A
Historícidade da Razão
e a Origem
do Conhecimento Metódico
Arnaldo Vieira Pinto
Cap. V do livro “Ciência e existência”
Fonte: Paz e Terra, 1969.
– SUMÁRIO
A historícidade da razão. Gênese e essência da razão. A origem da
atitude metódica. As fases da evolução do método, até a fase final
racional, consciente. Características da atitude metódica formal. Passagem do
modo formal ao dialético de interpretar o surgimento do método, e a questão da
origem das idéias. A origem da teoria do conhecimento e sua compendiação com
caráter metódico. Ingenuidade das concepções metafísicas e valor crítico da
teoria dialética. A função da sociedade na teoria do conhecimento.
A
historicidade da ciência é, conforme dissemos, conseqüência da
historicidade do método, mas convém acrescentar outra observação capital, a
de que esta, por sua vez, é conseqüência da historicidade da razão. Talvez
seja dificultoso para certos estudiosos apreender ou aceitar este último
conceito. Mas isso só ocorrerá com quem esteja completamente aferrado a um
ponto de vista filosófico formalista, metafísico, ahistórico. Para quem, ao
contrário, procura colocar toda explicação da realidade em termos do processo
da sua gênese, nada há de extraodinário na afirmação de que a razão humana é em
si mesma um processo que se desenrola no tempo, no qual vão sendo descobertas
as categorias lógicas que definem a natureza e estrutura dos processos reais. O
fato de ser uma faculdade subjetiva não lhe retira a condição de ser real, no
sentido de ter um fundamento concreto, material, que, sendo parte do processo
geral da realidade objetiva, acarreta a mesma transitoriedade
naquela sua particular manifestação, reflexo subjetivo desse processo que a
produz. O importante está em que o filósofo da ciência ou o cientista parta de
um princípio que nos parece inamovível: o de que a ciência, e portanto o
método, e portanto a razão, são produtos do homem real e concreto, isto é,
existente cm coletividade social, em luta pela solução de sua contradição
básica com a natureza, e por isso necessariamente ostentam os mesmos
caracteres lógicos dá realidade do ser biológico que os produz. Aqui se percebe
a íntima conexão entre a ciência e a existência social do homem. Esta última é
o processo primário, original, básico, que engendra a progressiva racionalidade
do animal humano. Esta racionalidade, à medida que se vai constituindo,
encontra expressão nas formas de conhecimento que tem a possibilidade de
adquirir a cada momento, sendo as mais altas o saber empírico e posteriormente
a ciência, definida pelo emprego consciente do método. A razão é um processo
histórico porque o homem que a possui é êle próprio um ser histórico no
seu desenvolvimento total. A constituição das suas estruturas orgânicas, em
particular a dos órgãos nervosos centrais, com a capacidade de reflexão da
realidade que cada grau de complexidade dos aparelhos perceptivos e ideativos
permite, vai evoluindo ao longo do processo da sua constituição em animal
humanizado. A hominização, como sucesso histórico, condiciona a historicidade
de toda a realidade humana, não só a da estruturação orgânica, o aspecto
anatômico e o fisiológico, como a das operações materiais e mentais que o
progresso da percepção, atingido a cada momento, permite. Razão em sentido
corrente é o nome dado à forma mais perfeita do reflexo da realidade na
capacidade perceptiva e reflexiva do homem, em função do grau de complexidade e
aperfeiçoamento a que atingiu o seu sistema de relação com o mundo.
Nos graus mais atrasados que o atual, o que, com relação a
eles, se pode chamar de razão é uma faculdade totalmente ativa ou seja,
o máximo de potencialidade que o indivíduo em curso de hominização se mostra
capaz de exercer consiste, em tal momento, em operar certas atividades sobre
os corpos, em discenir certas diferenças entre eles e defini-los pelas
propriedades que neles observa. Com o exercício dessa atividade vai aos poucos
estendendo o domínio sobre o ambiente e acumulando incessantemente
experiências e noções, que a princípio se conservam apenas no patamar dos
hábitos reconhecidos como socialmente úteis. Só mais tarde esta ampliação e
acumulação de conhecimentos se torna suficientemente
grande para se ir convertendo em ideação, em conceituação. Surge então progressivamente
a esfera do comportamen to
subjetivo que se vai destacando da execução concreta, imediata e
presente dos atos a que se refere e passando a organizar se por si, com o
caráter de pensamento abstrato. A coleta dos frutos ou a caça em grupo já estão
inteiramente instituídas como comportamento
social antes de se verificar a reflexão racional sobre os atos
praticados com tal fim. E a multiplicação destes, e sua pro ^ gressiva
complexidade, para atender à finalidade de apropriação cada vez maior e mais
fecunda da natureza, com rendimento social mais abundante, que conduz à formação
progressiva da esfera da razão, como resultado da generalização ideativa
das ações particulares, em virtude do
aparecimento da imaginação, ou seja, da capacidade de destacar a imagem
concreta, imediata e presente do objeto ou do ato, e fazê-la existir
à parte, por si, enquanto imagem apenas, no âmbito do pensamento.
Quando isso se dá, a imagem, criada a princípio pela percepção sensível de um
objeto ou de um fato definido, com o qual o
indivíduo se defronta, se despoja das notas acidentais, particularizadas,
inessenciais do objeto ou do fenômeno, para representá-lo em caráter essencial,
generalizado, abstrato, universal,
na condição de verdadeira idéia.
Nesta fase, a exploração do mundo adquire, em virtude deste salto qualitativo na representação, imenso
alargamento. Passam a ser possíveis invenções de experiências,
antecipações de atos e a sistematização dos conhecimentos adquiridos, até então
irrealizáveis. Entra-se, assim, na etapa do
surgimento da razão na forma reflexiva. A razão passa a ser então não o
pensamento da ação direta e imediata a executar, mas da ação possível, ou seja,
o animal humano mostra-se capaz já de configurar na subjetividade o projeto do
seu próprio ser, definido pela formulação de finalidades concebidas
idealmente, com relativa independência das ações únicas imediatamente exigidas. Cria-se a esfera do pensamento racional,
destacado da fase empírica, e o homem torna-se agora capaz de viver em
pensamento a situação que pretende criar, ou seja, antecipa em idéia a
modificação que irá materialmente imprimir
às coisas. Um caso particular desta atitude geral é o projeto de experimentação científica do mundo. A
imaginação, valendo-se agora de idéias abstratas, universais, dispensa a
presença sensível», da realidade, e se torna capaz de explorá-la,
indiretamente, na esfera da representação subjetiva. Temos deste modo o
trânsito do conhecimento objetivo,
constituído por atos de apropriação de coisas limitadas, isoladas e sempre imediatamente percebidas, ao conhecimento
subjetivo, graças ao qual o mundo é recolhido pelo pensamento em idéias gerais,
e tratado de acordo com os diversos modos
como essas idéias podem ser associadas e combinadas. A primeira etapa do
conhecimento pode ser chamada a da idéia objetiva, no sentido em que a
representação, embora sendo um conteúdo mental, só existe colada à realidade
atual da coisa ou fenômeno representado. A segunda etapa é aquela em que a
representação se torna subjetiva, no significado próprio e pleno do termo,
o que tem lugar quando começa a existir por si um mundo mental, que constitui o pensamento propriamente dito, marcado
pelo caráter discursivo, peia possibilidade das idéias se engendrarem umas às
outras.
A gênese da razão tem de ser entendida
como um dos momentos do processo da gênese do ser humano. Não significa um
dom recebido do alto, a criação de uma faculdade espiritual, específica,
irredutível, agregada à constituição material, orgânica da classe de primatas
que vinha progressivamente se desenvolvendo e ganhando aptitudes cada vez mais
complexas. É produto desta mesma evolução orgânica e nela tem o suporte, a
explicação de sua origem e a dos caracteres que adquire, entre os quais se
conta o aparente desligamento e autonomia em
relação aos mecanismos fisiológicos e estruturais que a engendram e
permanentemente a condicionam. Daí o caráter histórico da razão e a
mudança de suas características ao longo do tempo. Uma tese, a nosso ver,
inteiramente inverídica, metafísica e dogmática,
é aquela que proclama a eternidade da razão, convertendo-a em poder
espiritual do homem e definindo-a por qualidades intrínsecas imutáveis. Seria
isso divorciá-la do homem, o que só se justifica nas concepções teológicas, às
quais serve de argumento apologético. Na verdade, a razão não 6 um dom,
um tesouro, uma qualidade inata, possuída de uma vez por todas, mas o processo
da crescente realização do homem no mundo e por isso se constitui no curso do
seu próprio exercício. O homem realiza-se como homem, se faz um ser racional
raciocinando. Mas esta atividade, que simultaneamente cria a função e seu
produto, não se exerce jamais destacada da prática da existência, em especial
da atividade pela qual o indivíduo é forçado a adquirir o sustento e as condições
de abrigo e defesa. Com a ampliação da esfera subjetiva chega o momento em que
a idéia, agora dotada de relativa independência no elemento do pensamento (como
dizia Hegel), pode se tornar objeto de outra idéia, o que significa:
instala-se no processo da razão a fase da auto-reflexão. Não só as
idéias possuídas podem ser decompostas em outras que as constituem como partes
componentes, mas várias podem ser sintetizadas
em uma nova, que aparece como produto do pensamento que pensa o
conteúdo do pensamento, isto é, que se torna auto-reflexivo. Num caso como
noutro a idéia constitui-se como objeto* diante
do sujeito, num ato pelo qual a razão se converte em centro de observação dos
seus próprios conteúdos, momentaneamente tomados na condição de algo
distinto dela, para os quais se volta, como
se nela não estivessem incluídos, não lhe pertencessem. Nesta atitude da razão que objetiva suas idéias e as
considera como algo posto diante de si, encontra-se a raiz da
possibilidade do método. Começam a surgir
idéias que exprimem não mais objetos ou fenômenos concretos e
palpáveis, mas outras idéias, na forma de definição destas últimas.
Inaugura-se a partir de então a possibilidade da atitude metódica
reflexiva. O método, que até esse momento era apenas praticado empiricamente,
sem autoconsciência, e sancionado em seu valor de verdade pelos resultados que
produzia, torna-se um procedimento
intencional de análise mental, de estruturação do pensamento por ele
mesmo, de reflexão crítica sobre as operações subjetivas que se revelam úteis
na prática de intervenções materiais ou na antecipação de efeitos favoráveis
na exploração da realidade. A razão torna-se metódica com o aparecimento
da auto-reflexão, que é definida pela capacidade de conceituação do
conceito.
Esta
origem da atitude metódica leva alguns pensadores a crer que o método se constitui na esfera subjetiva
pela simples introspecção dos atos mentais, nas formas assumidas por estes nos
raciocínios inferenciais e nas
operações abstratívas e predicativas que os precedem. Produz-se assim uma
filosofia do método de cunho idealista,
conduzindo inevitavelmente a uma lógica de tipo forma-lista, na qual o reconhecimento da existência de
um conteúdo material no conceito,
que leva a distinguir a chamada "lógica, material", não retira a esta construção o caráter
de lucubração metafísica. A
introspecção, ou, na versão mais moderna, a intuição fenomenológica, não sai da esfera da subjetividade,
pretende valer como origem para a
compendiação do método apenas pela força da ligação recíproca das idéias, que descobre, descreve e classifica. Coisa diferente é a concepção que defendemos. O
método constitui-se na esfera da subjetividade não por direito natural e
exclusivo desta, mas em virtude da
origem de todo conteúdo subjetivo no plano da objetividade. Se a compendiação
do método e a conduta metódica no seu exercício são atividades
subjetivas, a validade delas se deve a
que têm por fundamento a lógica ínsita na realidade das coisas, no processamento do curso da
natureza. Deste é que, pela via da reflexão dos dados do mundo exterior
nos órgãos sensoriais superiores do ser
humano, se translada para o plano da subjetividade. Por isso nada há de estranho, nem mesmo de problemático,
em que a lógica construída pelo homem no plano do pensamento se mostre eficiente para o manejo, subjugação e descoberta dos
fenômenos da natureza, simplesmente porque nada mais é do que a transcrição da lógica objetiva, de caráter
dialético, que vigora na constituição
e nas ações recíprocas das coisas, em termos abstratos, onde se contém
a essência inteligível dos processos reais. Os métodos lógicos são eficazes em
conduzir a exploração e a explicação
científicas porque sintetizam em grau continuamente crescente a racionalidade originária do curso da
natureza, que se manifesta, em virtude do princípio dialético de
totalidade, em todos os produtos e fenômenos, e que não poderia deixar de estar
presente também no resultado mais perfeito,
mais novo e complexo da evolução da organização do mundo material, o
sistema cerebral humano. Se este faz parte da natureza, foi gerado de acordo
com as leis do mundo físico que, deste modo, estão presentes na sua constituição e nele podem ser descobertas. Quando,
por força do aperfeiçoamento das atividades que o processo de
hominização vai determinando, é
alcançada a etapa da ideação e da auto-reflexão ideativa, faz-se
evidente que o funcionamento do órgão que se especializou em apreender, em refletir as transformações do mundo exterior,
só pode revelar como leis lógicas da concatenação das idéias, aquelas mesmas
relações que são também as leis da evolução geral da realidade e às quais o
sistema que oferece a base material para o pensamento deve a sua origem. A
lógica do mundo objetivo transmuta-se,
assim, em lógica subjetiva sem perder o caráter dialético. O processo
evolutivo que hominiza o homem e o leva, no termo final, à aquisição da
razão, é regido em toda a sua amplitude, em todos os domínios por uma só e
mesma lógica, que apenas deixa de ser
ínsita, imanente e inconsciente, como acontece quando se acha no estado
de relacionamento interioi ao curso dos fenômenos,
para se fazer transcendente, intencional e autoconsciente quando se
manifesta na atividade própria, subjetiva, do mais elevado dos produtos do
processo natural, o cérebro humano.
A razão enquanto resultado
histórico de um processo natural vai
mudando de qualidade com a marcha progressiva de sua formação. A capacidade de proceder metòdicamente
aos mesmos atos a que até então
procedia casual ou empiricamente é que dá uma qualidade nova à etapa
mais avançada do desenvolvimento da razão.
Se a princípio o método é espontâneo, irreflexivo, porque se guia apenas pela lógica da concatenação
dos estímulos e respostas úteis, mais
tarde se subjetiva, e se abstratiza tornando-se uma finalidade consciente da
atividade ideativa. Quando tal acontece
a razão ingressa na fase do método como produto da auto-reflexão. A razão torna-se faculdade originante das
determinações dos seus próprios
procedimentos e passa a existir como método do método. Esta é a fase da filosofia moderna, inaugurada com Bacon e
Descartes, por motivo de circunstâncias sociais novas, e aquela em que
atualmente nos encontramos.
O momento em que o método se apresenta como problema racional é também aquele em que a razão se
constitui em atividade metódica consciente. Até então o método existia,
porém sob forma de procedimentos, de
preceitos recomendados pela prática consuetudinária, em que a conquista de
resultados materialmente úteis justificava a conservação e repetição dos
atos recebidos, no estilo em que se
transmitiam de geração a geração. A passagem da prática inconsciente de métodos primitivos à época do
formalismo lógico, e depois à da conceituação dialética não constitui um
curso arbitrário ou fortuito, mas segue a
marcha da progressiva penetração da
razão no íntimo da realidade natural. Em correspondência com o avanço do conhecimento do mundo objetivo vão-se
descobrindo as novas formas de sua reflexão subjetiva no pensamento. A
filosofia pôde criar a lógica antes de se ocupar intencionalmente do método,
porque este constitui uma reflexão de grau superior ao da simples investigação das faculdades cognoscitivas, da análise
das operações que estas executam e da sistematização dos seus atos. A
lógica já é um instrumento essencial ao saber, e desempenha destacada função
na criação do conhecimento, antes que a consciência problematíze as operações
mentais que descobriu ser as que
representam os naturais mecanismos do pensar. Pôde mesmo haver um princípio de auto-reflexão metódica,
por exemplo na atitude socrática, mas a plena formulação do problema do método
é correlata de circunstâncias objetivas, que têm lugar quando surge a
fase da exploração mecânica do mundo. O motivo está em que impõe a penetração
mais funda no exame das faculdades do espírito e a
solução do problema, que então se apresenta, da validade do pensamento em seu
uso prático. Kant assume realmente a postura metódica crítica quando, em vez de
perguntar se é possível o conhecimento de objetos ideais, quantidades e
figuras, e de fenômenos naturais, os que as ciências empíricas descobrem, se
li-mita a perguntar como é possível esse conhecimento. Há nesta diferença
de indagação uma mudança radical de atitude. Não se discute mais o fato de que
o homem é capaz de conhecer em determinados domínios científicos, o das
matemáticas e o das ciências naturais. A organização social desses modos de
saber e a permanente fertilidade dos processos lógicos que emprega, demonstrada
pelo progresso incessante de tais ciências, exclui por inepta a pergunta pela
possibilidade do conhecimento nesses campos da investigação, mas mantém
legítima a questão de "como" esse resultado, ao mesmo tempo
surpreendente e quotidiano, tem lugar. Esta questão cifra-se na indagação do
laço que liga o pensamento à realidade, da coincidência entre a idéia e o ser,
que a muitas filosofias parece misteriosa, a ponto de exigir uma intervenção
divina para explicar por uma suposta "harmonia preestabelecida", a
conjunção entre a ordem dos fenômenos e o reflexo destes no pensamento. Spinoza
tem o primeiro e mais profundo pressentimento da unidade dos dois processos, o
da natureza objetiva e o do pensamento subjetivo, quando enuncia que "ordo
et connexio idearum idem est, ac ordo et connexio rerum" (Ethica, pars
secunda, propositio VII). Porém esta tese, que consigna
a essência da teoria do conhecimento, permanece pura proposição metafísica, e
não floresce em toda a riqueza de suas conseqüências para o conhecimento
científico do mundo, por falta do adequado suporte na concepção geral do
processo da realidade. Apesar da afirmação da unidade entre o pensamento e o
ser, o paralelismo psico-físico persiste uma simples afirmação, um desafio à
compreensão. Sua veemente exposição torna-o mais enigmático do que fundado. O próprio
conceito de "paralelismo" é inexato e insuficiente para nos explicar
a relação entre o curso do pensamento lógico e o processo das transformações
das coisas. A noção de paralelismo introduz a imagem de dois movimentos concomitantes
mas distanciados e sem possibilidade de síntese, quando o que na verdade
acontece é a unidade dos aspectos opostos; o processo do pensamento e o
processo da realidade objetiva encontram a unidade superior na lógica
dialética, que representa a mesma, a única, racionalidade existente em
ambos. Só chegaremos a compreender a significação última da tese spinozista
quando assumimos outro modo de tratar as questões epistemológicas, abandonarmos a atitude formal e
ingressarmos na órbita do pensamento dialético.
A atitude formal
caracteriza-se pelos seguintes traços:
a) o isolamento do plano
do pensamento e sua colocação à parte no conjunto da realidade. O pensamento
passa a ter existência por si, autônoma, ainda quando, conforme ocorre nos sistemas empiristas, se afirme a procedência das
idéias do mundo ex-« terior. Não é preciso postular, a exemplo da
concepção platônica, a realidade em si das idéias, com anterioridade ontológica
em relação às coisas, nem mesmo aceitar variantes desta hipótese, tais as
teorias iluministas, que concebem a origem das idéias no intelecto divino, de onde procederiam, por via
iluminativa, as espécies impressas que o entendimento humano manifesta
(agostianismo, escotismo). Mesmo nas concepções chamadas "realistas",
nas quais se admite a procedência exclusiva das representações da ação dos objetos sobre a sensibilidade captadora das
imagens sensíveis, a seguir elevadas à categoria de entes inteligíveis, em
todas estas doutrinas, o resultado final é o plano do pensamento constituir-se
em um mundo em si, à parte, encerrado em si mesmo, com leis próprias, aquelas que a lógica, enquanto exploração do
pensamento por êle mesmo, tem por missão descobrir e sistematizar.
b)
Em conseqüência do traço anterior, explica-se perfeitamente que seja
ignorada a noção de "processo" na gênese do pensamento, pois o que
se entende por esse nome é apenas a chamada "origem das idéias", isto
é, a formação das representações uma a uma, ao sabor das oportunidades, seja,
de reminiscências, segundo Platão, seja do encuntro com os objetos exteriores a
que correspondem, como na explicação de Locke e dos sensualistas. Não há a
noção de "processo" porque a aquisição das idéias, e portanto a do
saber e da ciência, não se rege pela correspondência regular da sucessão das
representações com o fluxo da realidade objetiva, não obedece a nenhuma lei
histórica imanente, mas se faz por acréscimos consecutivos, que vio justapondo
umas às outras as idéias que a razão vai formando. Neste sentido, é possível
dizer, numa expressão paradoxal, que o mundo do pensamento não depende da sua
formação. Embora não se consiga compreender o que seria um "mundo de
idéias" sem idéias, o fato é que, de acordo com a atitude lógica formalista, a criação de cada nova representação, desde
a primeira delas, não altera a realidade do mundo do pensamento, apenas o amplia, sem modificar-lhe a
natureza. Desta forma, o mundo
subjetivo tem de ser suposto preexistir ao seu conteúdo. A ordem de sucessão na aquisição das
idéias não estabelece um
"processo", e mesmo quando corresponda às experiências sensíveis
do indivíduo, de acordo com a opinião dos empiristas, ou se identifique à ordem das coisas, segundo a tese
de Spinoza, não supera o conceito de um procedimento metafísico tão
inexplicável que em vez de ser a solução do problema proposto passa a ser o
verdadeiro problema central de toda a gnosiologia.
c)
Ainda em conseqüência das mesmas premissas formais, descobre-se que a concatenação
entre as idéias, interpretada por qualquer das facetas do prisma metafísico,
só pode no máximo revelar as ligações exteriores que umas mantêm com outras.
Isto é suficiente para o estabelecimento das operações inferenciais, indutivas
e dedutivas, que esses vínculos permitem, mas não basta para dar ao
conhecimento desses processos de raciocínio o selo da autêntica auto-reflexão, que os converta em procedimentos metódicos.
Para que tal se dê é preciso que o raciocínio não seja apenas consciente do "como" e do
"para que", dos modos pelos quais opera, mas conheça o
"porquê", o princípio da sua legitimidade, que reside na percepção
das leis imanentes que regulam a relação com o seu fundamento objetivo e as
conexões internas entre as idéias, que determinam a necessidade
inferencial entre elas. Só assim a lógica alcança a etapa final da sua
estruturação em metodologia da ciência, síntese das atividades eficazes para a
investigação dos fenômenos naturais e sociais. A consciência só se torna efetivamente metódica e
autenticamente auto-reflexiva quando inclui na idéia da idéia
(Spinoza) a noção não apenas da sua origem
eventual, particular em cada caso, mas dá sua natureza de fenômeno total, de sua origem no processo
geral da realidade em que se inclui, quando vê em cada idéia
singularmente adquirida a presença da totalidade da realidade manifestada na
existência do objeto produtor da idéia em questão. Por isso, as concepções sobre a origem das
idéias, mesmo aquelas que não desconhecem sua procedência empírica, são
insuficientes se não se desprenderem do formalismo lógico. Cada idéia é
concebida com o caráter de unidade em si,
uma mônada conceptual, seja porque integre uma constelação ideal e eterna de realidades imateriais
existentes absolutamente,
seja porque corresponda a um objeto concreto e exterior porém dotado de
existência apenas singular, sem referência ao seu
pertencimento a um processo criador, que o explica. Desta maneira, as idéias aparecem essencialmente como
unidades isoladas, cada qual válida
por si, pelo que representa. Sua concatenação é obra do pensamento que as associa, as põe em movimento, ligando-as umas às outras, e com elas forma aquelas
"longas cadeias de razões" a que se referia Descartes.
Este
aspecto é capital e definidor do formalismo lógico: não são as idéias que, por
assim dizer, se movem, se transmutam em outras,
se engendram consecutivamente por via de relações internas, segundo um
dinamismo intrínseco (que em suas origens he-gelianas
foi equivocadamente interpretado existir por si, determinado por uma
razão metafísica inerente as próprias idéias). Na visão formalista as idéias são movidas de fora pelo pensamento que as articula em "processos’* de julgamento e
de raciocínio. Persistindo esta atitude, o formalismo não é eliminado
mesmo quando se compreende a mobilidade do
pensamento, porque as entidades com que
opera, as noções oa conceitos, são em si imóveis. A mobilidade não está nas
idéias mas no pensamento, que, a modo de uma força operatória exterior,
com elas joga, desloca-as, constringe-as a se colocarem umas em seguida às
outras, numa ordem que não deriva da necessidade interior a elas, isto é, das
relações internas entre elas, mas da imposição de fazê-las obedecer a padrões
estruturais predeterminados, a modelos de
raciocínio formal e abstratamente
admitidos como válidos incondicionalmente. Enquanto tiver vigência esta
maneira de conceber o conhecimento, o autêntico
conceito de processo é impossível de ser entendido e utilizado.
d) Por fim, na concepção formalista
dificilmente se alcançaria a correta compreensão da essência do método, porque
não bá possibilidade de interpretá-la em
termos genéticos, na qualidade de
história natural da constituição da razão. Ao se falar de origem das idéias, o que como tal se entende é sua
simples procedência, e apenas a este respeito se dividem as escolas,
permanecendo com o aspecto de áreas
distintas no mesmo plano metafísico. Mas o que efetivamente se deve investigar é algo mais profundo, é o surgimento
da esfera do pensamento em sua totalidade. A princípio aparecendo em modalidades de representação
imperfeitas e limitadas, as quais
depois se vão expandindo e complicando, num desenvolvimento sempre mais amplo e profundo, o pensamento chega por fim à completa auto-reflexão sobre sua própria história.
Quando isso se dá a representação se transforma de mera representação de si
nos limites da sua particularidade, em instrumento de interpretação de sua
mesma realidade total. O pensamento atinge um nível superior, pois não apenas
se apreende a si mesmo nos conceitos particulares que estou, mas se conceitua
na história do seu desenvolvimento, de sua formação. Assume agora, diante
de cada conceito singular, a atitude de examiná-lo não apenas no conteúdo e na
forma de que se reveste, mas de examiná-lo na perspectiva
da sua gênese, o que significa captar as razões, os fundamentos
objetivos que explicam o surgimento de tal conceito no plano conjunto, no
processo universal do pensamento.
A passagem do modo formal ao modo
dialético de interpretar o surgimento da reflexão metódica tem lugar mediante
a alteração do julgamento, que abandona a posição particularista e fragmentária
de apreciar a esfera do pensar e a considera na totalidade em curso de
desenvolvimento, ou seja, como processo decorrendo no tempo histórico,
determinado pelas mesmas causas naturais que vão constituindo progressivamente
o homem em animal pensante. Somente quando o pensamento não se desvincula do
processo natural, biológico, de sua gênese, mas é entendido na perspectiva da
sua criação no curso histórico da hominização torna-se possível apreendê-lo
segundo uma perspectiva dialética. A modificação nas avaliações e nos conceitos
decorrente dessa alteração de perspectiva é completa. O que antes parecia uma
seqüência de idéias, uma "associação", que as teorias psicologistas
se esforçavam por esclarecer, entende-se
agora como processo natural, cujos aspectos essenciais são comuns a
todos os demais processos que se desenrolam na natureza. A questão da origem
das idéias toma feição inteiramente distinta. Não se trata mais de encontrar o
ponto de partida singular de que cada qual procede, e que se acha em outra
idéia ou em uma coisa existente fora do pensamento, mas o que se tem de
explicar é o pensamento todo, na condição de curso e desdobramento contínuo da
representação da realidade, enquanto função biológica do homem.
A origem de uma idéia é um fato
acidental; o essencial é a origem de todas as idéias. O que se trata de
compreender é a idéia como processo de representação do mundo na consciência
humana, a idealização ou conceituação da realidade objetiva. Trata-se de um
fenômeno natural, e por isso tem de ser explicado pelas mesmas leis gerais,
embora não pelas mesmas leis particulares, leis gerais que exprimem a concatenação dos processos
materiais, na sua realidade objetiva.
Claro está que esta afirmação não significa admitir a identidade do fenômeno ideativo aos demais que ocorrem no plano físico ou na ordem dos fatos
fisiológicos do organismo humano. Admitir a identidade seria cair em vício
formal de pensar. O que se deve
admitir é a unidade entre os dois planos, o da representação ideativa e o da realidade objetiva correspondente. Há
aqui uma distinção qualitativa, um salto, que determina justamente aquilo em que consiste a especificidade do
processo mental. Explicar como este
salto foi possível constitui um problema de biologia, ou mais propriamente da ciência da evolução dos organismos,
problema que o estudo e a investigação cada vez mais enriquecido e aprofundado da história natural do
homem levará um dia a completo esclarecimento. Para compreender este problema faz-se necessário de certo modo inverter os termos
em que é tratado habitualmente e transferir a focalização da questão da pergunta pela procedência das idéias para a do
engajamento das idéias na realidade.
Pois enquanto a primeira atitude nos convida às divagações especulativas, a segunda, partindo da
verificação das funções exercidas pelas idéias na transformação do mundo a
fim de criar melhores condições de
vida para o homem, coloca desde logo
a discussão no plano dos processos objetivos, centralizando-a na base firme da análise da contradição principal que
opõe o ser humano social à natureza física. A identificação do
determinismo que entra em jogo nesta
transformação qualitativa pertence ao domínio da ciência e depende em larga
medida da correta metodologia com que
fôr atacada a questão. De todas as exigências metodológicas para resolvê-la, a mais importante é
obviamente a de havê-la compreendido
nos devidos termos. Enquanto persistir a apresentação do problema que o expõe desde o início em
linguagem metafísica não se deve
esperar que as soluções propostas sejam de outra índole senão a metafísica. Por isso, não será de estranhar a falta de fundamento, o caráter imaginativo das soluções
tradicionalmente eventadas, que não
tomam na devida consideração os dados objetivos exigidos para constituir-se legitimamente, engendrando as mais brilhantes porém ilusórias teorizações. A
condição original para que o problema
tenha solução verdadeira consiste em que seja pôsto em termos verdadeiros. E estes referem-se à indagação da origem do processo global do pensamento humano, em
termos de formação do próprio homem, em quem o pensamento vai surgir.
Alcançamos aqui um
momento decisivo desta exposição. O tema, que parecia mover-se nos paramos das
abstrações, ao sabor do engenho imaginativo dos filósofos, encontra alicerces
concretos, que assentam no estudo do ser humano em sua formação como espécie
animal ao longo de um processo natural multimilenar. Os alicerces concretos são
o dado histórico em que se apóia a teoria do conhecimento em geral, e a da
racionalidade em particular; mas a história tem de ser entendida aqui em
sentido lato, como processo genético que engendra a diversidade dos fílos
animais, das classes, gêneros e espécies, e mais precisamente o surgimento do
animal humano racional. Não vamos evidentemente retraçar, nem mesmo a largos
traços, este curso, incompletamente conhecido ainda nos detalhes e cuja
compreensão científica suscita ainda numerosas indagações, embora possa
dizer-se que já se possui, com a moderna teoria genética, entendida não em
termos vitalistas, finalistas ou formalistas, mas interpretada pela correta
razão dialética, a noção suficientemente clara da marcha geral do processo
evolutivo. Estando apenas interessado no aspecto epistemológico do assunto, o
que desejamos 6 deixar explícita a noção de que não pode haver legítima
teoria do conhecimento que não se funde na realidade histórica e natural do
homem, que não invoque a todo momento este princípio básico para a compreensão
dos aspectos particulares das questões que analisa e procura resolver. Mas, ao
dizer que a teoria do conhecimento é sempre a teoria do conhecimento do
homem, estamos executando um jogo de palavras da profunda riqueza de
conteúdo. Com efeito, de um lado, a frase significa que o conhecimento é um
fenômeno humano, pertence ao homem, 6 um fenômeno do homem (na acepção
genitiva do termo), que só êle possui na forma superior de saber científico,
consciente. Em tal sentido é o homem que produz essa teoria, propõe-na em vista
da necessidade de compreender como conhece aquilo que conhece. Ê o homem o
autor da teoria do conhecimento, e por este aspecto já se fazem sentir
poderosas e múltiplas implicações, especialmente de ordem histórica e social,
que se deve cuidadosamente examinar. Mas o segundo sentido da frase mencionada
parece ainda mais profundo: significa que só pode haver verídica teoria do
conhecimento à medida que o homem se vai conhecendo melhor a si próprio, no seu
desenvolvimento biológico como espécie e nas suas relações, sempre variáveis
historicamente, com a natureza, pelo trabalho que nela exerce, com os seus
semelhantes, pelas formas de associação que
com eles estabelece, e com a cultura que cria como resultado de desenvolvimento intelectual.
Pelo primeiro aspecto a teoria do conhecimento é vista na perspectiva da
sua autoria; pelo segundo, na perspectiva do seu fundamento. Mas o dado decisivo está em que tanto a autoria como o fundamento se
devam ao mesmo ser, o homem, e ao uso que fará das concepções teóricas
que produzirá, pois não é indiferente, do ponto de vista da possível verdade
das explicações elaboradas, o fato de que sirvam para especulações ociosas
quanto à realidade do mundo ou de que se destinem a modificá-lo nas condições
físicas e estruturas sociais. Ao se
constituir no curso de sua formação biológica, o homem vai desenvolvendo
modos de conhecimento que o distanciam daqueles em que permanecem as espécies
inferiores, que não podem superar a etapa dos hábitos, dos instintos, dos tropismos. Vai criando idéias, que evoluem da
imagem abstrata particular para a
imagem concreta universal. Chega o momento em que, ao se propor
conhecer o próprio conhecimento, vê-se levado a
produzir as primeiras teorias gnosiológicas. Torna-se o autor delas sem
ter ainda a noção de que, além de autor, sua realidade enquanto ser animal,
dado o grau de perfeição evolutiva a que atingiu,
é que o capacita a ser o fundamento de tal investigação. Assim, a realidade do
homem está no cerne do problema do conhecimento e daí não pode ser
afastada. A ciência é uma manifestação exclusiva da existência do homem, e de
fato a mais alta de todas. O principal
ataque crítico que desejamos dirigir à maioria dos ensaios de teorias do
conhecimento e de epistemologia que os filósofos, desde as épocas clássicas até
agora, têm elaborado, consiste em mostrar que lhes faltou, quase sempre,
fundamentar a ciência na condição existencial do homem. Mesmo aqueles que
introduzem a dimensão histórica desta relação, e até alguns que procuram proceder
dialèticamente, não chegam a alcançar o conceito autêntico da existência do homem, aquele que a toma originariamente
no seu significado biológico, no processo evolutivo que a produz, é que,
deste modo, condiciona e explica o
surgimento da racionalidade, e, conseqüentemente,
a possibilidade de constituição do conhecimento científico. Não apenas
em um caso particular ou aspecto empírico em
que se apresente, mas enquanto condição para a adequada propositura do problema epistemológico e de sua
solução, é indispensável incluir na teoria do conhecimento a realidade
existencial do ser humano.
A ingenuidade
inata das concepções metafísicas, e, por oposição, o caráter crítico da teoria
dialética, radica precisamente em que as primeiras abstraem da existência
humana, ignoram ou não mencionam, a constante presença do homem real, concreto,
histórico, na atividade cognoscitiva, desde a prática metódica mais primitiva
até as formulações científicas mais abstratas. A posição dialética permanece
centrada no ser criador do conhecimento, e por isso nunca deixa de ser
concreta, nunca esquece de que se trata aqui sempre do homem social, mesmo
quando, para efeito de formulação dos conceitos e doutrinas esteja obrigada a
se manifestar em termos gerais formalizados. Não se deve porém confundir o formalismo
desta posição de base dialética com o das concepções que flutuam no espaço
metafísico. Na concepção dialética o caráter abstrato das idéias é apenas o
correlato da sua origem concreta, e não tem por causa apenas a proveniência do
mundo exterior, mas decorre de que o conceito que aparece generalizado no
pensamento é efeito da ação transformadora do homem sobre a realidade.
Segundo esta interpretação filosófica o abstrato não existe sem o
concreto, constituem os aspectos antitéticos, necessariamente sempre presentes,
da realidade da idéia, e por isso não se destacam um do outro, embora se
oponham. E o elemento que os unifica é o homem como conhecente, isto é, o ser
que exerce a dupla função de fundamento e autor da idéia. A abstração dialética
não se confunde com a abstração metafísica, pois o que caracteriza a última é a
atribuição à idéia de caráter absoluto, de validade em si, em termos de
universalidade, mesmo quando, conforme as teorias empiristas, lhe reconheça uma
origem sensorial, em função de um objeto material definido. Metafísica-mente, a
idéia abstrata vale com tal, subsiste em si e se organiza com outras da mesma
espécie num plano que supera o da existência singular e concreta das coisas e
nada tem de comum com este. Dialèticamente, o caráter abstrato da idéia é a
forma em que se manifesta a sua concretude definida pela sua gênese num
processo histórico real, assim como esta não adquiriria sentido, e portanto a
idéia não seria aplicável a coisas singulares, se não fosse dotada de
valor universal abstrato. Concreto e abstrato são aspectos da realidade da
idéia, que se inter-relacionam num determinismo recíproco; o que constitui o
elemento comum a ambos, é a existência social, atuante do ser humano que pensa
a idéia sempre em termos universais mas
em condições objetivas de espaço e tempo, e em função da finalidade de transformar coisas e
situações definidas. Por isso, a idéia não pode ser desligada do homem
que a produz, nem teorizada em qualquer de seus sentidos ou aspectos sem a
menção do sujeito que é g seu criador. Não é legítimo conceber qualquer
teoria científica, nem examinar o valor lógico das que compõem a ciência
atual, em qualquer domínio, sem mencionar a presença do homem que a concebe,
sem colocá-lo no centro do problema em questão, que só existe como tal para
êle, e que só lhe desperta interesse e recebe solução em vista das
influências que sobre êle exerce ou das conseqüências que para êle possa ter. A
necessidade de tratar os dados das ciências no seu conteúdo imediato pode
fazer-nos esquecer que tais dados se de um lado são dados da realidade, do mundo exterior ou do universo de abstrações
inteligíveis, como nas matemáticas, por outro lado são dados do homem, pois
este é o ser que os constituiu como os elementos pelos quais o mundo se
expressa para êle. Por isso, o homem representa ao mesmo tempo o centro e o
perímetro de todo o conhecimento. A ciência produzida pelo homem se por um lado
é a revelação do mundo, por outro é a revelação do homem. A possibilidade da
abstração, e portanto da criação da ciência, depende de que o homem haja adquirido condições de existência que lhe
permitam pelo estado de avanço evolutivo do organismo e pela estruturação
social da convivência, chegar à etapa em que se torna capaz de pensar universalmente os dados concretos
da experiência. Ao falar do homem, porém, estaríamos cometendo ainda um deslize especulativo, se não corrigíssemos as
formulações anteriores, de simples apresentação didática inicial,
mostrando que nos estamos referindo não ao indivíduo isolado mas ao ser social
que se constitui em criador da ciência. A teoria do conhecimento é sempre a
teoria do conhecimento do homem social, nos sentidos acima referidos, de autoria, fundamento e uso das
idéias. Com efeito, em primeiro lugar o que há a conhecer é aquilo que,
existindo no mundo exterior, desperta o interesse do homem. Ora, esta atitude
só surge e se organiza eficazmente em termos sociais. Ê a sociedade que, no
grau de desenvolvimento em que se encontra a cada momento, está empenhada em uma ação coletiva sobre a realidade ambiente,
e por isso sente-se impulsionada a descobrir a significação das coisas e
fenômenos em benefício dos seus membros. A curiosidade individual é o aspecto acidental
em que se evidencia o interesse essencial e permanente do corpo coletivo pelo
conhecimento da natureza- Não deve
nos conduzir à errônea interpretação de
acreditar que fosse o gênio de personalidades privilegiadas isoladas
que, a partir de si mesmo, sem raízes externas, criasse e impulsionasse a
ciência. O motor primeiro do interesse social na exploração da natureza reside
na necessidade do contínuo incremento das forças produtivas. Tendo a
investigação do mundo e a a organização racional das forças produtivas de ser
feita em caráter coletivo, sob algum
regime de relações entre os homens, que encontra expressão histórica nas formas políticas em que a espécie tem se agregado, a ciência revela-se por
definição um produto social. Num aprofundamento legítimo do seu
conceito deve dizer-se que, sendo coletiva por origem, a ciência é um
produto político da sociedade que a produz.
Quando se verifica atualmente que todas
as sociedades, especialmente as subdesenvolvidas, pelos benefícios que dela esperam, tomam consciência da
necessidade de praticar uma política da produção e da pesquisa
científica, devemos compreender que esse
fato não é acidental mas revelador de um aspecto fundamental da
constituição da ciência. Se por um lado a política da sociedade produz a ciência, por outro esta, uma vez produzida, condiciona,
como um dos seus determinantes, o desenvolvimento político da sociedade. A diferença entre sociedades desenvolvidas e subdesenvolvidas manifesta-se, neste particular,
como diferença entre produção de uma ciência desenvolvida ou de uma
ciência subdesenvolvida. Quando relacionamos a ciência com o processo de
hominização e falamos do homem como seu autor, estamos supondo que nem esse
processo nem a criação do saber podem ser entendidos
sem a compreensão de tratar-se de fenômenos coletivos, em que a espécie e seus grupos menores figuram
simultaneamente na função de agentes
e pacientes. O surgimento do pensamento racional e o subseqüente desenrolar
histórico da razão na aquisição dos resultados
que vão a conformando em faculdade superior, são acontecimentos sociais
no sentido em que não só a experiência de que provêm não poderia ser
realizada senão por um conjunto de indivíduos que nela estão interessados,
como ainda pelo fato de que esses
resultados só passam a integrar o conhecimento na forma de saber científico, se
forem reconhecidos socialmente, ainda que não necessariamente com caráter autoconsciente e
crítico, como expressão do pensar
racional, conforme o interpreta a comunidade na etapa de desenvolvimento que atravessa. Por
conseguinte, a teoria acima exposta
só adquire pleno conteúdo quando a entendemos no aspecto social e
histórico. A ciência é um bem social de produção, Ê igualmente consumida na condição de bem social, e por isso em seus fundamentos
e motivos o que sobreleva é o aspecto social, sem que tal julgamento signifique
o desconhecimento ou o menosprezo do esforço individual. Êste é o
criador original quando apreciamos a criação por um dos lados; porque, pelo
outro, é a sociedade que cria o saber que nela se desenvolve, porquanto cria o
indivíduo que deve as qualidades extrínsecas que possui, a educação que recebeu
e lhe irá permitir desempenhar o papel de descobridor científico, a condições
sociais inequívocas, tais a origem, oportunidade de trabalho, possibilidade de
recursos financeiros e técnicos Por fim, o cientista deve à sociedade o reconhecimento
do produto do seu esforço intelectual, que se incorpora à cultura da grei
e da época em caráter de contribuição dada pelo homem individual, mas só
tem valor quando sancionada pela comunidade O gênio individual criador
representa o elemento mutante na continuidade do progresso genético do
conhecimento. Estas reflexões conduzem-nos a compreender um dos aspectos
capitais da teoria da ciência: o papel mediador que a cultura, na
qualidade de produção social, exerce na criação da própria cultura em geral e
na da ciência em particular.
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