O "mal do século" atingiu de forma definitiva, levando-o ao suicídio a VSEVOLOD MIKHAILOVITCH GÁRSHIN, fruto de uma sociedade agonizante e último produto de uma nobreza em decadência, que não soube reagir aos insultos das enfermidades e aos golpes das transformações sociais e espirituais de seu tempo. Os personagens deste escritor atormentado são todos vítimas de uma "consciência doente", homens torturados pelo problema do mal.
Vsevolod Mikhaïlovitch Garchine
Discíptilo de Gógol e de Dostoievski, o infeliz escritor nasceu em Bachmut, tendo estudado em São Petersburgo e tomado parte na guerra russo-turca.
Entre seus diversos contos mais conhecidos, é notável o que se chamou "Quatro Dias", inspirado nos horrores da guerra. "A flor vermelha" é outro relato seu de grande intensidade emotiva.
Gárshin viveu atormentado por uma doença nervosa, que o levaria a um trágico fim aos 88 anos de idade.
O SINAL
Semyon Ivanov era guarda-linha. Sua choupana ficava a dez verstas da estação numa direção e a vinte verstas na outra. Mais ou menos quatro verstas para diante ficava uma fiação de algodão aberta no ano anterior, e sua alta chaminé aparecia escura por cirna da floresta. As únicas habitações da redondeza eram as choupanas distantes de outros guardas.
A saúde de Semyon Ivanov ficara completamente abalada. Nove anos antes tinha servido, durante toda a guerra, como criado de um oficial. O sol o queimara tremendamente, o frio o gelara e a fome o devarava nas marchas forçadas de quarenta e cinqüenta verstas por dia sob o calor e o frio, a chuva e o sol. As balas zuniam por cima dele, mas, graças a Deus, nenhuma o ferira.
O regimento de Semyon esteve uma vez na linha de frente. Durante toda uma semana houve escaramuças com os turcos, ficando os dois exércitos inimigos separados unicamente por um fosso profundo; de manhã até a noite houve um forte fogo cruzado. Três vezes por dia Semyon carregava um samovar fumegante e a comida dos oficiais, da cozinha de campanha para o fosso. As balas assobiavam sobre êle e batiam sinistramente nas rochas. Semyon ficava aterrado e às vezes gritava, mas logo depois sossegava. Os oficiais gostavam dele porque sempre lhes dava chá quente.
Voltou da guerra sem membros quebrados, mas entrevado de reumatismo. Desde então não foi pouca a tristeza que sofreu. Chegou a casa para saber que seu pai, um velho, e seu filho pequeno de quatro anos tinham morrido. Semyon ficou só com a mulher. Não podiam fazer muito. Era difícil cavar a terra com braços e pernas reumáticos. Não puderam mais permanecer na vila e por isso saíram para tentar a sorte em novos lugares. Andaram durante pouco tempo na estrada, em Kherson e Donshchina, porém em parte alguma tiveram sorte. Então a mulher foi-se empregar e Semyon continuou a viajar. Um dia aconteceu-lhe viajar numa locomotiva, e numa das estações o rosto do chefe pareceu-lhe familiar. Semyon olhou para o chefe e o chefe para êle, e se reconheceram.
O chefe tinha sido um oficial do regimento de Semyon.
— Você é o Ivanov? — perguntou o chefe.
— Sim, Excelência.
— Como veio até aqui? Semyon, então, contou-lhe tudo.
— Para onde vai?
— Não lhe posso dizer, senhor.
— Idiota! Que pretende você com esse "não lhe posso dizer?"
— Pretendo o que disse, Excelência. Não há lugar algum para eu ir. Preciso procurar um emprego, senhor.
O chefe da estação olhou-o, pensou um pouco e disse:
— Olhe aqui, meu amigo, fique por algum tempo na estação. Penso que você é casado. Onde está sua mulher?
— Sim, Excelência. Sou casado. Minha mulher está em Kusk, trabalhando para um comerciante.
— Bem, escreva a sua mulher, diga que venha para cá. Vou dar-lhe um passe para ela. Há um lugar de gaurda-linha vago. Falarei com o chefe em seu favor.
— Ficarei muito agradecido ao senhor, Excelência — respondeu Semyon.
Empregou-se na estação, ajudou na cozinha, cortou lenha para o fogo, conservou o pátio limpo e limpou a plataforma. A mulher chegou quinze dias depois e Semyon foi num trole movido a mão para a sua choupana. A choupana era nova e quente, com abundância de madeira. Havia uma horta, herança dos antigos moradores, e quase meio dessiatin- de terra para lavoura do outro lado do aterro da estrada. Semyon se regozijou. Pensou em plantar, em comprar uma vaca e um cavalo.
Deram-lhe todos os instrumentos necessários: uma bandeira verde, uma vermelha, lanternas, uma buzina, uma chave para apertar as porcas de parafuso, uma alavanca, pá, vassoura, cavilhas de ferro e pregos; deram-lhe também dois livros de regulamento e um horário de trens. No começo Semyon não pôde dormir de noite e aprendeu todo o horário de cor. Duas horas antes de sou trem tinha que ir para a secção, sentar-se num banco da choupana e olhar e ouvir para saber se os trilhos estavam tremendo ou se o barulho do trem podia ser ouvido. Até aprendeu os regulamentos de cor, apesar do só poder ler soletrando palavra por palavra.
Estavam no verão. O trabalho não era pesado; não havia neve para ser varrida e os trens não eram freqüentes nessa linha. Semyon costumava caminhar uma versta duas vezes por dia, para examinar e apertar os parafusos aqui e ali, conservar o nível do leito, olhar os reservatórios de água e depois ir para casa tratar de seus próprios afazeres. Só -tinha uma dificuldade: sempre tinha de pedir permissão ao inspetor para a mínima coisa que quisesse fazer. Semyon e a mulher até estavam começando a ficar aborrecidos.
Passaram-se dois meses e Semyon começou a conhecer os vizinhos, os guardas que ficavam de cada lado. Um era um homem muto velho, que as autoridades estavam sempre pensando em aposentar. Saía pouco de sua choupana. A mulher costumava fazer todo o trabalho. O outro guarda, perto da estação, era um moço magro, mas musculoso. Êle e Semyon encontraram-se pela primeira vez na metade do caminho entre as duas choupanas. Semyon tirou o chapéu e inclinou-se.
— Saúde para você, vizinho — disse. O vizinho olhou-o de esguelha.
— Como vai? — respondeu, e, virando as costas, foi-se embora.
Depois as mulheres se encontraram. A mulher de Semyon passou o dia inteiro com a vizinha, mas nenhuma das duas disse grande coisa.
Uma vez Semyon disse à mulher do vizinho:
— Moça, seu marido não é muito falador.
A princípio a mulher nada disse, mas depois respondeu :
_ Mas de que vai êle falar? Cada um cuida dos seus negócios. Siga seu caminho e Deus o acompanhe.
No entanto, mais ou menos um mês depois, tornaram-se conhecidos. Semyon andava com Vasily ao longo da linha, sentavam-se num cano, fumavam e conversavam sobre a vida. Vasily na maior parte das vezes ficava quieto, mas Semyon falava de sua vida e da campanha de fizera.
— Não faltou tristeza em minha vida — costumava dizer — e a Providência sabe que ainda não vivi muito. Deus não me deu felicidade mas o que pôde dar, deu. Assim é, amigo Vasily Stepanych.
Vasily Stepanych bateu o cachimbo num trilho, tirando a cinza, pôs-se de pé e disse:
— Não é a sorte que nos persegue na vida, mas os seres humanos. Não há pior animal, neste mundo, que o homem. O lobo não come lobo, mas o homem logo devorará outro homem.
— Ora, meu amigo, não diga isso; o lobo come lobo.
— As palavras vieram à minha cabeça e disse isso. De qualquer modo não há nada mais cruel do que o homem. Se não fosse sua perversidade e avidez, a vida seria possível. Todo mundo apanha você para ferir, morder e depois comer.
Semyon ponderou um pouco.
— Não sei, meu irmão — disse êle. — Quem sabe se é como você diz, e quem. sabe é este o desejo de Deus?
— E talvez — disse Vasily — seja perder tempo conversar com você. Culpar Deus de tudo é ruim, sentar e sofrer, significa, meu irmão, não ser um homem, mas um animal. É o que tenho a dizer. Virou as costas e foi embora sem dizer adeus.
Semyon também se levantou.
— Vizinho — chamou êle — por quê perder a calma?
Porém o vizinho não olhou para trás e continuou o seu caminho.
Semyon olhou fixamente até êle sair da vista, na curva da mata. Foi para casa e disse à mulher:
— Arina, nosso vizinho é malvado, não é um homem. No entanto, não brigaram. Encontraram-se novamente e discutiram os mesmos assuntos.
— Meu amigo, se não fosse por causa dos homens não estaríamos metidos nestas choupanas — disse Vasilay, certa vez.
— E que tem estarmos metidos nestas choupanas? Não são tão ruins. Pode-se viver nelas.
— Viver nelas, na verdade! Ora, você… Você viveu muito e aprendeu pouco, olhou muito e viu pouco. Que espécie de vida leva um pobre homem numa choupana, aqui ou ali ? Os canibais o estão devorando. Estão sugando seu sangue, e quando você ficar velho eles o jogarão fora do mesmo modo que jogam os restos aos porcos. Quanto ganha você?
— Não é muito, Vasily Stepanych, vinte rublos.
— E eu trinta rublos e meio. Por quê? Pelo regulamento a companhia nos deveria dar cinqüenta rublos por mês, com lenha e luz. Quem decidiu que você deveria ganhar vinte rublos é eu trinta e meio? Vá perguntar você mesmo! E um homem pode viver com isso? Compreenda, não é uma questão de um rublo e meio ou de três rublos; podiam até pagar a cada um de nós os cinqüenta rublos inteirinhos. No mês passado, eu estava na estação. O diretor passou por lá. Eu o vi. Tive essa honra. Êle tinha um vagão separado. Saiu e ficou na plataforma… Não posso mais ficar aqui, preciso ir para alguma parte, para qualquer parte que me der na cabeça.
— Mas para onde vai você, Stepanych? Aqui você tem uma casa, calor, um pouco de terra. Sua mulher trabalha.
— Terra! Você precisa ver meu pedaço de terra. Não tem uma folha, nada. Plantei alguns pés de couve, na primavera, justamente quando o inspetor veio com o outro. Perguntou: — "Que é isso? Por que não comunicou isso? Por que fêz isso sem permissão?" Arrancou-os com as raízes e tudo. Estava bêbedo. Em outra oportunidade não diria uma palavra, mas dessa vez sentiu-se ofendido. Multa de três rublos!
Vasily ficou quieto por algum tempo com seu cachimbo, depois acrescentou tranqüilamente;
— Um pouco mais e eu teria feito qualquer coisa.
— Você é um exaltado.
— Não, não sou exaltado, digo e penso a verdade. Sim. Êle ficaria com o nariz sangrando. Eu me queixarei ao chefe. Veremos então!
E Vasily deu queixa ao chefe.
Uma vez o chefe veio_ inspecionar a linha. Três dias depois, personagens importantes viriam de S. Peters-burgo e passariam pela linha. Estavam fazendo um inquérito, e, por isso, antes de sua passagem, era necessário pôr tudo em ordem. Espalhou-se cascalho, o leito foi nivelado, os dormentes cuidadosamente examinados, os parafusos rebatidos, as porcas apertadas, os postes pintados, e foram dadas ordens para espalhar areia amarela nas passagens de nível. A mulher da choupana vizinha mandou seu velho capinar. Semyon trabalhou durante uma semana toda. Pôs tudo em ordem, remendou o seu caftan, limpou e poliu sua placa de cobre até ficar reluzente. Vasily também trabalhou duramente. O chefe chegou num trole, com quatro homens trabalhando nas manivelas e alavancas, fazendo as seis rodas zunir. O trole fazia vinte verstas por hora, mas as rodas guinchavam. Chegaram à choupana de Semyon; êle saiu e informou em estilo militar. Tudo parecia estar em ordem.
— Está aqui há muito tempo? — perguntou o chefe.
— Desde o dia dois de maio, Excelência.
— Muito bem. Obrigado. E quem está na choupana número 164?
O inspetor do tráfego (êle estava viajando com o chefe no trole) respondeu:
— Vasily Spiridov.
— Spiridov, Spiridov. .. Ah, esse homem contra o qual você mandou uma nota no ano passado?
— Isso mesmo.
— Muito bem, veremos Vasily Spiridov. Vamos! Os operários colocaram-se nas alavancas e o trole seguiu caminho. Semyon olhou-os e pensou:
— Vai haver barulho entre eles e.meu vizinho. Duas horas depois começou sua ronda. Viu alguém
que vinha vindo ao longo da linha, pelo corte. Havia alguma coisa branca na sua cabeça. Semyon começou a olhar mais atentamente. Era Vasily. Tinha um cacete na mão, uma pequena trouxa no ombro e a face envolvida num lenço.
— Para onde vai você? — gritou Semyon. Vasily chegou bem perto. Estava muito pálido,
branco como cera e seus olhos tinham um brilho selvagem. Meio sufocado, murmurou:
— Não, camarada, não esquecerei. É muito tarde. Veja! Êle me bateu na cara, tirou sangue. Enquanto viver, não esquecerei. Isso não fica assim!
Semyon pegou na sua mão.
— Deixe disso, Stepanych. Estou-lhe dando um bom conselho. Você não melhorará as coisas…
— Melhorar as coisas! Eu me conheço, sei que não posso melhorar as coisas. Você estava certo quanto ao destino. Seria melhor para mim não fazer isso, mas uma pessoa deve-se bater pelo direito.
— Diga-me, porém, o que aconteceu.
— Que? Êle examinou tudo, saiu do trole, olhou a choupana. Eu já sabia que êle seria rigoroso e pus tudo em perfeita ordem. Êle já ia indo quando fiz a minha queixa. Imediatamente gritou:
— "Está-se fazendo um inquérito governamental, e você faz uma queixa sobre uma horta. Conselheiros privados vêm aqui, e você me amola com couves!" Perdi a paciência e disse alguma coisa. Não foi muito, mas o que eu disse ofendeu-o e êle me bateu no rosto. Fiquei quieto. Nada fiz, justamente como se o que êle tinha feito fosse muito certo. Foram embora. Voltei a mim, lavei o rosto e saí.
— E a choupana?
— Minha mulher fica lá. Ela olhará pelas coisas. Não se preocupe com as linhas.
Vasily levantou-se e se acalmou.
— Até logo, Ivanov. Não sei mesmo se encontrarei no escritório alguém que me ouça.
— Certamente você não vai a pé.
— Na estação tentarei tomar um trem de carga e amanhã estarei em Moscou.
— Os vizinhos despediram-se. Vasily esteve ausente durante algum tempo. Sua mulher trabalhou para êle dia e noite. Nunca dormia e cansou-se esperando o marido. No terceiro dia, a missão chegou. Uma máquina, uma carro de bagagem e dois carros-salões de primeira classe; mas Vasily continuava ausente. Semyon viu a mulher dele no quarto dia. Seu rosto estava inchado de chorar, os olhos vermelhos.
— Seu marido já voltou? — perguntou Semyon.
A mulher fêz somente um gesto com as mãos e sem dizer palavra continuou seu caminho.
*
Semyon tinha aprendido quando era rapaz a fazer flautas de uma espécie de cana. Costumava queimar o miolo da haste, fazer orifícios quando necessário, furá-las, fixar uma boquilha num dos lados e afiná-las tão bem que era possível tocar qualquer música. Fêz algumas nos momentos de folga e mandou-as pelos seus amigos, entre os quais guarda-freios do cargueiro, ao bazar da cidade. Recebeu dois copeques por cada uma. No dia seguinte, depois da visita da comissão, deixou a mulher em casa esperando o trem das seis horas e foi à floresta a fim de cortar alguns pedaços de cana. Foi até o fim da secção (nesse ponto a linha fazia uma curva fechada), desceu o aterro e entrou pela mata, perto da montanha. Mais ou menos uma versta depois havia um grande pântano, em torno do qual cresciam esplêndidas canas para as suas flautas. Cortou um grande feixe de hastes e voltou para casa. O sol ainda estava caindo e na morta calmaria ouvia somente o piar das aves e o quebrar dos galhos mortos sob seus pés. Como caminhasse rapidamente, pareceu-lhe ouvir um barulho de ferro batendo em ferro e redobrou os passos. Não havia nenhum reparo nessa secção. O que significava aquilo? Saiu da floresta ainda bem longe do aterro; no alto, um homem estava agachado no leito da estrada, ocupado com qualquer coisa. Semyon começou a subir silenciosamente na direção dele. Pensou que fosse alguém quebrando as porcas que sustentam os trilhos. Espreitou, e o homem levantou-se, segurando uma alavanca na mão. Tinha desprendido um trilho, de modo que ficasse solto num dos lados. Uma névoa flutuou diante dos olhos de Semyon; quis gritar, mas não pôde. Era Vasily! Semyon trepou na borda, enquanto Vasily com a alavanca deu brusco arranco e jogou-se para o outro lado da linha.
— Vasily Stepanych! Meu querido amigo, volte. Dê-me a alavanca. Nós poremos o trilho no lugar; ninguém saberá. Volte! Salve sua alma do pecado!
Vasily não olhou para trás e desapareceu entre as árvores.
Semyon parou diante do trilho que tinha sido tirado do lugar. Atirou no chão seu feixe de varas. Um trem era esperado. Não era um trem de carga, mas de passageiros. E não tinha nada para fazê-lo parar, nem uma bandeira. Não podia substituir o trilho e não podia fixai-os parafusos com as mãos nuas. Era necessário correr, absolutamente necessário correr até a choupana para pegar algumas ferramentas.
Começou a correr em direção à choupana. Estava sem fôlego, mas ainda corria, caindo aqui e ali. Saiu da floresta. Estava a poucas centenas de pés da sua choupana quando ouviu o apito da fábrica soar seis horas! Dentro de dois minutos viria o trem n.° 7.
— Oh! Senhor! tende pena das almas inocentes. Em sua mente Semyon viu a máquina bater com a roda esquerda contra o trilho desprendido, estremecer, virar-se para cima, espedaçar-se, esmigalhar os dormentes. E justamente ali há uma curva e o aterro tem setenta pés de altura. A máquina poderá cair e os carros de terceira serão engavetados. Criancinhas… todos sentados no trem agora, sem sequer pensar no perigo.
— Oh! Senhor! Dizei-me que fazer… Não, é impossível correr à choupana e voltar a tempo.
Semyon não correu à choupana: voltou e correu mais depressa- que antes. Corria quase mecanicamente, cegamente; êle próprio não sabia o que ia acontecer. Correu até o lugar em que o trilho tinha sido arrancado; suas varas jaziam num montão. Curvou-se, tomou uma sem saber para que e correu mais para longe. Pareceu-lhe que o trem já vinha vindo. Ouviu o apito distante; ouviu o tremor silencioso, sereno, dos trilhos; mas suas forças acabaram, não podia mais correr e chegou a uma elevação a seiscentos pés do ponto terrível. Veio-lhe então uma idéia à cabeça, exatamente como um raio de luz. Tirando o gorro, arrancou dele uma faixa de algodão tirou o canivete do cano da bota e persignou-se, murmurando:
— Deus me abençoe.
Enterrou o canivete no braço esquerdo, acima do cotovelo. O sangue jorrou, correndo num jacto quente. Nele molhou a faixa, tirou-a, prendeu-a a uma vara e suspendeu a sua bandeira vermelha.
Permaneceu agitando a bandeira. O trem já estava à vista. O condutor não poderia vê-lo — chegaria muito perto, e um trem pesado não pode ser freado numa distância de seiscentos pés.
E o sangue continuava a jorrar. Semyon apertou as bordas da ferida tão firme quanto pôde para fechá-la, mas o sangue não diminuía. Com certeza tinha cortado profundamente o braço. Sua cabeça começou a rodar, manchas negras começaram a dançar diante de seus olhos e então tudo se tornou escuro. Havia uma campainha nos seus ouvidos. Não podia ver o trem nem ouvir o seu ruído. Só um pensamento o dominava: — "Não serei capaz de ficar de pé. Cairei e derrubarei a bandeira; o trem passará sobre mim. Ajudai-me, Senhor!"
Tudo ficou escuro, sua mente confundiu-se e êle derrubou a bandeira; mas a bandeira manchada de sangue não caiu no chão. Uma mão segurou-a e colocou-a bem alto, esperando o trem que se aproximava. O maquinista a viu, fechou o regulador e reduziu a marcha. O trem parou.
Muita gente saiu dos vagões e juntou-se uma multidão. Viram um homem caído sem sentidos no caminho, ensopado de sangue, e outro a seu lado, com um trapo manchado de sangue numa vara.
Vasily olhou todos em redor. E abaixando a cabeça, disse:
— Amarrem-me. Eu arranquei um trilho.
(Tradução de Lourival Gomes Machado em Obras-Primas da Literatura Russa).Retrato de Gárshin por Ilya Repine (1884)