Igreja das Taipas. Como mordomo que é do hospício da Caridade, fêz-me o Sr. Quartin visitar essa instituição que é modelar na limpeza, dando a melhor impressão aos que ali vão. É magnífica a casa onde se albergam mais de 200 velhos de ambos os sexos: vastas e arejadas as camaratas, espaçosos e limpos os refeitórios, cuidados os banheiros e outras instalações higiênicas.

O hospício é todo moderno e no salão de reunião do seu consistório se guardam a alcofa e a campainha com que seus primeiros organizadores saíam em bando precatório a recolherem donativos. Tudo se fêz com o produto de esmolas. Do antigo edifício, que era Convento de Santana, fronteiro ao belo e histórico palácio dos Távoras, de molduras manuelinas nas portas e nas janelas, aproveitaram-se o claustro, de elegante arquitetura, e a igreja que tem rica obra de talha e um aspecto a um tempo suntuoso e atraente, constituindo talvez a mais notável construção religiosa de uma cidade onde não faltam templos — cada uma das ordens religiosas tinha o seu — e que até oferece na sua Misericórdia um exemplar arquitetônico, com uma galeria sobreposta, como não há outro parecido ao que se diz no país.

Seguindo para o norte a linha da costa, por uma estrada que vai numa reta entre as sinuosidades das praias e uma cadeia de montes quase todos arborizados, raros os de penhascos, ostentando nas suas fraldas residências geralmente caiadas de branco, muitas delas amplas e sempre cercadas de quintas, igrejas com seus adros decorados de cruzeiros, numa série interrupta, passa-se pela Areosa, por Afife, terra de estueadores, por Âncora, que é uma praia de banhos freqüentada, por Maledo a que dá acesso o pinhal de Camarido que a estrada atravessa e que é composto de exemplares de grandes proporções, chega-se com 25 quilômetros de percurso à Vila de Caminha, uma das mais típicas certamente da terra portuguesa.

A situação topográfica é das mais lindas, na foz do Rio Minho, divisa com a Espanha, em frente à terra galega, de montes agrestes e povoações sorridentes à beira d’água. Não sei se devido à sua calma profunda em contraste com um mar agitado, de ondas verdes e crespas; se devido a uma torre quadrada encimada por um sino, verdadeiro beffroi de cidade flamenga, Caminha sugeriu-me a recordação de Bruges. Pode dizer-se que a vila se compõe de duas ruas estreitas que ambas vão, calçadas à moda antiga de grandes lajes, de um piso agradável, do cais ao largo onde se encontram a Misericórdia, ao lado do beffroi, c o chafariz grande e ornamentado, terminado por uma cruz d’Aviz.

Numa dessas duas ruas faz esquina com uma viela o antigo solar dos Duques de Caminha e para a mesma dá as costas a velha matriz, cuja frente fica para um pequeno largo onde cresce a erva. A igreja é das mais interessantes porque condensa a evolução arquitetônica e decorativa do país. Tem uma ampla nave de altos arcos românicos: uma frontaria gótica no seu feitio incipiente mas já ornado de uma bonita rosa; e uma portada lateral manuelina, púlpitos românicos de pedra e gasta escadinha de caracol: abóbadas artesonadas no gosto manuelino; grandes altares de admirável talha dourada em opulento estilo do século XVII; pequenos altares branco e ouro do século XVIII; um altar figurando em talha dourada a árvore genealógica da Virgem, partindo o tronco do Rei Davi; um sacrário representando os passos em madeira esculpida e um teto uniforme e excelentemente conservado em castanho entalhado.

A matriz de Caminha tem um ponto de analogia com catedrais flamengas, quem sabe se devido a algum artista belga por aqui transviado. Uma das gargonilles — não lhe posso chamar carranca porque é o inverso disso — do telhado, que deve ser do século XIV ou XV, lança a água pelo orifício da traseira, que a personagem sustenta com as mãos ambas. Diz a tradição que a traseira está intencional e patrióticamente voltada para as bandas d’Espanha, mas a verdade é que estas decorações porcas e outras pornográficas são assaz vulgares nas igrejas medievais da Bélgica, existindo mesmo um livro moderno que se ocupa exclusivamente do assunto, reproduzindo em descrição e em gravura esses documentos de arte baixa.

Fonte: Oliveira Lima – Obra Seleta – Conselho Federal de Cultura, 1971.

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