As duas bilhas

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As duas bilhas

Cada qual com seu igual. Dêste nosso provérbio parece foi tomado o doutrinal apólogo das duas bilbas: uma de barro, outra ir cobre, levadas rio abaixo com a fôrça da cheia. Rogou a de cobre à de barro que se chegasse a ela, para que juntas resistissem melhor ao ímpeto das águas.

“Não me convém, respondeu ela, a vossa amizade e vizinhança; porque, ou suceda topar eu convosco ou vós comigo, sempre vós ficareis inteira e eu quebrada.” M. Bernardes.

Era o tempo da revolta 1) de Custódio José de Melo. Rio de Janeiro jazia sob terror das balas. Receosos de carência de garan- tias aos estrangeiros, reuniram-se os membros do Corpo Diplomá- tico, sob 2) a presidência do seu decano :3{), o conde de Parati, representante de Portugal, a-fim-de deliberarem sôbre o caso.. Após muita hesitação,—não ousando tomar uma atitude coletiva—, re­tiveram agir cada um de per si. O representante da Inglaterra passou a Carlos de Carvalho, ministro do Exterior, uma nota em que comunicava, que, dentro em breve, estaria na Guanabara uma esquadra inglêsa, para garantir a vida dos súditos da Grã-Bretanha Respondeu-lhe Carlos de Carvalho, que o assunto era de tal forma melindroso que aconselhava fôsse ouvido o próprio Presidente.
1) Em setembro de 1893.

2) Que diferença há entre sob e sôbre?

3) decano e não décano.

Confiante no prestígio e na fôrça da Nação que represen tava, dirigiu-se o embaixador a palácio. E’ introduzido na sala da audiência. Após os cumprimentos, toma a palavra:—Excelência desejava saber como seria recebida no Rio uma esquadra inglês que teria o único fim de garantir a vida dos súditos de S. Maje. tade Britânica?

Floriano, com aquela serenidade que nenhum perigo, nenhuma ameaça conseguia perturbar, respondeu, impávido: — “A bala!…”

Jonatas Serrano.

Acabara de ser expôsto o quadro de Pedro Américo “Ba­talha de Avaí”. Pedro II, que se vangloriava de exímio conhece­dor das obras de arte, lá se foi com a sua côrte a ver o novo tra­balho do afamado pintor. Pararam todos em frente ao quadro E o imperador, desde logo, pôs-se a fazer a análise da bela pintu­ra. Elogiou o conjunto, admirou os pormenores, aplaudiu o efeito do colorido. Enquanto isso, a um canto Caxias olhava, de esgue­lha e simultâneamente, o quadro, o Imperador e o artista. Seus dentes cerrados murmuravam qualquer coisa de incompreensível. Um dos cortesões, notando-lhe o semblante enfarruscado, vira-se para o Imperador e diz-lhe baixinho ao ouvido: — “Majestade, pa­rece que o general não está gostando do quadro…”

Pedro II volta-se surprêso. Como? Haveria alguém que ou­sasse ter pensamento diferente do seu? Êle já havia elogiado sem restrições a pintura, felicitara o autor, e alguém desaprovava o seu juízo?

E entre autoritário e persuasivo:

— “General, faltam apenas os seus parabéns.” Foi então que [1]) a fisionomia do herói se fechou de todo. E, num gesto de desa­bafo, a voz surda, o olhar severo, ressentido, disse entre dentes: “Onde foi que Pedro Américo me viu no combate, de farda aberta e de camisa aparecendo?” (ldem)

Perdoou el-rei D. Sebastião de Portugal a uma viúva do seu tesoureiro metade da dívida em que seu marido ficara obrigado à fazenda real. Não faltou quem advertisse de que parecia lance [2]) excessivo. E êle, chamando logo a viúva, que voltava contente com o bom despacho da sua petição, lhe disse:—Entendeste-me?

— Sim, Senhor (respondeu ela) : há Vossa. Alteza por bem quitar- me[3]) metade da dívida. — Não é isso, sendo que perdôo-a tôda.

M. Bernardes.

O papa Sixto V, que dantes se chamava Felix Peretti, andava com bordão e cabeça baixa, fingindo-se enfermo e, para pouco, que necessitava, sendo assunto [4]) ao pontificado, de que os car­deais governassem por êle, e êle tivesse só o título honorífico, sem

o exercício laborioso. Mas, tanto que foi eleito e se declararam os votos, arremessou de si o bordão e endireitou a cabeça e disse com despejo [5]) : “Até agora andava inclinado para o chão, porque bus- cava as chaves de S. Pedro; agora me levanto, porque busco a fechadura. e quero abrir a porta do céu.” (Idem)

Sonhou um homem que via um ôvo atado na ponta do seu cobertor. Consultou a um agoureiro, que lhe disse, por interpre­tação, que naquele lugar onde dormia, estava escondido dinheiro.,;

Cavou o homem e achou ouro e prata. Desta deu por prê­mio ao adivinhador uma pouca parte, o qual, aceitando-a meio alegre, meio triste, disse aludindo ao ouro: “E da gema não há nada?” (Idem)

Diógenes, filósofo cínico3), cria tão pouco nas coisas dêste mundo, que nem uma choupana tinha em que viver, e morava den­tro em uma cuba4). Foi-o ver por maravilha Alexandre Magno e dizendo-lhe, com a sua natural munificência [6]), que pedisse quan­to quisesse, que responderia Diógenes?

“Peço-te que não me tires o que não podes dar.”

Disse isto, porque era inverno, e Alexandre, com a sombra do corpo, tirava-lhe o sol. M. Bernardes.

Entrou uma vez Alexandre Magno no oficina [7]) de Apeles 7), por honrar com sua presença a um sujeito tão insigne na sua arte, e começou a falar demasiadamente acêrca da pintura. Apeles com brandura, cortês, mas picante, lhe disse:

“Senhor, veja que se ri o moço que mói as tintas.”

(Idem)

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‘ 1) Assunto — elevado.

2) Despejo — desembaraço.

3) Cínico — chamavam-se assim os filósofos de certa seita que fazia consistir a sabedoria em desprezar as leis da boa sociedade, fingindo viver à lei da natureza.

4) Cuba — tonel grande. #

5) Que diferença há entre munificência e magnificência?

6) oficina é a palavra genuinamente portuguêsa, que dispensa o fran- cesismo atelier.

7) Apeles — insigne pintor grego.

Expôs Apeles à porta uma pintura sua, e pôs-s detrás do pano a escutar *) os votos e censuras várias dos que passavam. Veio um sapateiro e notou um defeito na chinela duma figura principal. Emendou Apeles a falta, e no seguinte dia tornou a passar aquele oficial: e, vendo a emenda, ficou satisfeito de si e atreveu-se a notar outra coisa na perna da mesma figura. Então Apeles, aparecendo, lhe disse:

“Não suba o sapateiro além da chinela.’’ (Idem)

Orando uma vez em Atenas o eloqüentíssimo Demóstenes -) sôbre matérias de importância, e advertindo que o auditório estava pouco atento, introduziu com destreza o conto ou fábula de um caminhante que alquilara :!) um jumento, e, para se defender no descampado da fôrça da calma, se assentara à sombra dêle e o al­mocreve 4) o demandara por maior paga, alegando que lhe aluga­ra a besta, mas não a sombra dela. Estavam os Atenienses neste passo mui aplicados 5), desejando saber a sentença com que se decidira aquêle pleito; porém Demóstenes, no mesmo tempo, se desce0) da cadeira dizendo: “Oh pejo! Oh miséria grande! Fol­gais de ouvir da sombra do jumento, e não folgais de ouvir do es­tado e bem público da Grécia!” (Idem)

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O rei Leopoldo II da Bélgica, embora na sua vida não tivesse sido um modêlo católico, não foi entretanto anti-clerical 7). Quanl do as religiosas francesas, expulsas em massa por Combes, trans­puseram as fronteiras em demanda da Bélgica hospitaleira, ao rei Leopoldo II, que se achava em Paris, se dirigiu um dos ministros do governo e pediu-lhe desculpas dizendo:

“Lamentamos dar êsse incômodo a V. Majestade. São elas que, uma vez expulsas, procuram o seu país.”

“Não se aflija — respondeu Leopoldo II — no meu país nun­ca são demais as pessoas honestas.”


[1] Foi então que. Vide a nota 5) à pág. 67.

[2] Lance — íasgo, generosidade.

[3] Quitar-me — perdoar-me.

[4] Que diferença há entre escutar e ouvir? Que escuta de si ouve (falar).

[5] Demóstenes — primeiro orador ateniense, viveu de 384-322 antes de Cristo.

[6] Aplicados — sin. atentos.

[7] Se desce — Vida a nota •”>) à pág. 20.

3) Não confundir ante e anti\ ante indica idéia de tempo anterior — ante^diluviano (antes do dilúvio) — anti significa contra — anti-cristão, anti-liberal.

Fonte: Seleta em Prosa e Verso dos melhores autores brasileiros e portugueses por Alfredo Clemente Pinto. (1883) 53ª edição. Livraria Selbach.

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