Capítulo IV – O PRIMEIRO MINISTÉRIO E AS PRIMEIRAS PROVIDÊNCIAS – D. João VI no Brasil, – Oliveira Lima

O PRIMEIRO
MINISTÉRIO E AS PRIMEIRAS PROVIDÊNCIAS

Capítulo IV de D. João VI no Brasil, de Manuel de Oliveira Lima.

É axiomático que, tendo acabado por francamente
repudiar a tutela francesa que lhe andara imposta pelos acontecimentos, e proclamar sem rebuço suas sinceras
predileções britânicas, o príncipe regente, ao organizar o seu primeiro ministério
brasileiro, daria nele entrada aos estadistas mais abertamente devotados à
Inglaterra. Assim foi que a D. Rodrigo de Souza Coutinho confiou os negócios
estrangeiros e a guerra, as pastas de Antônio de Araújo, de quem já em 1811 se falaria
entretanto de novo para o lugar de ministro;85 a marinha ao visconde
da Anadia, e a D. Fernando de Portugal, futuro marquês de Aguiar, o remo, com a
presidência do erário régio e o cargo de ministro assistente ao despacho, que equivalia
ao de
primeiro-ministro, com precedência sobre os colegas e conhecimento dos assuntos de todas as pastas.

Passava D. Rodrigo, com razão pelo principal e corifeu do partido inglês, formando com Barca e
Palmela, cada um no seu campo, a trindade dos mais distintos homens de estado
portugueses do primeiro quartel do século XIX. Não era absolutamente um hipócrita intrigante como Balsemão, nem um ambicioso
trêfego como Seabra, nem um nulo enfatuado como Ponte de Lima. Era
sobretudo um homem de trabalho e essencialmente um homem de bem, dotado de
bastante ilustração e de muito patriotismo, com grandes idéias para tudo, posto que um
tanto confusas e com fraca relação ao meio em que se movia ou antes aos meios de que
podia lançar mão, precipitado talvez, colérico, mesmo violento por pronto a ouvir lisonjas e
seguir sugestões, mas sabendo abordar inteligentemente todos os assuntos de
administração para os tratar em memórias ou de viva voz com forma fluente e
conhecimento de causa. Destarte, premunido pelo estudo e na maneira apaixonada que lhe era
pessoal, procurava constantemente
acertar no intuito de elevar a nação.

Quando ministro no estrangeiro, um pouco em
desacordo com os hábitos diplomáticos, não havia questão para a qual não voltasse o melhor
da sua
atenção. Tudo tinha o condão de interessá-lo profundamente. Nos papéis que
deixou86 deparam-se-nos, a par de notas de história política européia
e resumos dos conflitos diplomáticos de que Portugal foi parte, apontamentos sobre as
matérias mais dissemelhantes: caixas econômicas, barreiras, cultivo da batata e
da amoreira, fabrico da seda, problemas de hidráulica, modo de fazer pão.
Preocupavam especialmente o seu espírito as materiais econômicas, então na ordem do dia,
debaixo da influência de Adam Smith e de Turgot. Na pátria mesmo um modelo bem recente se lhe oferecia, o
grande Pombal, que por um momento galvanizara o reino ao contato do seu gênio, e de
cuja vida, atividade, reformas e feitos se encontram na Coleção Linhares
recordações frequentes.

D. Rodrigo não só trabalhava como fazia os outros
trabalharem, obrigando todos os que o cercavam a esforçarem-se em prol da regeneração
pública, e para isto repelindo os ociosos e os corrompidos. Sem as qualidades
exteriores de sedução de Barca ou de Palmela, era menos superficial e muito
mais inteiriço do que o primeiro, muito menos cético e mais audaz do que o segundo.
A superficialidade em questão deve todavia entender-se de opiniões, não de
conhecimentos, pois que a variada instrução do conde da Barca era notória, ao passo que da
de D. Rodrigo houve quem dissesse com malícia que consistia em saber a primeira linha de todos os artigos da
Enciclopédia. O amável Antônio de Araújo nem prejuízos políticos possuía, sendo por
índole e por educação um liberal, quando ao contrário D. Rodrigo, se ostentava
intelectualmente um certo liberalismo — mesmo porque para se ser reformador tem-se que
ser inovador — praticamente se
revelava de tão autoritário um absolutista puro.

Queria sinceramente o bem do povo, mas contanto que lhe
fosse outorgado
pela coroa e que o progresso material não invadisse e desmanchasse o arcabouço
político, o qual se devia ciosamente conservar. Neste sentido era o conde de Linhares
homem que chegava a escrever ao príncipe regente87 considerar
perfeita loucura dos governadores do reino dizerem haver consultado sobre o
modo de taxação os tribunais, "para suprirem as Cortes como se entre nós
fosse necessário convocar Cortes para lançar qualquer imposto". E acrescentava com
sua habitual vivacidade, a mesma vivacidade que lhe não permitia medir os
obstáculos aos empreendimentos, por vezes gigantescos, a que se abalançava: "Esta
lembrança
dos governadores deve ser fortemente rebatida, e um tal princípio pode ter as mais sérias consequências para a
autoridade de V. A. R. e para amonarquia, e quem o lembrou é
mais traidor do que aqueles que à cara descoberta atacam a monarquia."

Todo ele era pois pelos moldes de governo pessoal
e autocrático, que não constituíam no entanto, é preciso bem frisar, as verdadeiras
tradições da
monarquia, na sua origem tão popular quanto a inglesa, segundo se não cansava de relembrar
de Londres o Correio Braziliense. A idéia fundamental de D. Rodrigo em
matéria administrativa parecia ser a de acelerar extraordinariamente o
movimento sem mudar o sistema do maquinismo, apenas aumentando-lhe as peças e carregando
demasiado a pressão. Na lida não ocorria ao precipitado engenheiro indagar se a velha e carcomida armação aguentaria a refrega.

Verdade é que o maquinismo podia muito bem ficar
na antiga, acontecendo não passarem os melhoramentos do traçado. Não faltava quem acusasse o conde de
Linhares de agitar-se continuadamente para nada produzir afinal. Hipólito José da
Costa por exemplo, que foi sempre pressuroso em proclamar a assiduidade ao trabalho, a
inteireza e a probidade do estadista, lembrava88 que tendo ele, quando
chamado de Turim para assumir o Ministério da Marinha, delineado como seu
programa o levantar os créditos de Portugal como grande potência marítima, devendo o Brasil fornecer madeiras
e cânhamo para as construções navais, deixara a pasta ao cabo de quatro anos
sem ter mandado fazer um só vaso no arsenal de Lisboa, nem lavrado um só regulamento tendente
a corrigir o governo do Brasil.

Deste ministério passara para o Erário "a ver se
ali realizava as abundâncias de dinheiro, que pedia sempre quando estava na Repartição da Marinha, e que quando
lho não davam atribuía isso a falta do ministro da Fazenda". Ajuntava
Hipólito, com o seu espírito de sal um tanto grosso, que na administração do
que ia ser no Brasil conde de Linhares se enchera o almirantado português de
tão numerosos empregados quanto o inglês e se expedira "uma infinidade de leis,
alvarás, decretos e avisos, que sempre precisavam de outros para sua explicação, havendo
tal cego em Lisboa que se enriquecera só a vender as leis que publicava D.
Rodrigo".

Num gabinete à moderna, D. Rodrigo levaria com sua febril
atividade os
companheiros a reboque, mas no tempo dos conselhos brasileiros de Dom João VI não estava ainda
descoberta a solidariedade ministerial. Cada um dos ministros governava por si
e o Rei governava a todos. Os colegas de Linhares não eram todavia figuras de papelão.
Anadia podia dizer-se uma utilidade, sobre ser um homem culto, e a D. Fernando
de Portugal, tendo sido de 1801 a 1806 vice-rei no Rio de Janeiro, onde só deixara saudades, e depois presidente em Lisboa do Conselho Ultramarino, não lhe faltava
familiaridade com os altos postos da administração, nem conhecimento prático da
colónia. Demais sempre passou a justo título por homem bom, avisado e prudente, porventura
timorato e pacatão, sem altos planos de governo, porém sério e a seu modo zeloso no
cumprimento dos seus deveres
oficiais.

Confirma-se esta impressão, derivada dos fatos
históricos, pela leitura da parte da sua correspondência que nos foi conservada.89
Numa carta,
por exemplo, dirigida ao príncipe regente em 31 de outubro de 1809, a propósito de nomeações
pendentes para Lisboa, encontram-se as seguintes frases que ajudam a pôr em
relevo o seu caráter maduro, sisudo, vacilante mas não destituído de argúcia:
"Convenho na reflexão que faz o Principal Souza, que se deve atender unicamente
ao merecimento, mas a dificuldade consiste em designar quais são os beneméritos
para os empregos de que se trata em circunstâncias tão árduas; e a experiência mostra,
que ainda a
respeito daqueles que têm talentos, e merecimentos, e outras boas qualidades discorrem os
homens às vezes com bastante variedade."

Ninguém seria capaz de dizer mal desse parfait
honnête homme,
como o apelidou Maler,90 pois que reunia, na
expressão do representante francês, todas as qualidades do coração, nutrindo pelo
seu soberano uma dedicação que só era igualada pelo seu desinteresse, e sendo ambos estes
predicados
em grau inexcedível. O que Maler não descobria em Aguiar era o conjunto de dotes de
espírito e de conhecimentos indispensáveis para a sua alta posição oficial.
"No tocante a isto, ele se acha inteiramente abaixo dos deveres do seu cargo.
Começa porque suas forças físicas atenuadas pela idade não lograriam defrontar com o
expediente corrente, e como na organização das repartições não se regularam a
divisão das seções
e a distribuição do trabalho e como, por outro lado, se não escolhem muito os oficiais de secretaria, os negócios
arrastam-se."

Luxemburgo recebeu de Aguiar a impressão de uma
pessoa de timidez tal que muitas vezes degenerava em temor pueril, pretendendo
referir tudo
ao despacho e de nada querendo assumir a responsabilidade, sendo ao mesmo tempo
incapaz de sugerir ao rei qualquer determinação que a sua própria natureza não tinha
aptidão para formar. Nunca compreendeu, escrevia o embaixador de Luiz XVIII, que numa nota aprovada
pelo monarca houvesse outra necessidade além da de subscrever o seu nome como ministro.91
Qualquer discussão com semelhante conselheiro tornava-se de todo ponto ociosa, rematava
o duque, em grande parte despeitado por não poder obter as vantagens comerciais que a França
invejava à Inglaterra no mercado brasileiro e
sobretudo não ver jeitos de conseguir a restituição da Guiana Francesa, antes de
concluídos em Paris os arranjos especiais e assinadas as convenções para as
quais o marquês de Marialva e o cavalheiro Brito tinham recebido plenos poderes.

"O conde de Aguiar é o paralisador de tudo, e
para tudo tem obstáculos e dúvidas", escrevia outro despeitado, o funcionário
Marrocos, numa das cartas92 em que manifesta as suas pretensões a
maior ordenado, ração e condecoração. A nenhum homem público é contudo lícito
aspirar a
necrológio mais honroso do que o traçado pelo encarregado de negócios Maler93
no dia imediato ao do falecimento do respeitável fidalgo, por quem Dom João VI professava tão
particular estima e em quem depositava confiança tão ilimitada que, contra a própria opinião
do interessado — o qual compreendia que por fim lhe faltava energia física para se ocupar de um ministério,
quanto mais de quatro, e da presidência de várias juntas do comércio,
agricultura, navegação, erário etc. — fora cumulando sobre ele emprego e mais
emprego, cada qual mais oneroso. Seria decerto porque lhe reconhecia a perfeita
integridade.94 "Depois de ter sido governador-geral em São Salvador e vice-rei no Rio durante treze anos e primeiro-ministro nove anos, morre sem legar uma
choupana à viúva, sem deixar sequer uma mobília decente. Sei positivamente que não se achou
em casa dinheiro suficiente para o custeio do funeral. Tanta virtude, tamanho desprendimento
seria formosíssimo em qualquer país, mas no Brasil, Monsenhor, é admirável, é
incrível!" Maler fecha com estas palavras o seu singular elogio fúnebre
daquele a quem distingue com os epítetos de "patriarca tão raro quanto venerável, e
coração o mais nobre e o mais leal".

O alto pessoal político que agora rodeava o príncipe
regente era portanto bem superior, no conjunto e individualmente, aos personagens que por último em Portugal o
cercavam ao despacho: um Luiz de Vasconcelos, que um insulto apoplético tornara meio
imbecil e que o autor anónimo da Historie de Jean VI descreve ganancioso, ignorante,
guloso, apresentando
por principal recomendação ao cargo de secretário da Fazenda o entesourar numerário
nos cofres reais, resultado que seria em extremo louvável se não fosse alcançado
com retardar os vencimentos dos empregados públicos e os pagamentos aos credores do
estado. Era voz corrente que para si próprio não deixava de mostrar-se menos
cúpido e avarento o antigo vice-rei do Brasil, a quem o Rio de Janeiro deveu
incontestáveis melhoramentos e que Silva Alvarenga cantou como:

Egrégia
flor da lusitana gente,
Nobre inveja da estranha,
De antigos reis preclaro descendente,
Luiz,
a quem se humilha quanto banha
Do grão
tridente o largo senhorio,
Desde o amazônio
até o argênteo rio.

Pelo menos escrevia desta egrégia flor com
menos entusiasmo D. Rodrigo,95 referindo-se à nova junta do Erário, que lhe assegurara
pessoa sensata
que nenhum dos seus membros sabia contar, eram todos indivíduos a quem ninguém
confiaria um só real, exceto a Luiz de Vasconcelos pelo muito dinheiro que
trouxe do Rio de Janeiro.
Diz porém Jacome Ratton,% o qual era homem de
negócios e conhecia admiravelmente a sociedade portuguesa do seu tempo, que
a riqueza acumulada, segundo era fama geral no Brasil pela economia de Luiz de
Vasconcelos, não apareceu, nem
antes nem depois da sua morte.

De Vilaverde, o outro ministro do príncipe em
Lisboa além de António de Araújo, escrevia com graça na mesma carta o mordaz D. Rodrigo
"que nunca leu na sua Vida um livro inteiro, que foi a fábula de toda a Europa, onde era
conhecido como jogador, e com o ridículo epíteto — Le gros D. Diégue — e que nada entende de
negócios políticos". Parece efetivamente que le gros D. Diégue, antigo
embaixador em Madri e em Roma, não passava muito de um jogador de profissão com
alguma habilidade
e finura, talvez fosse mais acertado dizer com bastante manha e perfídia, mas com pouca
instrução e menores escrúpulos, ambicioso e venal. A duquesa d’Abrantes dele
nos deixou uma esplêndida caricatura com o seu ventre desconforme, a sua respiração
ofegante e ruidosa, o seu apetite
voraz e o seu consumo insaciável de água gelada.

Os negócios entravam a ser confiados a
inteligências mais cultas e mãos mais destras e enérgicas. O gabinete do Rio de Janeiro
continha duas pessoas sumamente dignas e da maior compostura, afora um ministro de talento muito acima do
ordinário e de toda a seriedade. A duquesa de Abrantes, que não pecava por nímia
indulgência, assim se externa sobre Aguiar e Linhares:97
"Havia então (1807) em Lisboa dois homens muito capazes de executar cousas
notáveis no interesse da nação. Um era D. Fernando de Portugal, o outro D. Rodrigo
de Souza. Este último sobretudo possuía mais ainda do que o talento, aquilo que num dia
de perigo pode unicamente salvar o estado. Era verdadeiramente patriota." Madame
Junot não se
mostrou menos gentil para com o visconde da Anadia, a quem qualifica de um desses homens de que a gente se sente feliz em fazer o
conhecimento. No Rio era um solitário, quase um misantropo, sofrendo com as
desgraças da pátria ausente, pouco simpático à pátria de refúgio, sem
esperanças de assistir a um futuro melhor e procurando consolar-se das
amarguras do presente, que prognosticara, com os encantos das artes, das quais
cultivava com esmero uma, a música.98

Aguiar buscava desenfado na literatura:
um dos primeiros livros impressos no Rio de Janeiro, na tipografia trazida pela
mudança da corte, foi a sua tradução do inglês do Ensaio sobre a crítica, de
Pope. Já não teria portanto D. Rodrigo pretexto para escrever como o fizera
nove anos antes" que "tremia pela conservação da sagrada pessoa do
príncipe e da monarquia, quando via que o príncipe dignava-se ouvir sobre
matéria tão difícil e que exige tantas luzes, qual o estabelecimento de um
sistema federativo para a segurança da sua real coroa três homens como o duque [Lafões],
o conde de Vilaverde, e o conde regedor [Pombeiro], que são hóspedes
em todos os conhecimentos de história, memórias e transações que desde a paz de
West falia até aos nossos dias formam o Direito Público da Europa."

Da firmeza de D. Rodrigo
pode-se em particular tão pouco duvidar como da sua abundância de noções. Por
ocasião das imposições de Napoleão relativas ao bloqueio continental, quando
António de Araújo só procurava o modo de comprazer ao Imperador dando-se
disfarçadamente tempo aos negociantes ingleses para liquidarem suas casas e
transportarem seus bens, fora ele o único conselheiro d’Estado a encarar
desassombradamente a hipótese de guerra com a França, para isto aprontando-se
70.000 homens e lançando-se mão de 40 milhões de cruzados. Nos conselhos de 18
de agosto, em Mafra, e de 29 de setembro de 1807, na Ajuda, desenvolveu D.
Rodrigo de Souza Coutinho com sincera eloquência o seu parecer.100
Se nele, em vista da falta de todo preparo militar do reino, opinava pela
remoção imediata da família real para o Brasil, pretendia que se adotasse muito mais nobremente o proceder
inverso do que foi seguido. Entendia D. Rodrigo que, antes de emigrar sob a
pressão das circuns-âncias, o príncipe regente declarasse a guerra à França, ao
mesmo tempo que repudiava a forçada anuência dada às cláusulas de detenção e
sequúestro; não que fosse o regente para a América dar o sinal do rompimento
das hostilidades, na perfeita segurança da sua pessoa, o que achava justo, não
achando porém leal nem decoroso que, embora no fito de tirar pretexto
à conquista, ordenasse antes de embarcar aos
magistrados das vilas extremenhas que fornecessem quartéis aos
soldados franceses,
e ao marquês d’Alorna, governador do Alentejo, que tratasse as tropas aliadas como amigas.

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