CAPÍTULO V – EMANCIPAÇÃO INTELECTUAL – D. João VI no Brasil – Oliveira Lima

D. João VI no Brasil – Oliveira Lima

CAPÍTULO V

EMANCIPAÇÃO INTELECTUAL

As condições da instrução
pública no Brasil colonial dos começos do século XIX eram reconhecidamente deficientes: pode mesmo dizer-se que eram no
geral quase nulas, tendo recebido um duro golpe com a expulsão dos jesuítas, os
quais no Rio e Bahia ensinavam gratuitamente, além das matemáticas elementares,
gramática latina, filosofia, teologia dogmática e moral e retórica, conferindo
aos alunos, quando terminavam o curso, o diploma de mestre em artes (magister
in artibus),
e nas outras partes do Brasil onde existiam colégios da Ordem,
ou mesmo simples hospícios, ensinavam primeiras letras e gramática latina.142

No Rio de Janeiro o
que havia de melhor como estabelecimentos de educação, antes da chegada da
corte, cifrava-se nos dois seminários de São José e de São Joaquim, fundados em
1739 pelo bispo D. frei António de Guadalupe e que se fundiram em 1817.
Preparavam esses seminários clérigos e funcionários públicos, servindo ao mesmo
tempo a igreja e o estado, ensinando para o que desse e viesse latim e
cantochão, especialidade aliás a última do seminário de São Joaquim, menos
leigo e destinado a órfãos desvalidos. Por isso era aí a educação toda
gratuita. No de São José, cujos alunos nem todos pois se destinavam à religião,
pagavam uns e outros recebiam instrução sem ónus algum, acolhendo-se os pobres
do mesmo modo e ao mesmo título que os ricos.

O programa dos
estudos no seminário de São José abrangia grego, francês, inglês, retórica,
geografia, matemática, filosofia e teologia. Os professores, e com mais razão
ainda os do seminário de São Joaquim, pertenciam quase sem exceção ao estado
eclesiástico. Era mesmo de justiça que assim acontecesse, visto numa sociedade
como a brasileira de então monopolizarem quase os religiosos o saber.

A trasladação da corte rasgou logo novos horizontes ao ensino.

Fundou-se no real hospital militar da Bahia uma aula de cirurgia e
outra no hospital militar do Rio, ambas com um curso de cinco anos, a fim de
formarem cirurgiões práticos que não existiam absolutamente fora das cidades do
litoral e andavam substituídos pelos curandeiros. Mesmo nos centros mais
importantes da costa se não encontraria porventura, para acudir a chamados fora
dos hospitais, um médico que tivesse feito um curso regular. Os próprios
cirurgiões que havia não eram formados em Portugal, onde a Universidade de
Coimbra compreendia uma faculdade de Medicina e o hospital de São José, em
Lisboa, fazia vezes de escola médica.

As operações mais
fáceis costumavam no Brasil ser praticadas pelos barbeiros sangradores, e para
as mais difíceis recorria-se a indivíduos mais presunçosos, porém no geral
igualmente ignorantes de anatomia e patologia realmente científicas, apesar de
terem prestado um exame perante o juiz comissário, delegado do cirurgião-mor do
reino, ou do representante do físico-mor se se tratava de aspirante a médico.
Os cirurgiões, médicos e boticários eram admitidos a essa prova com quatro anos
de prática num hospital ou numa farmácia. Remetiam-se para Portugal os autos
dos exames assinados pelos juízes e examinadores, e os candidatos requeriam
consoante eles suas cartas.143

Como entretanto eram
estes os únicos profissionais, vinham os doentes de longe, em carros de bois ou
em redes, atravessando expostos às intempéries um sertão sem estradas, a fim de
consultar na cidade um prático que, se se tornava conhecido e ganhava foros de
proficiente, o devia ao seu estudo pessoal exclusivamente. Depois do médico,
único autorizado a verificar moléstias internas, diagnosticar a doença, o
tratamento incumbia ao boticário, o qual tratava de curar segundo as receitas
exaradas em formulários portugueses velhos de dois séculos. Também quando, após
a abertura dos portos, chegava a qualquer vila do interior um estrangeiro,
geralmente negociante ou naturalista, supunha-se logo que soubesse curar e
corria gente de todos os lados a consultá-lo.144 Spix e Martius
assim esgotaram a sua provisão de remédios. Os forasteiros inspiravam mais
confiança do que os cirurgiões regionais, aos quais, no caso de andarem munidos
por via de exame de uma provisão do físico-mor do reino ou do seu delegado, era
lícito, na ausência dos médicos, curar de medicina.

A introdução da
ciência médica ou pelo menos do ensino médico d
: Brasil deve-se a um pernambucano, o Dr. José Corrêa Picanço (depois
barão de Goiana) o qual, após fazer estudos em Lisboa, os fora completar a
Paris e aí se casara com uma filha do célebre professor Sabatier, sendo, de
regresso a Portugal, sucessivamente nomeado lente de anatomia e cirurgia na
Universidade de Coimbra, 1º cirurgião da real casa e
cirurgião-mor do Reino. Foi nesta dupla qualidade que acompanhou à sua pátria a
família real, propondo ao príncipe regente na passagem pela Bahia, onde apenas
existia um seminário, a criação de uma escola de cirurgia, efetivamente mandada
organizar pelo Aviso de 18 de fevereiro de 1808. Só em

1816       
no entanto obteve a referida escola, por empréstimo
do hospital militar, os primeiros instrumentos para dissecação dos cadáveres,
sendo nesse mesmo ano que as duas cadeiras primitivas, -fundadas e logo
providas, se desdobraram efetivamente em cinco aulas ou anos,145 regularizando-se
o ensino médico de acordo com o plano do físico-mor honorário Manoel Luiz
Alvares de Carvalho, baiano de nascimento, formado em Coimbra, médico da Real
Câmara e diretor dos estudos de medicina no Brasil. Em

1817       
agregou-se uma cadeira de química, regida pelo
professor de Coimbra Sebastião Navarro de Andrade, ao programa anterior que
abrangia anatomia, fisiologia, farmacologia, higiene, patologia, terapêutica,
operações e obstetrícia.

Foi igualmente Manoel Luiz
Alvares de Carvalho o organizador,146 no hospital da Santa Casa da
Misericórdia, da escola médica do Rio de Janeiro, criada como a da Bahia em
1808, a instâncias de frei Custódio de Campos Oliveira, leigo professor dá
ordem de Cristo, em Tomar, e cirurgião-mor do exército e armada. Uma terceira
escola de medicina, prometida ao Maranhão na carta régia de 29 de dezembro de
1815, é que nunca chegou a ser estabelecida.

No intuito de dar
solidez aos estudos de medicina mandava uma carta régia do ano de 1810 que
fossem praticar em Edimburgo e Londres três alunos dos mais hábeis do curso do
hospital do Rio para se aperfeiçoarem no seu ramo de conhecimentos e, como
professores da faculdade, virem a dar à ciência médica brasileira todo o preciso
desenvolvimento. As intrigas dos correspondentes da Universidade de Coimbra,
determinadas pelo ciúme de independência intelectual da colónia, e apoiadas
pelo físico-mor do reino barão de Alvaiázere e também pelo cirurgião-mor
conselheiro Picanço, despeitado com não ter sido nomeado diretor dos estudos
médicos e cirúrgicos, anularam porém de fato os estatutos redigidos pelo lente
de higiene patológica Dr. Vicente Navarro de Andrade.147 Só mais
tarde, corrigidos e ampliados mais de uma vez aqueles estatutos de 1812, foi
possível executá-los integralmente e dotar o curso nacional de estudos médicos
de toda a indispensável própria dignidade.148 No entanto, mesmo em
tempo de Dom João VI, a escola do
Rio foi cumprindo a missão a que se destinava, educando, entre outros, rapazes vindos das
colônias portuguesas
da África para se habilitarem como facultativos e voltarem a clinicar nas suas terras, e
moços pobres pensionados pelo governo, os quais ficavam obrigados a servir nos regimentos de linha.

O conde de Linhares, para quem a integridade
nacional era mais do que uma preocupação, constituía uma obsessão, não descansou enquanto não estabeleceu na sede
da nova corte uma academia de guardas-marinhas em substituição da que fundara em Lisboa. Organizou-a no hospício do mosteiro de São Bento com todos os instrumentos, livros,
modelos, máquinas,
cartas e planos que possuía em Portugal, sendo em 1809, por virtude de uma das
providências subsequentes, criado um observatório astronómico para uso da companhia
dos guardas-marinhas. Logo depois fundou uma academia militar, agregando-se deste modo
por completo ao cultivo das ciências exatas o ensino das profissionais, a técnica da guerra
e a arte da defesa.

Nos tempos coloniais funcionara no Rio uma aula de fortificação, mandada estabelecer em
1699, e em 1793, durante o vice-reinado do conde de Rezende, abrira-se no
Arsenal de Guerra (então Casa do Trem) uma aula para preparo dos soldados e
oficiais de linha e milícias. A Academia Militar criada pela carta régia de 4 de dezembro
de 1810 e aberta aos 23 de abril de 1811, fecho das providências tomadas por
Linhares no sentido de reformar o exército do Brasil, dar-lhe disciplina e instrução,
representava
porém alguma cousa de muito mais compreensivo. Na própria expressão oficial — visava
a "estabelecer um curso regular das ciências exatas, de observação, de todas as
que contêm aplicações aos estudos militares e práticos, constitutivas da
ciência militar em todos os seus difíceis e interessantes ramos, e a formar
hábeis oficiais de artilharia e engenharia, e ainda mesmo oficiais da classe
de engenheiros geógrafos e topográficos, que possam também ter o útil emprego de dirigir
objetos administrativos de minas,
caminhos, portos, canais, pontes, fontes e calçadas".

A Academia Militar foi instalada no largo de São
Francisco de Paula, onde se andara construindo a Sé Nova, cujos alicerces e mais
material abandonado
se aproveitaram para essa obra.149 Os professores da instituição fluminense gozavam
dos mesmos privilégios, indultos e franquezas que possuíam os lentes de
Coimbra, e eram tidos e havidos como membros da faculdade de matemática da Universidade:
assim o estatuíra judiciosamente o ministro para dar a maior importância à sua criação cujo
curso completo abrangia sete anos. Estudavam-se no primeiro ano aritmética, álgebra, análise
geométrica, trigonometria retilínea e desenho de

figura; no segundo, álgebra, cálculo
diferencial e integral e geometria descritiva; no terceiro, mecânica,
hidráulica e desenho de paisagem; no quarto, trigonometria esférica, ótica, astronomia,
geodésia e física; no quinto, tática e fortificação de campanha, química, filosofia,
química e desenho militar; no sexto, fortificação permanente, ataque e defesa das praças e
mineralogia; no sétimo, artilharia, minas militares, teoria da pólvora da artilharia, zoologia,
botânica e desenho de máquinas de guerra. Tudo isto afora os exercícios práticos,
as línguas francesa e inglesa e a esgrima.150

A organização e regulamento desta Academia
Militar, com toda a sua exibição de conhecimentos matemáticos e indigestão das
matérias acumuladas
no programa extenso, copioso e vistoso, são da lavra do próprio Linhares, cujo fraco
consistia em passar por homem de ciência, como de fato o era no meio de uma
nobreza na sua grande maioria de uma deplorável ignorância. Nada contudo melhor
justifica do que aquele pomposo projeto a alcunha de Doutor Trapalhada ou
Doutor Barafunda que lhe pusera a espirituosa rainha Dona Carlota.
Depois, onde achar gente suficiente e assaz habilitada para dar imediata execução a
um plano assim grandioso? Tudo por isso ficava incompleto e falho, sem correspondência exata entre o resultado prático e a concepção
criadora.

Se as escolas de medicina experimentaram
dificuldades sérias para lograrem preencher os ilustrados intuitos da sua fundação,
não foi muito mais
afortunada no seu próximo destino a Academia Militar. A frequência que logo teve não
pode taxar-se de diminuta pois que ofereceu um número médio de 120 alunos, mas
não se puseram em prática por demasiado completos os estatutos, nem se
verificaram por indolência os exercícios práticos, nem se deu por incompetência o devido
desenvolvimento à teoria das construções, nem se atendeu por negligência à organização dos compêndios.151

O impulso entretanto estava dado. A decisão
pertinaz de um ministro, firmado no bom senso arguto do seu soberano, rompera às machadadas a espessa crosta de
gelo austral que isolava das sementes liberalmente espalhadas o terreno inculto,
porém cheio de húmus, onde elas podiam germinar. E os exemplos mostram como logo
frutificaram. Em Pernambuco, onde desde o bispo Azeredo Coutinho funcionavam um
seminário de
estudos secundários e eclesiásticos, um colégio de meninas estabelecido com um legado do deão da
Catedral e um quase sistema de escolas primárias, abria-se aos 6 de junho de
1814 um curso de estudos matemáticos, recitando o discurso de inauguração o Dr. António
Francisco Bastos, opositor da faculdade de matemática de Coimbra, lente e diretor dos
estudos
militares da capitania. O
seminário anteriormente existente encerrava no seu programa línguas vivas e
mortas, filosofia, retórica, geografia, história universal e sagrada,
desenho, matemáticas elementares, história natural e teologia.

No Rio, a Aula de Comércio simultaneamente criada com a Academia Militar, viu-se
muito mais frequentada ainda, sendo de resto natural que sobrelevasse o espírito
mercantil ao bélico, que nunca foi acentuadamente caraterístico nosso. Foi
professor dessa Aula, nomeado em 23 de janeiro de 1810, José António Lisboa, o qual
cursara os estudos de matemática no Real Colégio dos Nobres da capital portuguesa e
em seguida visitara Paris e
Londres.152

Por ocasião da elevação do Brasil a reino, dois
anos antes da aclamação de Dom João VI, os negociantes do Rio de Janeiro, aos quais parece que deviam dizer pouco
os assuntos intelectuais, escolheram todavia a oferta ao monarca de uma bela soma de
dinheiro para ser aplicada a fins de educação geral, como o melhor meio de comemorar
aquele auspicioso evento, tão grato que até chamou à capital deputados das câmaras municipais
das
províncias, pressurosos de agradecerem a considerável mercê feita à nação.
Deveriam, na intenção dos ofertantes, ser os rendimentos do capital doado, perpetuamente
empregados em estabelecimentos que promovessem a instrução nacional.

Por um decreto adrede promulgado deliberou o rei — que o
foi justamente
de nome no ano de 1816 — que as fundações dotadas com aquela dádiva se erigissem no
Rio de Janeiro mesmo, para que delas pudessem utilizar-se com preferência os
descendentes dos subscritores, unindo-se às cadeiras das ciências que então já
existiam, as novamente criadas, por maneira que viesse a formar-se um Instituto
Académico compreendendo o ensino das ciências e belas-artes e sua aplicação à
indústria. Deu este pro-jeto lugar, por tão compreensivo, a que tenha
repetidamente sido apelidado
Universidade o delineado Instituto Acadêmico.

Por seu lado o governo recorria a todas as providências
no sentido de
bem servir à causa da instrução pública. Assim, obedecendo à consulta da Mesa do Desembargo
do Paço, em 1811 isentou do recrutamento os estudantes matriculados nas aulas
oficiais153 e cuja frequência e aproveitamento fossem testemunhados
pelos professores respectivos.

Adquirido pelo governo o chamado gabinete de história
natural do barão
Oheim,154 que era antes uma coleção mineralógica descrita por Werner, foi arranjado
num esboço de museu, dispondo-se ao mesmo tempo os diamantes e outras
curiosidades remetidas do distrito Diamantino pelo intendente Ferreira da
Câmara. Dele proveio o atual Museu Nacional e aliás se evolvera do rudimento
que recebera do público atónito o nome de Casa dos Pássaros, por causa de uns
poucos exemplares ornitológicos empalhados
que encerrava.

A essa nova instituição científica, fundada por
decreto de 6 de junho de 1818, foi dado por fim "propagar os conhecimentos e estudos das
ciências
naturais no reino do Brasil que encerra em si milhares de objetos de observação e exame, e que
podem ser empregados em benefício do comércio, da indústria e das artes,
que muito desejo favorecer, como grandes mananciais de riqueza…" Foi o
seu primeiro diretor frei José da Costa Azevedo, lente de mineralogia e diretor do
gabinete mineralógico e físico da Academia Militar, começando desde então a aí serem
reunidas amostras de minerais e coleções de etnografia nacional, tais como
múmias de índios, utensílios e
armas selvagens etc.

Dir-se-ia que tudo se animara ao sopro científico.
Numa sociedade que ontem só lograria distinguir-se pelo atraso, de um momento para outro ouviram-se conferências
filosóficas,155 concederam-se patentes de invenção, analisaram-se águas
minerais para serem consumidas e exploradas, ensaiou-se a introdução de tipos
de faunas estranhas como o camelo da Arábia e a cabra da índia. No centro longínquo de
Cuiabá chegou a organizar-se em 1817 uma companhia de mineração a exemplo da que no mesmo ano se organizou em Minas Gerais pelas instâncias de Eschwe-ge.156 E a melhor prova de que o anterior
empirismo cedia o passo à investigação científica está em que por decreto de 25
de janeiro de 1812 se fundava no Rio um laboratório prático, "tendo em consideração as
muitas
vantagens, que devem resultar, em benefício dos meus fiéis vassalos, do conhecimento das
diversas substâncias, que às artes, ao comércio e indústria nacionais podem
subministrar os diferentes produtos dos três reinos da natureza, extraídos dos meus domínios
ultramarinos".

Onde era desconhecida a produção tipográfica,
entraram de repente os prelos a
dar à luz numerosos trabalhos. No tempo que medeia entre as Observações comerciais e económicas de
Silva Lisboa (1808) e as Memórias
do Rio de Janeiro
de monsenhor
Pizarro (1820), saíram da Impressão
Régia obras didáticas, de moral, de filosofia aristotélica, poéticas, dramáticas, mercantis, clínicas, náuticas, de
todo género. Se bem que não
existindo liberdade de imprensa, uma revista "literária, política e mercantil" assaz interessante — O Patriota—foi
editada nos anos de 1813 e 1814, difundindo
pelas classes alta e média a instrução que nas suas páginas era fornecida por homens do valor de Silvestre
Pinheiro Ferreira, José Bonifácio de Andrade e
Silva, Domingos Borges de Barros, Mariano J. Pereira da Fonseca (futuro marquês de Maricá) e outros.

Não havia porém censura que obstasse à franca
circulação do Correio Braziliense, onde se criticava com talento
toda a marcha da política portuguesa e todos os processos da sua administração. Em
Portugal a Regência,
mais realista do que o rei, vedara esse periódico, que no Rio era Dom João VI o primeiro a ler com
assiduidade.157 E se em Lisboa nos fins do século XVIII eram perseguidos sem
piedade quaisquer livros franceses — uma denominação que abrangia todas as publicações
estrangeiras
—, no Brasil eram tão iludidas as interdições opostas às ideias impressas importadas de fora
que, Luccock é quem o afirma, ao tempo da residência da corte portuguesa eram
muito lidos Voltaire e Rousseau, a saber, os emancipadores do pensamento
latino, e não eram desconhecidos nas traduções os autores ingleses e alemães,
Shakespeare e Pope, Gessner e Klopstock.

Entre o sexo feminino mesmo foram sensíveis os
progressos realizados pela educação. Entre esse sexo era naturalmente a ignorância mais extensa e marcada, quase
que se limitando a instrução das senhoras mais distintas a saberem rezar,
contar de cor e perceber a linguagem das flores, por outra os meios de
correspondência com os santos e com os namorados. Debret já fala porém num
colégio de meninas aberto no convento da Ajuda, ao lado do recolhimento, e noutros colégios,
leigos, com professores, onde se ensinavam língua portuguesa, aritmética, catecismo,
bordado e
costura. Emigrados franceses davam por esse tempo lições particulares do seu idioma e
de geografia. Maior incremento só tomaria a educação feminina depois de 1820,
quando se vulgarizou o conhecimento do francês e se tornou grande a frequência dos
colégios de meninas, nos quais passaram a ser cultivadas prendas como o canto, a dança e
o desenho.158

Somente gorou o projeto de uma universidade —
projeto acariciado pelo rei, que chegou a convidar José Bonifácio para diretor
dela, mas não igualmente
favorecido por todos os seus ministros — pela tenaz oposição do ainda
preponderante elemento português, o qual assim receava ver desaparecer uma das
principais bases sobre que a metrópole assentava a sua superioridade. Na colónia
existiam capacidades, bem se sabia no velho reino, tanto melhor quanto o
século XVIII
português
fora intelectualmente de metade brasileiro. O que faltava em absoluto era
universalidade de educação, justamente o que aquele desígnio aspirava a introduzir no nosso meio espiritual.

Em
compensação Dom João VI
e o conde da
Barca, inimigo político de
Linhares e seu digno emulo na inteligência e na cultura, deram princípio a uma
Academia de Belas Artes,159 organizada com artistas franceses de
mérito e reputação contratados por intermédio do marquês de Marialva,
embaixador em Paris depois da restauração dos Bourbons, o mesmo casquilho de
quem Garrett escreveu que, após morto, as hetairas parisienses disputaram para
recordação anéis do cabelo. Há até quem julgue, e Debret o insinua, que a
primeira ideia da Academia nasceu das conversações de Alexandre de Humboldt com
aquele diplomata e ilustre fidalgo português, que em França soubera
constituir-se um círculo de artistas, sábios e homens de letras, para ajudar e
socorrer os quais estava sempre generosamente franca a sua bolsa.

Barca era aliás bem
capaz de ter ele só tido a lembrança, se Dom João VI não fosse o amador esclarecido que desde Lisboa se revelara na
prote-ção dispensada a artistas nacionais e também estrangeiros como o famoso
gravador Bartolozzi. Esse gentil-homem afável e distinto, tão comple-tamente do
seu fim de século, tão filho daquele período de transição; esse bibliomano por
tantos anos valetudinário; esse aristocrata sem pretensão e sem preconceitos,
com uma expressão tão aguda no seu fino rosto comprido, mostrava-se por igual
devotado às artes, às ciências e às indústrias. Na sua casa encontrava-se sempre
hospedado algum profissional: ou o cavalheiro Neukomm, discípulo favorito de
Haydn e compositor da real capela, ou um pintor italiano agarrado não se sabia
onde, ou algum dos mui-tos mecânicos, gravadores ou outros artistas para quem
ele obtinha pensões do Tesouro a fim de aperfeiçoarem na Europa os seus
talentos e aptidões naturais. Refere Debret que num pátio da casa do
inteligente minis-tro existia uma oficina para fabrico de porcelana; numa
dependência fun-cioonava um laboratório de química para melhoramento, entre
outras indústrias, da destilação da aguardente de cana; num depósito jaziam as
peças incompletas duma máquina a vapor mandada vir de Londres. Logo em seguida
à chegada da corte ao Brasil, enquanto D. Rodrigo tomava pres-surosamente conta
das pastas que o seu rival gerira no reino e que por seu turno dele viria a
herdar, fundou Barca (então ainda simplesmente An-tônio de Araújo) uma
sociedade de animação à indústria e mecânica, a qual até 1822 se ressentiu da
apatia geral para empreendimentos de semelhante natureza, que fora trazida do
reino na esquadra da emigração e contaminava todos os serviços públicos,
paralisando esforços individuais vigorosos e tornando mui pouco frutuosas
tentativas promissivas como aquela..

O grupo de artistas importados de Paris e desembarcados no
Rio em março
de 1816 era dirigido por Lebreton, secretário perpétuo da classe de Belas-Artes do Instituto
de França, e compunha-se de J. B. Debret, pintor de história; Nicolas A.
Taunay, pintor de gênero e paisagem; outro Tau-nay, Augusto, escultor e irmão
do pintor; Grandjean de Montigny, arqui-teto; François Ovide, professor de mecânica;
Simon Pradier, abridor ou gravador em talha fina, e François Bonrepos, ajudante do
escultor Taunay.

O governo francês não podia opor-se, mas não viu com
olhos muito favoráveis essa emigração de capacidades artísticas organizada pelo
embaixador de Portugal. Maler no
Rio chegou a pensar que se tratava de um
exílio disfarçado de indivíduos afetos ao império, mas o próprio Ministério de
Estrangeiros negou que houvesse tal, afirmando ser voluntária a expatriação e não se acharem os artistas em
questão visados pela polícia ou
ameaçados pelas leis de segurança da monarquia restaurada.160
"É provável, escrevia o ministro, que alguns deles cederam, ao
afastarem-se da França, a um vago
sentimento de inquietação, e imaginaram que além-mar encontrariam mais tranquilidade. Outros foram apenas levados para o Brasil pela esperança de se estabelecerem e fazerem
fortuna, julgando que numa ocasião em
que as produções artísticas gozam porventura entre nós de menor procura, seus
talentos seriam melhor apreciados na sua nova residência. Há sem dúvida lugar de crer que uma parte desses
cálculos resultará falaz e que esses
viajores deplorarão, após algum tempo de demora no Brasil, ter deixado um país mais adiantado nas artes e por
conseguinte mais de feição a
assegurar-lhes os recursos que eles desejam."

Não se enganava o ministério francês. O desígnio da
corte do Rio tanto tinha de simpático quanto de ousado e algo mesmo de incongruente, pois
que o povo no Brasil carecia muito mais de ensino industrial que de artístico.
As belas-artes necessitam apoiar-se sobre as artes mecânicas, quando não o edifício fica
sem alicerces: não se pode iniciar uma construção pela cumeeira. É verdade que com
os artistas vieram alguns operários franceses — um ferreiro, um serralheiro, um curador de
peles e curtidor, dois carpinteiros de carros — com o fim de desenvolverem as indústrias,161
mas não era
dado aos artistas esperarem de braços cruzados que se fizesse a educação profissional do
público, e que nele se incutisse depois o gosto mais apurado das coisas em que
a técnica se combina com a imaginação e o sentimento. Contudo, para florescerem,
precisam as belas-artes de uma atmosfera adequada e de um meio propício: sem luz e sem
calor bastante como poderiam as plantas vingar? Onde porém encontrar semelhante
correspondência, que por ser moral não era menos indispensável que a física, no Brasil daquela época,
com ócios mas sem fortunas, e sobretudo sem um gosto vivo pelos objetos de
arte, os quais fariam as delícias de raros entendidos e o estímulo de raras
vocações, mas entre a quase totalidade não podiam rivalizar no interesse que despertavam
com a admiração mais primitiva, mais ingênua e mais imediata das belezas naturais," já
por si própria de espíritos com
certa educação?

Citara Humboldt a Marialva o exemplo de uma Academia
análoga no México como de natureza a animar as esperanças de uma tal fundação. Todavia essas
esperanças acabaram ali por não frutificar, assim como no Brasil foi a história da
Academia uma história melancólica. O falecimento quase imediato de Barca, o seu mecenas;
aquilo que Debret intitula o geral sistema de mediocridade, a saber, a indiferença pela
tentativa, posto que tão sugestiva, por parte mesmo dos que se reputavam mais
ilustrados;
a surda hostilidade dos poucos artistas nacionais, tanto mais presumidos quanto a si
próprio deviam o desenvolvimento dos seus talentos, que consideravam
naturalmente inexcedíveis; por fim as discussões e dissensões políticas que se
abriram com a insurreição pernambucana de 1817 e se prolongaram com a revolução
liberal de Portugal em 1820 e o movimento nacional da Independência de 1821 e 1822,
retardaram até 1826, depois do império proclamado, reconhecido e meio
pacificado, a abertura da Escola em que tanto se confiara, ou pelo menos tinham confiado seus iniciadores para a
formação do gosto brasileiro, para a elevação do nível mental do novo reino, cuja
ereção em 1815 fomentara o espírito patriótico e pode dizer-se que entrara a modelar o caráter nacional.

Foi como se houvesse começado uma era nova na
existência política do Brasil. Principiou desde então o país a ter não mais a suposição mas
a
consciência da sua importância. As capitanias estavam dantes separadas, algumas eram até
hostis. Acontecia o mesmo que na América do Norte durante o regime de dependência
colonial. O que lá fizeram a guerra de libertação e a obra do Congresso tão felizmente
continuada por Washington, aqui o fez a coroa com a sua generosa iniciativa, que consagrou um
estado de coisas criado pelas circunstâncias históricas, independente da sua
vontade, mas também pelas múltiplas e esclarecidas medidas, filhas ia sua ação. A mudança da
corte transformara com efeito o Rio de Janeiro no centro do império
americano, no que Lisboa era previamente para esses fragmentos geograficamente
anexos e moralmente esparsos da monarquia portuguesa, agora províncias unidas de um reino
quase autónomo.

Foi mediante a constituição dessa entidade
administrativa que a enorme possessão transatlântica, espiritualmente emancipada
pelos esforços dretos, se tardios da metrópole, entrou a oferecer no seu conjunto uma personalidade de
sentimento. O falecimento da rainha no ano de 1816 e a aclamação do novo soberano no
de 1818, atos capitais da vida da nação sob o regime monárquico, passaram-se logo depois
de fundado o reino no seu seio e, representando motivos de convergência das manifestações
públicas, serviram instintivamente de elos que prenderam as populações
brasileiras. Esses acontecimentos foram celebrados em cada uma das antigas capitanias, fazendo
afluir de todos os lados as cidades e vilas, para assistir aos festejos ou às
cerimónias fúnebres, gente que vibrava sob idênticas impressões. A uniformidade
das sensações precedeu e determinou a uniformidade das vontades.

Percorrendo-se a formosa obra de Debret e
encontrando relembradas nas suas curiosas litografias as grandes cerimónias da
corte do Rio de Janeiro no primeiro quartel do século findo — aclamações, funerais, casamentos — vê-se
graficamente onde e como se constituiu o sentimento nacional da terra. Sua expansão
teria que continuar até completar-se essa formação, se bem que o elemento
oficial julgasse, com a elevação honorífica, remate de tantos melhoramentos efetivos, ter
dado inteira satisfação ao impulso de progresso público, consequência do
progresso material, e preenchido todas as aspirações morais da ex-colônia.

Com este estado geral sofreu mais do que
aproveitou a Academia de Belas-Artes, ainda que a situação devesse em tese
favorecer os seus desígnios originários. Nos dez anos decorridos de 1816 a 1826 o palácio da
Academia, de
cuja construção fora encarregado Grandjean de Montigny, não logrou, por falta
de meios postos à disposição do arquiteto, passar do andar térreo com um pavilhão ou
templo grego no centro. O belo grupo de artistas, ainda aumentado com a
chegada, pouco depois dos passageiros da Calpé, dos escultores irmãos Ferrez, um
ornamentista e o outro gravador de medalhas, já o dispersara entretanto a sorte, não
obstante as providências do
governo.

A fim de prender esses artistas ao Brasil, Dom João VI ao mesmoj tempo que os desonerava de
obrigações oficiais até a inauguração da Escola, estipulou a cada um a pensão alimentícia de 5.000 francos (12.000
a Lebreton, diretor do Instituto
Brasileiro) sob obrigação de permaneçerem seis anos no país, que tanto se
julgava tempo mais do que suficiete para
a organização da Academia em que eles deviam proeminentemente figurar. A referida pensão continuaria a ser-lhes
arbitrada na França, a para lá
decidissem regressar, perdendo, bem se entende, todo o direito aos ordenados que mais tarde deveriam caber-lhes na
qualidade de professores.

A liberal
provisão do Rei não pôde obstar ao desbarato do risonho projeto. Lebreton, desanimado com
o falecimento de Barca e desgostoso com as intrigas de que estava sendo alvo, retirou-se para
uma casinha na Praia do Flamengo, então um verdadeiro arrabalde de recreio, e
dedicou-se
à literatura, morrendo tristemente em 1819. Maler, que era um antigo emigrado de 1792,
detestava cordialmente Lebreton, bonapartista conhecido e que como tal fora privado
na França do seu cargo perpétuo na reorganização do Instituto: nem foi com o aplauso dele
que a Academia Brasileira se delineou no Rio sob a direção de ex-secretário da Seção de
Belas-Artes
de Paris. No Rio conservou o representante francês constantemente a vista sobre o seu
compatriota emigrado, acusando-o de conservar na pátria relações criminosas e suspeitando-o
de receber cartas e boletins redigidos num espírito de partido cego e odiento.162
Infelizmente, segundo refere, não podia Maler surpreender essa correspondência
porque a protegia o barão de São
Lourenço, cuja influência era tão considerável.

O gravador Pradier partira entretanto para França, a fim
de proceder em
pessoa à execução das gravuras que tinham de vulgarizar alguns dos quadros — retratos do
rei e do príncipe, embarque das tropas para Montevideu, desembarque da
arquiduquesa Leopoldina, aclamação de Dom João VI — com os quais Debret ia
preenchendo suas funções oficiais. Ao mesmo tempo aumentava o pintor da corte seus
proventos com os panos e cenários que fazia para o teatro de São João e com a marcação dos bailados alegóricos
imaginados pelo empresário dessa sala de espetáculos para festejar, mediante pingues
compensações do bolsinho do soberano, os aniversários reais e os
acontecimentos memoráveis da dinastia e da monarquia.

A meio da sua estada na França, de que resultaram alguns
bons retratos gravados, de Barca e Palmela entre outros, foi Pradier dispensado
pelo novo
diretor da Escola, o pintor português Henrique José da Silva, a quem o barão de São Lourenço, seu protetor,
mandara vir de Lisboa e fizera nomear para
aquele cargo, que acumulava com a cadeira de desenho, depois da morte de Lebreton, sem outro título mais, no dizer um
tanto suspeito de Debret, do que ser
pobre e pai de doze filhos. Simultaneamente era o secretário francês da Academia substituído por um outro,
português.

Queixaram-se os artistas franceses de que fervilharam
desde então mais ativamente contra eles as intrigas portuguesas, e foi este o motivo
pelo qual
logo se retirou para França o pintor Taunay. Com efeito o novo diretor, no prurido muito
nacional de reformar mesmo o que ainda não entrou a funcionar, começou por
suprimir cadeiras e portanto eliminar professores de franceses, como o gravador
em talha fina, dois alunos de arquitetura que ao mesmo tempo ensinavam, e o professor de
mecânica.163 Thomaz António, homem de bem, cheio de excelentes
intenções, que a maldade da sua
roda de aduladores e a insuficiência dos seus talentos para a administração não lhe permitiam realizar, quis
reparar o mal com os paliativos
próprios do seu temperamento, fazendo os artistas franceses colaborarem com suas razões e propostas na reforma
de que eles só tinham tido
conhecimento pelas desconsiderações e supressões que ela encerrava no que lhes dizia respeito. O ministro foi,
porém, mais uma vez de encontro à
perene inércia das repartições. O diretor português, bem conhecendo que não era a energia o caraterístico
principal de Thomaz António, não
cumpriu as ordens recebidas, o tempo foi-se passando, vieram as agitações
revolucionárias, e em abril de 1821 regressava a corte portuguesa para Lisboa,
votando ao abandono os figurantes desse belo tentame artístico, os personagens
desse verdadeiro sonho da Renascença. A Academia de Belas-Artes ideada pelo rei, por um gentil-homem faustoso e por um
estadista afeiçoado às coisas do espírito, só conseguiria abrir suas portas
depois de acalmada a excitação patriótica, que assinalara a emancipação
política e distinguira a implantação de um arremedo de sistema constitucional
que aos poucos teria que ir assumindo o aspecto da realidade.

O incontestável progresso material e moral da
colónia, praticamente emancipada desde que a corte portuguesa nela se fixara, posto que com a intenção geral de
constituir apenas um prolongamento provisório da de Lisboa, com o mesjno pessoal, os
mesmos hábitos, as mesmas tradições, o mesmo caráter, fora gradualmente
produzindo um efeito inesperado, o que pelo menos não entrava seguramente nas conjeturas e
esperanças de Dom João VI e dos seus ministros Linhares e Barca: o de distanciar
espiritual e
politicamente os súditos dos dois continentes, tanto ou mais quanto os havia distanciado a
natureza, desdobrando amplamente as águas do oceano, imagem do abismo que de
futuro teria, nas aspirações nacionais da época, que desunir fundamentalmente portugueses
e brasileiros. Tudo aliás ia concorrendo para semelhante resultado, como a
fatalidade da tragédia antiga. Era o destino das coisas a criar na corte nova a nova nacionalidade.

Podia a atmosfera palaciana ser carregada de desprezo
pelos nacionais,
exceção feita do príncipe;164 a educação ia dia a dia dilatando a
perspectiva
intelectual e emprestando ambição e dignidade aos súditos americanos da monarquia.
Podiam as reformas do ensino ser inquestionavelmente mais de tese e no papel do
que reais e efetivas, entravando a rotina as rodas do carro e roubando à
marcha a velocidade; os livros estrangeiros tinham entrado a circular
grandemente, disseminando as ideias liberais e
operando necessariamente sobre o franco desenvolvimento das mentalidades, ao
mesmo tempo que os livros nacionais se tornavam em avultado número acessíveis a
toda gente pela livre frequência em 1814 da Biblioteca Real, a princípio apenas
facultada a alguns privilegiados.164-a

Mais instruídos e mais
lidos em casa, começaram os brasileiros igualmente a viajar em mais crescido
número, a visitar o norte da Europa, a avaliar com segurança da diferença dos
governos que ali compreendiam, contrastando com uma Itália entregue ao
despotismo austríaco e ao carbonarismo patriótico, uma Inglaterra evolvendo-se
francamente para uma base democrática das suas instituições
monárquico-aristocráticas. No seu país, entretanto, apesar da disseminação da
cultura, permaneciam os primeiros lugares privilégio do elemento reacionário,
dos portugueses, ficando assim para os brasileiros sem realidade as suas
maiores aspirações e sem estímulo especial o seu fervor pelos conhecimentos. Ao
lado de muita reforma útil e de muito projeto benéfico, continuava ao mesmo
tempo a exercer-se a rapacidade de válidos e funcionários transplantados, os
quais, na impossibilidade de tudo alcançar a vista real, tratavam o novo reino
como teriam tratado a antiga colónia, como terra conquistada.

Os brasileiros moços,
sobretudo, cujos ombros se não tinham vergado sob o peso da servidão colonial,
ou cujos espíritos pelo menos não moscavam as consequências do isolamento
mental, não poderiam resignar-se a quedarem sem destino político na sua
sociedade regenerada, cultivando a poesia, a música e os exercícios corporais,
enquanto se dessorava o seu gênio sutil, murchavam seus impulsos ardentes e se
esgotava a esmo sua atividade num clima debilitante em que, segundo bem
escreveu Debret, a função imaginativa cresce no sentido inverso da energia
física, dominando as faculdades enervadas.

Pouco poderia em
todo caso durar esse ostracismo de uma nacionalidade. Os nacionais que,
afrontando a malevolência reinícola, continuaram a frequentar â corte no mesmo
pé e com os mesmos direitos que os emigrados, a breve trecho reclamariam o que
lhes era ou julgavam ser-lhes devido em matéria de distinções e, em seguida a
estas, de co-participação efetiva na administração, em tudo agindo com o ímpeto
e violência da sua natureza menos convencional, mal refreada, sem muitos
refolhos, nem capacidade de resignação consciente, nem tradições moderadoras de
educação política. E por que não governariam eles a sua pátria, não se
colocariam à testa dos negócios que lhe diziam respeito,
se tanto valiam quanto os de além-mar?

Alguma da gente que nascera na ex-colônia e por esse tempo
nela vivia, ilustraria qualquer
nação independente; acrescendo que se é lícito dizer-se de um José Bonifácio que foi
essencialmente o produto da educação coimbrã e de viagens pelos centros ilustrados da
Europa, outros se encontravam cujas facilidades, não tinham sido as mesmas e constituíam produtos mais ou menos
puramente, mais ou menos genuinamente coloniais. José da Silva Lisboa, por
exemplo, formou-se em Coimbra e ali lecionou hebraico e grego, porém na Bahia
passou o melhor da sua vida como professor de filosofia e de grego e depois como secretário
da mesa de inspe-ção.165 A sua erudição e ampla visão revolucionaram
todavia o direito mercantil português,166 da mesma forma que a
ciência de Melo Franco deu uma nova orientação entre nós à medicina e que a inspiração do padre José Maurício, o qual
nunca saiu da terra natal, dotou a música brasileira de um tocante poder de emoção.

A excelência da matéria-prima ficara desde muito
bem provada na possessão, sendo de prever que, com o desenvolvimento da instrução, a produção peculiar ao
meio subiria de nível e igualaria as manifestações dos outros centros, senão na
intensidade e na importância dos resultados, pelo menos no caráter. Tal foi o
efeito das reformas empreendidas na fase de remodelação que se estende de 1808 a 1821,
quando a instrução perdeu no
Brasil o seu aspecto empírico e foi ganhando o tom científico.

Outro
caraterístico então adquirido foi o leigo. Anteriormente era o ensino colonial todo religioso; as próprias
ciências profanas eram quase
exclusivamente ministradas por eclesiásticos e em estabelecimentos eclesiásticos. As aulas régias a que deram origem as
preocupações seculares derivadas da
reação antijesuítica, tinham sido totalmente eclipsadas pelas aulas dos
conventos e casas maiores de algumas comunidades como a Congregação do Oratório. Costumavam os
estudantes destas aulas religiosas dar prova pública das suas
habilitações em solenes conclusões de
filosofia, arguindo e defendendo em português e latim teses escolhidas pelos mestres e preparando-se com meses de
estudo e sabatinas regulares para
semelhante debate académico. As provas tinham às vezes lugar nas igrejas para que a elas pudesse assistir, num
meio mais sugestivo, um mais crescido auditório, e a música lhes
emprestava um ar festivo e fascinador, com o
qual não logravam decerto competir os insípidos exames leigos.167

Tudo isto mudara com o novo espírito do ensino
brasileiro. A emancipação intelectual de uma minoria restrita, pode mesmo
dizer-se ínfima, estava feita antes da chegada da corte: restava propagá-la, quando não entre a grande massa,
refratária a estudos mais sérios e cuja situação material não comportava cultura,
pelo menos entre as camadas de cima, às quais competia a função diretiva. Esta foi a
obra, em tal domínio, dos treze
anos do reinado americano de Dom João VI.


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