Beiriz

Oliveira Lima

Beiriz I

Beiriz é uma freguesia quase a igual distância da Póvoa de Varzim e de Vila do Conde, situada mais para o interior entre pinhais, milharais e vinhedos, além de alguns campos em que só crescem urzes. Há uma aldeia e há sobretudo um grupo de habitações pertencentes à família Almeida Brandão. O falecido Comendador Almeida Brandão, um dos homens ricos da Bahia, era também um homem bom na velha acepção do termo — representante dessa classe de burgueses ativos» e orgulhosos que pediam ao rei nas antigas cortes, mas no começo da monarquia, que lhes fizesse a mercê de não terem que hospedar fidalgos no seu burgo portuense. Com esses homens bons Portugal se afoitou nos mares e sobretudo emprestou às suas conquistas o caráter de continuidade que permitiu ao Brasil transformar-se numa nova e pujante nacionalidade.

No pequeno discurso com que me fêz a honra de encerrar as minhas conferências na Universidade de Lisboa, Teófilo Braga salientou este traço da colonização portuguesa, notando que dos países europeus apenas a Inglaterra, a Espanha e Portugal fundaram nações ultramarinas perpetuando sua língua e seu gênio. Depois do Brasil independente, o elemento português continuou a ser um fator essencial do nosso progresso material e porventura ainda mais moral. Entre os dois povos não existiu durante bastante tempo grande cordialidade. O português que ficava no reino desfazia facilmente do Brasil: travava-lhe na boca a separação. O que emigrava porém e que constituía família apegava-se à terra com sincero afeto. Lembro-me de que meu pai, que era um homem bom do Porto, formulava suas críticas das coisas portuguesas com o comedimento e a urbanidade que eram peculiares à sua natureza, mas não permitia que diante dele se criticasse das coisas brasileiras. Só admitia uma superioridade na velha pátria: era a da fruta.

Este tipo do português autodidata e prezando a educação, liberal nas suas idéias mas conservador nos seus princípios políticos ou religiosos, inteligente, porque a inteligência não consiste tanto em escrever bonito como em saber elevar-se pelo trabalho, um quase nada ou mesmo nalguns casos bastante vaidoso, pois que tinha de quê, geralmente econômico e entretanto generoso, legando somas avultadas para essa instituição admirável da Rainha Dona Leonor, que foram as misericórdias e dotando o seu berço de hospitais, escolas e creches, desapareceu muito com a profunda alteração do meio social nas duas terras, nos seus hábitos e nas suas tendências. Não é um tipo que haja ainda sido fielmente descrito: ou o fazem boçal e na melhor hipótese apagado, ou o fazem ridículo. Ramalho Ortigão retratava o brasileiro do Minho com sua camisa de bretanha anilada parecendo uma nesga de céu azul pregado com um brilhante, esquecendo que seu próprio irmão foi um português do Rio, de grande merecimento pela sua instrução e espírito cívico.

O brasileiro desempenha num certo sentido, no Minho dos nossos dias, o papel do frade no Minho antigo: a êle se deve a perspectiva de prosperidade da região. Percorrendo-a, vemos destacarem-se dois tipos de construções: a igreja conventual, hoje geralmente freguesia, e a casa apalaçada do emigrante que voltou rico. A igreja é de ordinário ampla, de duas torres, com vistosos altares de talha dourada, a mor parte com os retábulos de colunas salomô-

Ricas engrinaldadas a profusão. Tem a patina do tempo c muitas vezes estampada nos seus detalhes arquitetônicos a sucessão dos léculos. O que outrora era mosteiro é agora escola, estabelecimento profissional ou simplesmente residência do comprador de bens religiosos, ou de quem desse os adquiriu. O cura ou abade vive ao lado da igreja, num passal despretensioso, levantado modernamente e caiado de branco, à moda regional.

O brasileiro abastado entende infelizmente que a moda regional é acanhada e atrasada. As suas habitações ou são casas de cidade ile dois andares, de gênero neutro, sem sombra de estilo, ou são imitações do estrangeiro, com torres e pavilhões, comumente copiando o chato francês. A sua pretensão inofensiva e não raro até ingênua estende-se às habitações póstumas. O monge era dantes sepultado anonimamente nas naves e nos claustros, com um simples número marcando a lousa. Os benfeitores tinham inscrições gravadas, celebrando suas virtudes, [………………………..] símbolo inconsciente da inanidade das vaidades humanas. Nos pequenos cemitérios anexos, aos templos depois que a lei vedou as inumações dentro destes, erguem-se jazigos-capelas de cantaria lavrada, em que repousam os ricos que mourejaram no Brasil, ali acumularam grossos cabedais e não querem morrer desconhecidos na sua própria terra, por isso perpetuando seus nomes cm doações benfazejas e em túmulos que são desafios à única e suprema igualdade que é a da morte.

De resto a igualdade vai-se impondo mesmo em vida, no que diz respeito à organização de classes. O morgado do passado, com seu solar na cidade ou vila, suas quintas e tapadas, cedera gradualmente o lugar ao brasileiro-bavão, que dentro da classe dos colonos ou emigrantes formava a aristocracia, fundada na fortuna como já houvera a fundada no berço. Com a crescente facilidade das comunicações, com a identidade das instituições — cá e lá só havendo cidadãos —, desaparecendo a monarquia, fonte de mercês, e substituindo-a a república, manancial de graças mais concretas do que as honrarias, c com outras circunstâncias, democratizou-se a colonização, subsistindo muito embora a desigualdade das fortunas.

Enquanto durar o mundo haverá ricos e pobres, e quer-me até parecer que os ricos vão ficando cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres. Como acontece em todo Portugal, o Minho está economicamente próspero como nunca: a situação financeira do Estado é que é deplorável. A desvalorização da moeda, se tem encarecido a vida, também tem feito subir extraordinariamente o preço das propriedades. Com o espírito de aventura do minhoto e pode dizer-se do português, coincide o carinho pelo torrão local e a ambição da mor parte dos que vão para longe tentar a sorte e adquirir campos — esses campos onde brincaram, onde começaram a labutar e também a amar.

Não é só para o Brasil que o minhoto emigra. Citaram-me dois irmãos, destituídos de cultura, e que estão proprietários em Nova York, a negociarem ali antiguidades, colchas da índia e pratas do Porto. Nos Estados Unidos as colônias portuguesas não são mais constituídas exclusivamente de açorianos. Nos departamentos franceses devastados pela guerra estavam ultimamente empregados 33.000 trabalhadores portugueses, multiplicando em escudos os francos que ganham. Estes trabalhadores não se transplantam: como as andorinhas, vão em março e regressam em novembro, fugindo às neves. O pecúlio que formam é colocado na nesga de terra onde cresce o milho ou no pinhal rigorosamente delimitado por muros. A quantidade de pedra empregada nestas divisões daria para levantar uma grande cidade.

Para se avaliar da importância dos pequenos capitais reunidos e trazidos por esses emigrantes basta dizer que um deles, analfabeto, que passou dois anos pastoreando gado na Califórnia, trouxe 27 contos: ora, por 25 contos ainda era há 7 anos vendida toda a vasta cerca do Convento de São Simão da Junqueira, cuja proprietária logo firmava um contrato para o corte, num ano, de 3.000 pinheiros por 5 contos.

A miséria não desapareceu porém no Minho com essa melhoria econômica. Ela continua a exibir os seus andrajos e as suas mazelas, porque é uma miséria das que são chamadas pitorescas porque ferem a vista e dão pasto à imaginação. A mendicidade não é só um destro ou uma tradição: é também uma necessidade, e ela aqui se exibe em formas por vezes mais repelentes do que atraentes da caridade. Pelas feiras do concelho em que me acho tenho encontrado leprosos e cancerosos, mas nenhum destes mendigos, que mereciam o lápis de Callot e com os quais se faria uma ótima reconstituição da Corte dos milagres, produzia a impressão macabra de um desgraçado, deitado de costas sobre um jumento albardado, com o tronco coberto por um lençol antes parecendo uma mortalha e as coxas e pernas mirradas levantadas para o ar, gemendo tristemente ao mesmo tempo que o guia conduzia o animal pela rédea e estendia a sacola de pedinte, entoando uma melopéia lúgubre.

II

Existem em Beiriz duas coisas em extremo interessante — a fábrica de tapetes, cuja reputação nacional já se está estendendo ao estrangeiro, e a Casa da Herdade, transformação artística de uma residência de lavrador que datava de 1732. A uma e outra coisas se prendem a iniciativa e o bom gosto brasileiros, pois que a fábrica •é obra de uma patrícia nossa, Senhora Dona Hilda de Miranda, neta pelo pai do Comendador Almeida Brandão e descendente pela mãe do Marquês de Inhambupe, e a Casa da Herdade, propriedade do Sr. Antônio Mário de Almeida Brandão, é em grande parte concepção de seu irmão, o atual ministro do Brasil em Estocolmo.

Esta residência não obedece a um estilo particular nacional ou estrangeiro. É antes uma adaptação, o que se pode chamar uma estilização no sentido do máximo conforto, aproveitando-se quanto possível motivos de arquitetura e de decoração portuguesas e até motivos regionais, como as pinturas minhotas nos portões da quinta. Assim os azulejos representam um papel importante como ornato, sendo obra de um falecido mestre do gênero, Pereira Cam, c figurando os dois mais importantes: o milagre da Virgem de Nazaré, ocorrido com Ruas Roupinho numa caçada, e o nobre jogo do estafermo, com que se entretinham os fidalgos que praticavam a arte de equitação, em que Marialva foi exímio.

Na Casa da Herdade foram utilizados, do modo mais inteligente, documentos interessantes do velho Portugal. A porta principal da quinta, guarnecida de altas almofadas, proveio da Igreja do Salvador, em Braga; o teto, as colunas torsas e a balaustrada da sala e da casa de jantar, que são um formoso exemplar da arte tão portuguesa da talha, pertenceram, originariamente, à Igreja dos Remédios da mesma cidade, vendida em hasta pública; os azulejos da ermida foram do Convento do Vairão e o retábulo do altar, em talha dourada, veio de uma Igreja do Alentejo.

Esta ermida, de invocação de Santa Luzia, colocada sobre um outeiro e rodeada de pinheiros, é encantadora. Caiada de branco, como é do estilo, parece no interior haver sido apenas restaurada e não edificada de novo. Ninguém lhe dará menos de 200 anos, tal é a sugestão exercida pelos seus menores detalhes, desde a galilé, com grades, que permite aos transeuntes verem o interior e orarem no vestíbulo enxergando o altar, até a fontezinha da sacristia para as abluções do sacerdote, sem esquecer um longo banco pintado, transportado de uma velha sacristia. O arquiteto, que é o Sr. Eurico Pereira, filho do mestre de azulejos, primou nessa reprodução em que se estampa a piedade portuguesa.

O proprietário, que é um amador da arte e um colecionador entendido e apaixonado de antiguidades, não tem entretanto a superstição estreita do maníaco, em que muitas vezes se converte o colecionador. Das traves de castanho não entalhadas da Igreja dos Remédios se serviu para mandar executar colunas iguais às que já havia, portas, molduras de lareiras e até aparadores e armários. A execução foi perfeita e o conjunto oferece uma impecável harmonia. Nem o conforto é sacrificado ao purismo artístico. A principal preocupação é a da comodidade: tanto melhor se a esta se pode agregar a beleza. Um inglês que foi hóspede da Casa da Herdade qualificou-a de self-contained, isto é, contendo tudo quanto se possa carecer.

O melhor é que ela contém o supérfluo, que não raro é aquilo que mais necessário nos parece.

Eu crismei a Casa do 202 do Jacinto transportado dos Campos Elíseos, senão para as serras do Douro, pelo menos para as imediações do litoral minhoto. Com a diferença também que tudo parece marchar, sem incidentes de progresso, desde as duches até o elevador da comida, onde nunca ficou engasgado um salmão do Rio Minho, êmulo do esturjão do Rio Volga. Para completar a analogia, tomou o lugar do escudeiro Grillo uma aia baiana, a quem estão confiados os vatapás e os carurus da terra natal.

Dentro da Casa há muito que ver e a mim sobretudo rne interessou uma excelente coleção de gravuras em que sobressaem numerosos retratos de Dom João VI, de Dona Carlota Joaquina, de Dom Pedro I e das imperatrizes. Há também quadros, dos quais um atribuído à célebre Josefa de Óbidos, belos contadores e bufetes de pau-santo e bastante prata joanina, afora exemplares cerâmicos e formosos cristais. O gosto é sempre apurado e o que mais encanta é a meticulosidade dos detalhes. A água que os alcatruzes tiram do poço despeja-se numa regueira de cantaria, que mais cristalina a faz parecer, e sombreia-a uma verde latada assente sobre pilares também de cantaria desbastada. Ao dobrar a esquina surpreendem-nos umas alminhas, a saber, um pequeno painel de azulejo representando o purgatório, com uma lamparina acesa no rebordo e uma inscrição solicitando do transeunte um óbulo em favor das almas que ali penam e que reclamam as preces dos .vivos. Não longe dessa piedosa tradição, um lavadeiro com todos os aperfeiçoamentos: decididamente o passado e o presente podem combinar-se, como se combinam também o útil e o agradável.

A vista da Casa estende-se sobre milharais que dão carros de pão e parreirais que dão pipas de vinho verde; mais perto desdobra-se, porém, um gracioso jardim de buxo, desenhado no gênero dos do palácio de Queluz, que já o foram sob a inspiração de Le-nôtre, com seus tanques e repuxos saídos da boca de golfinhos com que brincam cupidos, suas hermas e bancos gregos de pedra, suas fontes escondidas sob caramanchões. A horta e o pomar escondem-se por trás de um parque de grande variedade botânica, no qual as árvores parecem crescer a olhos vistos, enxergando-sc entre elas, de quando em vez, um pavão que passeia o seu papo de safira e a sua longa cauda multicolor.

A fábrica de tapetes representa uma indústria já florescente e que não data no entanto de muitos anos, tendo tido um berço obscuro. Uma mulher da terra dava-se ao trabalho de fazer pequenos tapetes de retalhos. Compreendendo o desenvolvimento que poderia ter essa modesta indústria e o emprego que poderia dar a muitas raparigas do lugar, a Sra. D. Hilda tentou a feitura de artefatos menos toscos. Servindo-se de lã nacional da Serra da Estrela, tinta nos mais variados matizes, começou com dois teares e meia dúzia de artífices. Hoje a fábrica comporta 58 teares horizontais, desde 0,80 a 4 metros de largura, nos quais duzentas operárias copiam os desenhos que lhes são distribuídos e manejando para isto o pêlo de lã seguro por meio de um nó. O fabrico é, portanto, todo a mão, como o dos chamados tapetes turcos, e na verdade a fábrica produz, entre outras, lindas imitações dos tapetes de Smirna.

Se pelo lado artístico a indústria referida, única no país, é deveras interessante, não menos o é do ponto-de-vista social. As operárias são tratadas, pode dizer-se, com desvelo e são-lhes incutidos princípios de asseio e higiene a que elas não andam própriamente acostumadas e que constituem um progresso sensível e neces-sário num meio em que a educação da limpeza ainda tem bastante por onde se alargar, em proveito aliás da estética, porque a raça é fisicamente bem dotada, sendo freqüentes os belos tipos. A Senhora D. Hilda de Miranda conseguiu, o que não é comum em muitas oficinas estrangeiras, a saber, que se possa num dia de verão visitar a sua fábrica sem que o olfato se revolte.

Também o lado moral é cuidado, sendo a tradição religiosa, tão cara à alma portuguesa, zelada como convém. As menores são instruídas no catecismo e eu próprio vi uma dezena delas, vestidinhas de branco, às custas da proprietária, serem levadas à primeira comunhão, por ocasião da festa da Assunção. É interessante que o palacete de habitação da família Miranda primitivamente destinado pelo avô da Sra. D. Hilda, o Comendador Almeida Brandão, que o edificou, para um estabelecimento de caridade, se tenha afinal tornado sede de um empreendimento de trabalho e de filantropia — a filantropia bem entendida que não rebaixa, antes exalta a criatura humana, tanto a que faz a caridade como a que a recebe.

A obra atual é susceptível de grande expansão e novas iniciativas se lhe vão agregando, como tecidos de juta e de linho — o Minho é a região produtora do cânhamo —, tanto mais quanto à Sra. D. Hilda tem a coadjuvá-la seu esposo, o Senhor Carlos de Miranda, antigo oficial da armada real portuguesa, que por motivo das suas convicções políticas renunciou à sua brilhante carreira e se converteu num industrial operoso e inteligente.

Com suas tradições de arte e de religião, com suas paisagens amenas, com seu clima delicioso, com sua atmosfera de trabalho sem discórdia, o Minho oferece um dos poucos recantos da Europa cm que ainda dá gosto viver.

Fonte: Oliveira Lima – Obra Seleta – Conselho Federal de Cultura, 1971.

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