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TERCEIRA PARTE

O ROMANCE DO OURO

 

 

OS PIONEIROS

—  Garcia Paes andou topando ouro no sertão dos
Cataguazes!

— 
Garcia Paes?

—  Sim, senhor! Andou topando ouro no sertão dos
Cataguazes..,

Eis
a fala que principiou a andar na boca do povo. E principiou a andar com razão.
Garcia Paes tornara àqueles matos onde andara com o pai. E lá, metendo-se a
provar águas e areias, havia dado com uns granetes de ouro em certo ribeirão
que bateara. Eram uns granetes sem importância. Simples ouro de lavagem. Mas
eram (acentuemo-lo) — eram o primeiro ouro que então se descobria no atual
Estado de Minas Gerais. "Garcia Paes (há de em breve afirmar D. Pedro II em carta régia), Garcia Paes foi o primeiro que achou ouro de
lavagem nos Ribeirões q. correm para a serra de Sabarabussú".

Contudo,
entre os buscadores de riqueza, o achado do filho de Fernão Dias não teve eco
maior. Ouro de lavagem? Os homens do Tietê não queriam mais saber desses grãozinhos à toa
O que eles agora queriam eram minas. Ah, as minas. . .

Foi quando um certo padre Faria, paulista de S. Sebastião, vigário de
Pindamonhagaba, ouviu a notícia dos tais granetes que Garcia Paes andara
descobrindo. E uma ideia súbita picou o coração do padre: quem sabe se não
estariam ali, nos matos dos Cataguazes, as minas de ouro? Quem sabe? E o
sacerdote, num impulso temerário, assentou de ir, no rastro de Garcia Paes, a
procurar as jazidas douradas. Um dia, aprestando aí uns cargueiros de
mantimentos, padre Faria abalou de sua rústica paróquia rumo aos matagais de
além-ser-ra. E eis que lá, ao pesquisar aquelas paragens inóspitas, o vigário
bandeirante, por mero acaso, dá de encontro comi Borba Gato. Encontro precioso
e bem-fa-dado! Pois ambos, o padre e o foragido, puseram-se a sertanear
aparceirados por aquelas lombadas. E têm a boa fortuna (conta um papel velho)
de achar três manchas de ouro, de boa pinta, em três águas solitárias daqueles
sertões. "… achou o padre vigário João de Faria, e seu cunhado António
Gonçalves Vianna, e Pedro Avos, e mais o capitam Manuel de Borba, em três
ribeiros, pinta boa e geral de ouro de lavage".. . (1).

(I) — "Rotcyro das minas de ouro q.
descobrio o Revmo. Vigário João de Faria e seos Parentes, e do
mais que teem cm sy aquelles campos".

Ouro de lavagem!
Sempre ouro de lavagem! Mas não era ouro dessa casta o que agora tentava os
paulistas. Eles queriam minas. Minas de ouro! Mas onde estavam elas? Onde?

Enquanto
Borba Gato, e Garcia Paes, e Padre Faria, ao encalço das cobiçadas minas, estão
assim a correr e a devassar aquelas terras quase virgens, eis que um grito de
alvoroço, um grito sacolejante — ouro! — reboa de súbito pelos quatro ângulos
do sertão. Esse grito, trouxe-o uma bandeira pequenina, quase obscura, que se
metera sem grandiosidade pela mataria dos Cataguazes: foi a bandeira de António
Rodrigues Arzão.

UNS GRANITOS COR DE AÇO

No áspero cenário do bandeirismo surge neste momento o nome de Taubaté.
Taubaté! Colmeia atrevida de rompedores-de-mato, aquela humilde ter-reola,
plantada toscamente à boca do sertão, foi o mais decidido foco irradiador da
conquista do ouro. Taubaté! Eis a velha e nobre célula-mater do atual Estado de
Minas Gerais. Nas veias da gente mediterrânea corre, há trezentos anos, o
sangue crioulo dos taubate-anos buscadores de riquezas. Esses
taubateanos, de


cujos apelidos provêm os apelidos das famílias mais vetustas das montanhas mineiras, esses sertanejos encosco-rados,
de botas altas e gibão de couro, foram os que, com as suas entradas à busca de
minas, ajuntaram, às páginas fúlgidas da História do Brasil, uma das suas páginas maiores e mais galhardas.

Daquele Taubaté, pois, do rude povoado aventureiro, partiu um dia a
bandeira de Arzão. Partiu com cinquenta homens apenas. Nada de espaventos, nem
de missas, nem de repiques de sinos, nem de estrondos de ronqueiras. Arzão quis
partir sem ruído. E a bandeira dele, discreta e silenciosa, penetrou com
desassombro a terra
dos Cataguazes. Penetrou-a à procura da única riqueza certa que, por essa
época, havia dentro das selvas: índios. Arzão — curioso detalhe! — não partiu à
cata de ouro. Os granetes de lavagem, que Garcia Paes e padre Faria haviam
encontrado, não o seduziram. Arzão, homem prático, queria riqueza menos
visionária. E por isso saiu de Taubaté com o fito chão de prear bugres.
"… António Rodrigues Arzão, natural e morador da Villa de Taubaté fez
hua entrada no certão da Casca, á frente de cincoenta homens, com o só projecto
de conquistar Índios". . . (1).

Principia,
rumo à aventura, aquele suado peregrinar de todas as bandeiras. Aquele mesmo
romper matos e vadear águas. Aqueles mesmos trabalhos inenarráveis, de pasmar a
gente, que os paulistas realizavam com tão assombrosa naturalidade.

Certo
dia, andando por uns espigões de serra, dentro de cenário majestosamente
fragoso, a bandeira do taubateano estacou. Um pouco além, mais alterosa ainda,
a tapar o horizonte, outra e soberba corda de serranias abauladas. Em frente a
essas serranias, face a face a uma lomba altaneira, muito azul, que curvejava no
céu claro, Arzão arranchou as barracas do acampamento. Nessa lomba, bem no
cimo, havia uma
grande pedra atrevida. E junto a essa pedra atrevida havia outra, mais
minguada, que se lhe aconchegava amorosamente à ilharga. A esse bloco, ou
melhor, e simplesmente, a essa pedra, que ao depois se tornou tão famosa, é que
os selvagens da região chamavam pitorescamente — Itacolomi. Isto é: a
Mãe–com-o-Filho. Entre as duas serras, no longo vale que se lhes estendia de
permeio, serpenteava um ribeirão de águas sujas, fundo, a rolar sobre um leito
de seixos negros. Chamavam-no: Tripuí. Pois foi naquele sítio, em
frente à "Mãe-com-o-Filho", nas barrancas do Tripuí, que ocorreu um
fato pequenino, banal, que teve consequências importantíssimas.

(1) — Notícia
compilada pelo Coronel  Bento Fernandes Furtado de Mendonça,   resumida   por 
M.  J.   P.   Silva   Pontes.

*
* *

Ia
na entrada, entre aqueles cinquenta homens, um personagem insignificante, peão
como os demais peões, inteiramente obscuro e sem relevo.( Era mu-
lato. Chamava-se Duarte Lopes. Ora, saindo casualmente a buscar água no
ribeirão,.o mulato deu com certos granitos escuros, cor de aço, que achou
bastante singulares e destoantes. Guardou-os na sacola de couro. Guardou-os por
simples curiosidade. Guardou-os como guardara, durante a jornada, todas as
pedras de cor que ia catando pela beirada dos ribeirões. Por causa daqueles
pobres estilhaços — eis o capricho do destino! —
tem hoje esse mulato lugar marcado na página inicial da História de Minas
Gerais (1).

Como? Narre-o com o sabor da sua linguagem, e, mais do que isso, com
seu depoimento insubstituível e valiosíssimo, o jesuíta Antonil, contemporâneo
de tais descobrimentos: "… o primeiro descobridor, dizem, foi um mulato,
que já havia estado nas minas de Par-naguá e Curityba. Este, indo ao sertão com
alguns paulistas a buscar Índios, e chegando ao serro Tripuhy, desceu abaixo a
tomar agua no ribeiro que agora chamam de Ouro Preto; e, metendo a gamella na
ribanceira para tirar a agua, roçando-a pela margem do rio, viu que nella
ficaram uns granitos de cor de aço". . . Que diabo de granitos seriam
aqueles? Eram, com aquela sua cor de aço, uns granitos na verdade
extraordinários. O mulato não atinou com o que eles fossem ao certo. E
guardou-os "sem saber o que eram; e nem os companheiros souberam conhecer
e estimar o que elle tinha achado tão facilmente; só cuidaram que ali havia um
metal não bem formado, e, por isso, não conhecido" (2).

 

(1)     
— "Os primeiros
sertanistas de S. Paulo informara que um Duarte Lopes, razendo
experiência num ribeirSo, ele. etc.,…" — diz o relatório fidedigno de
Rabelo Perdigão ao governador Artur de Sá (Rev. Inst.).

(2) 
— Antonil, "Opulência
e Grandeza do Brazil por suas drogas e fruetos".

O achado, bem se vê, fora sem importância. Apenas um metal não bem
formado.    Uns granitos atoas, cor de aço, nada mais.
Que é que valia aquilo? Coisa nenhuma! E Arzão, que viera à cata de bugre, e
não de ouro, levanta o acampamento daquela paragem. Deixa a
"Mãe-com-o-Filho". E continua, tenaz e porfiado, com o fito no índio,
a sua rota agreste. O mulato, com estilhaços escuros na sacola, parte com o
ser-tanista pelo sertão adentro.

A
entrada bota-se a perambular errática por aqueles silvedos bravos. E foi,
durante dois anos, dois longos anos penosamente vividos, um padecer desesperado
e sem tréguas: febres ruins, ares pestíferos, flechaços de bugres, picadas de
cobra, mortandades de gente, feras, todo o horrorizante e espantoso rol das misérias
e dos sofrimentos do sertão. Enfim, exausta, já quase dizimada, a bandeira
envereda-se rumo à serra dos Arrepiados. É nessa altura que topa o taubateano
com a rancharia duns índios chamados "puri". Entraram todos,
mamelucos e bugres, em cordiais avenças de amizade. Os índios, que eram de boa
paz, conduzem Arzão a um rio de águas claras, não grosso, que corria lento por
entre seixos. É o rio Casca. Os selvagens apontam ao bandeirante as areias
claras:

— Ouro.

Arzão manda provar o ribeiro. As gamelas de pau mergulham céleres na
correnteza. E eis que, às primeiras bateadas, recolhe Arzão, com surpresa,
algumas oitavas de granetes amarelos.

Ouro!

Sim, ouro.
Feliz e alvoroçante era o achado, não havia dúvida! Mas grande e arrasadora era
também a ruína da entrada. A bandeira de Arzão esfrangalha-ra-se toda. A
impiedosa jornada, com as suas pestes e fomes, com as suas fadigas e trabalhos,
havia devorado quase por completo aqueles escassos cinquenta homens que
partiram de Taubaté. Já não restava mais deles senão meia dúzia de caboclos. E
que caboclos? Todos roídos de doenças, quebrados, escavei-rados, mais fantasmas
do que homens. Embora! O sertanejo, soerguendo o ânimo, atirou-se com eles ao
trabalho da cata.

— Toca a provar o ribeiro, moçada! Toca a ba-
tear esse ouro. . .

Arzão é agora uma alegria só! Todo cintila de esperanças. . . Mas ai! —
o contentamento do descobridor é fugaz. É fugacíssimo. Ali, no Casca, ao dar
com tão inesperadas pepitas de ouro, eis que, como remate às desgraças e às ruínas
da sua jornada, o tauba-teano amanheceu um dia batendo o queixo no rancho. Que
é? Foi uma voz só:

— Tremedeira!

Sim,
era a tremedeira. Era a terçã. Que fazer agora? Arzão carecia, para se livrar
dela, deixar imediatamente o sertão. Voltar. Mas voltar para onde? Para
Taubaté? Impossível! A cidade nativa do bandeirante ficava longe
demais. Arzão, a arder de maleita, não podia aventurar-se aos riscos de tão
dilatado jornadeio. Como resolver? Os puris aconselharam ao taubateano a
demandar as costas do Espírito Santo. O Espírito Santo distava pouco daquelas
paragens. Os índios prontificaram-se a conduzi-lo numa rede até lá. Arzão ouviu
os aliados e aceitou o conselho. E lá partiu, aos ombros dos bugres, batendo o
queixo, a caminho da cidade marítima.

* * *

A bandeira de Arzão, que era apenas mísero frangalho, desfez-se então.
Os companheiros, os raros que restavam, dispersaram-se ali com a partida do
cabo. Cada qual tomou o seu rumo. Uns acompanharam Arzão ao Espírito Santo.
Outros tornaram a S. Paulo. Duarte Lopes, esse meteu-se pelo mato à busca de
Taubaté. Chegou são e salvo. E do que, em Tau-baté, se passou com Duarte Lopes,
e com os estilhaços que colhera naquele ribeirão de águas sujas que corria
próximo à pedra, conta-o, com a sua palavra de peso, o fidedigno Antonil:

"Chegando o mulato a Taubaté, não deixaram de lhe perguntar — que
metal era aquelle? E ele, sem mais exame, vendeu alguns granitos, por meia
pataca á oitava, a Miguel de Souza". E o jesuíta acentua este pormenor
frisante: "vendeu sem saber o que vendia e sem o comprador saber
o que comprava". Feito o negócio, o dono dos estilhaços mandou
examiná-los. Foi então — supremo
acontecimento! — "que, fazendo-se o exame, se achou ser aquilo OURO
FINÍSSIMO" (1).

*
* *

Ouro
finíssimo! Sim. os estilhaços escuros, feios, cor de aço, eram ouro finíssimo.
E sendo ouro finíssimo (supunha-o toda a gente) eram certamente ouro criado em mina. Nas redondezas de tais estilhaços é que deviam estar, portanto, os veeiros sonhados.
Carecia pois, sem mais delonga, saber qual fora a rota de Arzão. E ir, através
dela, ao encalço da "Mãe-com-o–Filho". Mas onde ficava a pedra?
Onde? Só o roteiro de Arzão poderia esclarecê-lo. E como obter esse roteiro?

Foi
quando, inesperadamente, chegou a Taubaté o próprio Rodrigues Arzão. Chegou
varado de maleitas. E no dia seguinte à chegada, Bartolomeu Bue-no de Siqueira,
um dos principais da terra, começou a apregoar, com espanto de toda a gente,
que possuía, desde a véspera, esta riqueza deslumbradora: o roteiro de Arzãol
Tinha agora nas mãos, dizia, (e os tauba-teanos arregalavam um olho cúpido) o
segredo do ouro dos Cataguazes. . .

(1) Vide nota I in tine.

 

O ROTEIRO DE ARZÃO

Arzão,
escudeirado pelos índios puris, largou-se pelo mato a caminho do Espírito
Santo. Lá foi, aos balanços da rede, alquebrado e maleitoso, levando no cintão
de onça as oitavas de ouro que bateara no Casca. João Velasco Molina, que era o
capitão-mor do Espírito Santo, recebeu-o com grandes agasalhos. Hos-pedou-o
como a hóspede de estimação. O taubateano, ainda a bater os queixos com febre,
ofereceu ao governador, como fineza a quem o acolhia com tamanhas deferências,
as oitavas que encontrara venturosamente entre os puris. E tratou o bandeirante
de refazer às pressas a saúde. Cuidou maí-e-mal da terçã. Levan-tou-se. E,
levantando meteu-se logo num barco e rumou ansiadamente para S. Paulo. Ao
partir, contudo, Arzão trazia no dedo uma graciosa aliança de ouro. É que o
capitão Velasco Molina, homem mimoseador, mandara fazer, com as oitavas do rio
Casca, duas pequenas memórias: uma, guardara-a como lembrança para si; outra,
ofertara-a galantemente ao sertanista. E foi assim que, ao desembarcar em
Santos, pôde Arzão estadear ante os olhos dos parentes, que se maravilharam, àquela frágil
amostra da sua descoberta. Frágil, mas importantíssima: era o primeiro ouro
trabalhado das futuras Minas Gerais.

A doença, no entanto, não mais.o deixou. Arzão, depois daqueles tão
provados anos de jornada, tornava à sua capitania como um espectro. Vinha
desfeito. Vinha todo ossos. E chegava ele a S. Paulo — coincidência curiosa! —
ao mesmo tempo em que o mulato da bandeira, Duarte Lopes, andava negociando em
Taubaté os estilhaços que catara no Tripuí. As maleitas, no entanto, que
estavam aninhadas como serpes no sangue do bandeirante, redobraram de fúria às
margens do Tietê. E não houve como atalhá-las. O corpo gasto não tinha seiva
para resistir. Arzão sentiu claro que ia morrer. Fez então aprestar um comboio,
e, tirando forças da própria fraqueza, o desempenado cabo enveredou-se a
caminho da sua terra nativa. Em Taubaté, mal chegou, mandou chamar o seu
concunha-do Bartolomeu Bueno de Siqueira. Trancou-se com ele no quarto. E,
no quarto, a sós os dois:

— 
Sô Bartolomeu, eu vou
morrer!

—  Que despropósito é esse, sô Arzãol Morrer por
quê? Tremedeira é coisica. ..

—  Esta, que eu trago no corpo, não é coisica, não, sô
Bartolomeu. É das brabas. E vai dar cabo desta minha caveira. Morrer, sô
Bartolomeu, é desgraça que não me
assusta. Nem Vosmecê precisa dar ânimo a quem não tem medo do fim. Eu só quero,
antes de me ir, deixar a alguém o segredo do ouro. Vosmecê é parente; Vosmecê é
amigo sô Bartolomeu. Eu vou deixar com Vosmecê o segredo.

Abriu
a bolsa de couro, tirou dela um papel amarfanhado, passou-o às mãos do
concunhado:

— Aqui está o roteiro da minha jornada, sô Bartolomeu. Vosmecê guarde
este papel com cuidado. Eu falo aí da "Mãe-com-o-Filho". É uma
pedraça meio escura, junto de outra mais minguada, que fica na corcova duma
lomba alta. Meta bem sentido nessa pedra, sô Bartolomeu. Foi daí que Duarte
Lopes trouxe os granetes que deram metal finíssimo. Bote Vosmecê, sem susto,
uma bandeira de ouro na trilha que eu marquei. Vosmecê tem a riqueza na mão.
. .

Não
continuou. Os dentes principiaram a bater-Ihe com fúria. Calefrios de morte. O
catre tremia com o tremor do doente. Suores gelados, abundantíssimos,
escorriam-lhe em bátegas pelo corpo. Não houve como resistir: Arzão fechou
os olhos e morreu.

Vetaram os fados, nos seus desígnios, que o tau-bateano colhesse os
frutos da sua jornada. Outros, não o amigo dos puris, terão a boa-dita de
coíhê-lhos. Colhê-los não há dúvida, mas após estorvos ainda tremendos e
canseiras rudíssimas.

OS TRÊS SÓCIOS

Bartolomeu
Bueno de Siqueira pertencia à antiga e poderosa família dos Buenos. Amador
Bueno, um dos seus ancestrais, fora aquele que os paulistas aclamaram rei de S.
Paulo. Sangue velho de sertanis-tas, era Bartolomeu Bueno, por seu turno, um
serta-nista de raça. Naquele momento, contudo, havia ele, através dos
esbanjamentos e tonteiras da sua juventude, decaído da opulência e
grandiosidade dos seus avós. "Era hum homem forte, intrépido, activo, que
tinha perdido em jogos de parar toda a sua fazenda". . . conta o memorial
do velho Bento Fernandes.

Mas
eis que a fortuna, naquele dia, sem que ele menos o esperasse, cai-lhe de
improviso em casa: Ar-zão, ao confiar-lhe o segredo do ouro, confiou-lhe a
varinha mágica para recuperar a fazenda perdida. Aquele roteiro, que lhe
tombara miraculosamente às mãos, era o caminho certo da riqueza.

Por esse tempo, em Taubaté, andava já por muita boca a notícia
alvoroçadora de que os estilhaços, que o mulato trouxera do Itacolomi, eram
ouro puro. Havia gente, sabedora do caso, que já ansiava por aprestar bandeira e
meter-se aos trotes pelo sertão em busca da "pedra". Por isso mesmo,
ao receber o roteiro das mãos ardentes do maleitoso, corre o Bueno à casa de
dois taubateanos poderosos: Carlos Pedroso e Miguel Garcia. Eram dois homens de
prol e de cabedais. Um, parente próximo. Outro, apenas amigo. E diz-lhes:

—   Vosmecês de certo já sabem que Arzão descobriu
ouro no sertão.. .

—   Sabemos, sô Bartolomeu! Os estilhaços que o
mulato vendeu aqui no Taubaté, deram ouro de primeira qualidade.

—   De primeiríssima qualidade, meus amigos! Mas não foram
só os estilhaços do mulato que deram ouro. Vejam vosmecês esta memória que
Arzão trouxe no dedo: é obra já feita com o ouro dos Cataguazes.

E passou à mão dos amigos o anelzinho do capi-tão-mor do Espírito
Santo. E Miguel Garcia:

— Que
há ouro nos Cataguazes, e ouro de primei
ra, é coisa que ninguém mais duvida, sô Bartolomeu!
Já Garcia Paes, filho de Fernão Dias, já o padre Faria,
vigário de Pindamonhangaba, andaram descobrindo
por lá manchas de boa pinta. Mas o sertão dos Cata
guazes é um mundo. E como pode lá um homem,
nesse mundo, achar a altura em que Arzão topou a
tal "pedra"?

 

—   Aí é que bate o ponto, eu bem sei! — retorquiu
Bartolomeu Bueno. E eu venho exatamente aqui, meus senhores, para dizer a
Vosmeces que eu tenho comigo o segredo do ouro. . .

—   Vosmecê tem o segredo, sô Bartolomeu?

—   Tenho! E tenho, meus amigos, porque Arzão, ao morrer,
deixou nas minhas mãos o roteiro da mina…

Miguel Garcia e Carlos Pedroso erguem-se de golpe. Ambos coruscam sobre
o Bueno olhares sôfregos.

—   O roteiro, sô Bartolomeu? Vosmecê tem na mão o
roteiro?

—   Sim, senhores! Eis aqui o papel que Arzão me confiou.
. .

Desdobra
aos olhos dos amigos o pergaminho precioso. E solene, a voz
tremula, diante dos olhos dos dois amigos que o ouvem com espanto,
Bartolomeu Bueno principia a ler o roteiro de Arzão:

"… de frente da villa do Taubaté, cuatro ou sinco dias de
viagem, se acha estar o ryó de Sapucahy; e descendo de dita villa para a de
Guaratinguetá, tomando a estrada real do certão, dez dias de jornada para o
norte". . . (1).

(1) — "Roteyro das minas de ouro q. descobrio o padre João de
Faria" (Rev. Inst. Hist. S. Paulo). O autêntico roteiro de Arzão, que se
perdeu, deve ser mais ou menos igual ao do padre.

 

Os dois homens cravaram olhos ávidos naquelas
linhas garatujadas. Sim, estava ali, naquele tosco pergaminho, a rota do
El-Dorado! Estava ali, certamente, naquelas letras, o caminho das minas do
sertão. Daquelas minas tão faladas, tão sonhadas, tão ardentemente
apetecidas…

— Senhores, continua o Bueno, eu venho aqui
propor a Vosmecês uma trama. E é isto: vamos bo
tar de parceria uma bandeira de ouro nos Cataguazes.
Podemos fazer negócio deste jeito: eu entro para ela
com o principal, que é o roteiro; Vosmecês, que são
abastados de bens, entrarão com gente e dinheiro. E
nem carecem de ter mais incómodos com a bandeira:
eu vou, em pessoa, atacar o sertão.

Miguel Garcia atalha de pronto:

—  Pois não há discussão, só Bartolomeu! Eu, de minha
parte, faço o negócio: ponho na entrada, à minha custa, cinquenta homens
aparelhados de tudo para a jornada. E também vou em pessoa, com Vosmecê, atacar
o sertãol Só não entro com dinheiro de contado …

—  Por dinheiro de contado é que não seja a dúvida,
interveio Carlos Pedroso. Eu supro a entrada do dinheiro de que houver
precisão. . .

—  Vosmecê supre a entrada de dinheiro, Carlos
Pedroso?

— Fiquem sossegados! Vosmecês entram com o roteiro e
os homens; eu entro com o cabedal necessário. Não me ofereço a ir aí pelos
matos com Vosmecês, porque nunca fui sertanista. Mas fico aqui, no Taubaté,
pronto para acudir a bandeira em tudo aquilo que Vosmecês mandarem pedir. . .

O negócio era bom para todos. Os três homens ajustaram-no ali em meia
dúzia de palavras. E principiaram, sem mais delongas, os preparativos da
jornada. Fez-se tudo às lufadas. A entrada aprestou-se num baque.

Certa
manhã, sem alarde nem estrondo saía de Taubaté a bandeira de Bartolomeu Bueno.
Não era numerosa, nem de lustre. Mas o paulista, levando o roteiro de Arzão
dentro da sacola de couro, ia na fiúza de dar em breve com a pedra. Mais
do que na fiúza: ia, com o coração aos pulos, certo de descobrir as minas de
ouro do sertão.

Por
isso, com a bandeira ao vento, alegremente, a leva de Bueno abalou rumo dos
Cataguazes.

AS BARGANHAS

Bartolomeu Bueno e Miguel Garcia andaram desabusados por aqueles ermos.
Venceram muito morro. Vadearam muita água. Mas onde estava o córrego dos
estilhaços? Onde a "Mãe-com-o-Filho"? Onde? Os sertanejos tinham nas
mãos um roteiro tosco e confuso. Não havia meio de, com ele, acharem o ribeirão
buscado. Nem a pedra. E deram então de vaguear erráticos por aquele labirinto rústico.
Com aquele vaguear, começaram a escassear
nas cargas os mantimentos que trouxeram. Tornou-se necessário, antes que
faltasse de todo o sustento, abrir por aqueles chãos algumas roças. O bando dos
taubateanos, à vista disso, partiu-se em dois grupos. Um, o de Miguel Garcia,
tomou a seu cargo as lavouras; e arranchou-se no Itaverava. Outro, o de
Bartolomeu Bueno, tomou a seu cargo a procura do ouro: e continuou o seu
caminho em direitura ao Rio das Velhas,

Miguel
Garcia, logo que teve plantados o milha-ral e o feijoal, não se quedou
marasmado no seu arran-chamento. Resolveu sondar as cercanias do país. E a
batear a areia de todas as águas da redondeza. Certa vez, sertaneando por
umas socavas, encontrou ele um ribeirão que rolava entre barrancas pedrentas.
Quis o bandeirante prover-se aí de pesca que fartasse a bandeira. Meteram-se os
peões a pescar. Mas o trabalho resultou vão: não se fisgou um único peixe. No
entanto. . . Fale aqui o historiador: "Nenhuma aguada já foi mais pobre em
pescado; e assim teriam perdido o seu tempo, se, em compensação, o rio não
fosse alli farto em signaes de ouro" (1). A bandeira principiou logo a
pesquisar aquela aguada. E também os riachos que nela desaguavam. E eis que
certa manhã — "os aventureiros, na barra dum córrego, á flor do cascalho
que convidava a experiência, aguçando as

cavadeiras de
páo e lavando em pratos de estanho as areias, colheram faíscas as mais bellas
do precioso metal" . . . Vendo-as, de todas as bocas, com o mesmo
entusiasmo, rompeu logo o mesmo grito festivo.

— Ouro!

Bateram os caboclos as areias que puderam. Mas a riqueza do veio não
correspondeu à alegria da bandeira. A colheita foi pequenina: doze oitavas
apenas. Os sertanistas, desapontados, tornaram com as doze oitavas à rancharia
do Itaverava.

(1) — Diogo  Vasconcelos,   "História   Antiga  
de   Minas"

Ao chegarem ao acampamento, no entanto, os caçadores de ouro têm esta
vivíssima surpresa: encontram, nas suas roças,
numerosa bandeira de paulistas. Quem eram os chegadiços? Não custou muito o
reconhece-rem-se. Eram taubateanos. Gente de Salvador Furtado de Mendonça. Duro
e rijo sertanista aquele Coronel Salvador Furtado de Mendonça! Era — quem não o
sabia? — um dos mais guapos e dos mais poderosos rompedores-de-mato do seu
tempo.

Salvador de Mendonça, seguido por outro companheiro de fama, Garcia
Velho, irmão de Miguel Garcia, também armara uma leva para tentar a descoberta
da pedra. Da tão falada "Mãe-com-o-Filho". Ah, os granetes cor de
aço, que o mulato trouxera na sacola de couro, revolucionaram o burgo de
Taubaté! Os taubateanos, com a cabeça incendida, partiam agora às chusmas em
busca das minas de ouro. E foi por isso, que naquele dia, naquela paragem, os
dois bandos se encontraram por mero acaso.

— 
Deus vos salve e guarde,
Coronel Salvador!

— 
E a Vosmecê, Miguel
Garcia!

Apertaram-se
as mãos com quente ruidosidade. E as duas entradas arrancham-se no mesmo pouso.
Ar-rancham-se, amistosas e cordiais, como paulistas e amigos que eram. Mas eis
que Miguel Garcia, ao acomodar os recém-chegados, põe reparo na espingardaria
nova do Coronel Salvador. Que espingardaria no jeito! Eram armas do reino,
chegadas de fresco, com belos acabamentos de luxo.
Aquilo atiçava inveja no coração dos caboclos. Miguel Garcia, mais do que
todos, ficou-se a namorar a clavina tauxeada que o Coronel trazia. Salvador de
Mendonça percebe com agrado o namoro do sertanista. E moteja:

—   Vosmecê tá embeiçado por minha clavina, sô Miguel
Garcia!

—   To, Coronel! É arma e tanto. . . Arma do meu gosto!
Vosmecê quer breganhar ela comigo?

O Coronel olha o caboclo nos olhos. Pensa um pouco. E
depois de pensar:

—   Breganho! Vosmecê me dá o ouro que já baleou e que
traz aí nas suas cargas; e eu dou a Vosmecê, em troca dele, a minha clavina do
reino. . .

—   Sô Coronel, o ouro que vem aí nas cargas é pouco.
Vosmecê se arrepende. . .

—   Não se atarante com isso, sô Miguel. Vosmecê me dá o
ouro e eu dou a Vosmecê a clavina. Tá feito?

Salvador
de Mendonça e Miguel Garcia encaram-se fito um no outro. Salvador de
Mendonça insiste:

— Tá feito?

Miguel Garcia estende a mão
peluda:

— Pois tá feito, Coronel!

E
os dois homens sacodem as mãos com força. Estava fechado o negócio. Deu-se
logo uma busca nas cargas da bandeira.
Acharam-se apenas as doze oitavas catadas no ribeirão. Era pouco. Mas não
importa! Negócio é negócio: os dois cabos fizeram ali a barganha. Lá diz
Cláudio Manuel da Costa, o poeta e inconfidente, que foi o pitoresco cronista
do episódio: "Quiz Miguel Garcia, um dos companheiros de Bueno, melhorar
as armas; e propoz ao Coronel Salvador a troca duma clavina, dando-lhe por
avanço todo o ouro que se achasse na comitiva; aceitou o Coronel a oferta, e,
dando-se a busca ao ouro, se não achou entre todos mais de 12 oitavas" (1).

(1) — Cláudio
Manuel da Costa.    "Fundamentos Históricos do poema Villa Rica".

* * *

Mas
a barganha não parou aí. Garcia Velho, o companheiro de Salvador Mendonça,
cobiçou por seu turno aquelas oitavas. Não porque fossem elas riqueza que
valia, mas só para ter a vaidade de, em tornando ao povoado, exibi-las aos
amigos como ouro achado por ele no sertão.


Sô Coronel, Vosmecê me disse que andava desejoso de possuir aquelas duas bugras
novas que eu trago aí na entrada. . .

—  Andava e ando, Garcia Velho. Vosmecê já se arresolveu
a dispor delas?

—  Arresolvi. Eu breganho elas, Vosmecê querendo, pelas
doze oitavas de Miguel Garcia. . .

Salvador
de Mendonça pegou o negócio no ar. Duas índias novas por doze oitavas? Não teve
o velho o que refletir:

— Está
tramada a breganha, Garcia Velho! Tra
ga as bugras e leve o ouro. ..

E o
negócio foi liquidado com aquela meia dúzia de palavras. "… Garcia Velho
também ambicionou a posse do primeiro ouro extrahido; e propondo a venda de
duas bellas Índias que trazia, pelo preço das doze oitavas, também conseguiu do
Coronel o seu intento". É assim que nos dá notícia da nova troca,
completando o relato de Cláudio Manuel da Costa, o próprio filho do Coronel
Salvador, Bento Fernandes Furtado de Mendonça, na curiosa e preciosa memória
que deixou. E acrescenta: as duas índias da barganha, batizadas mais tarde,
receberam os nomes de Aurora e Célia.

AS DOZE OITAVAS

Salvador
Furtado de Mendonça está ainda acampado no pouso de Miguel Garcia, quando
surgem, inesperadamente, os homens de Bartolomeu Bueno. Vêm eles de retorno do
Rio das Velhas. Que alegria a alegria dos dois sóciosl Ambos, ao se reverem,
depois de tantos meses, ali na ranchada do Itaverava, transbor-dam-se em
exclamações de festa e gosto.

— 
Viva, sô Bartolomeu!

— 
Viva, Miguel Garcia!

Efusivos e ruidosos, estreitam-se nos braços como dois irmãos. E
põem-se logo a conversar. Contam-se reciprocamente o sucedido nas suas
jornadas. Bartolomeu vem sucumbido e murcho. Correra debalde aquele duro sertão
das Velhas: não colhera, na rota, a mais mínima folheta de ouro!

— 
E Vosmecê, Miguel Garcia?

—  Pois eu, sô Bartolomeu, não posso dizer que
fosse tão mal-aventurado como Vosmecê.

— Como assim?

—   É que andei aí pela redondeza, não muito apartado
desta ranchada, batendo com pratos de estanho um ribeiro de areia fina. E dei
com doze oitavas de ouro. ..

—   Vosmecê deu com doze oitavas de ouro?

—   Dei! Eu bem sei que isso não é ouro de mina. É coisica
sem importância. Em todo o caso, sô Bartolomeu, estou me aparelhando para
tornar ao ribeiro e batear de novo a areia. Ando pensando que o sítio por lá é
de boa pinta…

— E adonde está o ouro, Miguel Garcia?

— Breganhei
ele, que era assim coisa de somenos,
por esta clavina nova do Coronel Salvador. . .

E
mostra, com vaidade, a clavina tauxeada que viera do Reino. O Bueno, ao ouvir
aquilo, crava no amigo dois olhos relampagueantes. Dois olhos que fuzilam ásperos.

— Como?
Pois Vosmecê, Miguel Garcia, largou
mão do ouro que descobriu?

A notícia da barganha, que o outro contara com tamanha naturalidade,
golpeou-lhe o coração como funda estocada. Que parvoíce de caboclo tonto! E chocadíssimo:

— Como
é que Vosmecê teve a coragem de largar
mão do ouro, Miguel Garcia? Onde é que Vosmecê
estava com o juízo nessa hora?

— Largar
mão do ouro? Que é isso, sô Bartolo
meu? Vosmecê está aí a falar de ouro como se aqueles grãozinhos fossem lá alguma riqueza. . . Doze oi
tavas! E que qualidade de ouro era esse? Não era
ouro de beta, nem ouro de madre; mas um ourinho de
lavage que não valia nada. Ouro que a gente vai
ali no ribeiro e apanha com um prato de estanho.
Vosmecê bem sabe, sô Bartolomeu, que ouro de lavageé ouro atoa…

Bartolomeu franze tempestuosamente o sobrolho. Está
contrariadíssimo. E com dureza:

—   Não é coisa assim sem importância, não! Ouro de beta,
ou de lavage, pouco importa! O certo, sô Miguel Garcia, é que Vosmecê não tinha
direito de largar mão, assim à sua vontade, dum ouro que não era seu. . .

—   Não era meu?

—   Não, senhor!

—   Mas se fui eu que descobri.. .

—   Vosmecê descobriu, não nego. Mas a bandeira não está
no sertão só à custa de Vosmecê. A bandeira está aqui à minha custa e à custa
de Carlos Pedroso! E é na mão de Carlos Pedroso, conforme se combinou no
Taubaté, que nós temos de botar todo o ouro que a bandeira topar na jornada.
Como é que Vosmecê,
diante disso, vai negociar uma clavina com aquilo que não era seu?

Dizendo, o Bueno encara no companheiro com rudeza. Encara e
ordena-lhe ríspido:

—  Vosmecê, Miguel Garcia, vai desmanchar esse
negócio. E vai desmanchar já!

—  Eu? Vosmecê está louco, sô Bartolomeu? Eu não
desmancho coisa nenhuma! O negócio está feiro e acabado. E a minha palavra não
volta atrás. Nunca! Nem que morra. ..

E, por seu turno, fechando a carranca, incisivo e áspero:

—  Demais — fique Vosmecê sabendo — o ouro era muitíssimo
meu!

— 
Seu?

— 
Meu!

O bate-boca azeda. Os dois homens estão
perigosamente picados nos seus melindres. Miguel Garcia:

— O
ouro era muitíssimo meu! Eu não sou como Vosmecê, sô Bartolomeu, que desperdiçou tudo o
que tinha em tafulice e jogo. Não, senhor! Eu estou
aqui no sertão com cinquenta homens meus, que eu
aparelhei por minha conta e paguei com a minha fazenda. ..

 

Bartolomeu
Bueno:

— Desperdicei
em tafulice e jogo, é certo. Mas
desperdicei o que me pertencia. E o que me pertencia a mim sozinho. Não fiz como Vosmecê que dá de
breganha aquilo que lhe não pertence. E por isso
clamo aqui: ou Vosmecê desmancha esse negócio por
bem, e já, ou desmancha por mal, e a tiro. . .

Miguel Garcia arranca sanhudamente o bacamarte do cintão de onça.

Bueno,
ao ver o gesto, arranca também com o mesmo ímpeto, o trabuco de boca-larga. E
ambos, de arma em punho, medem-se de alto a baixo. A cena é um relâmpago, e
nesse relâmpago, acudindo precipite, o velho Salvador de Mendonça intervém com
autoridade no conflito.

— Que
é isso, senhores? Vosmecês de trabuco na
mão? Que é isso? Vosmecês, tão companheiros, aí
a ponto de se matarem por causa de meia dúzia de grãos?
Não, senhores, não pode ser! Eu corto a dúvida já. . .

E gritou para dentro do seu rancho:

— Garcia
Velho! Dê um pulo aqui, Garcia Velho! E me traga o ouro da breganha. . .

Garcia Velho surge à porta da palhoça. Salvador de Mendonça diz com
autoridade:

— Meus
amigos, vamos todos nós desfazer as nossas breganhas. E desfazer em boa paz, como amigos, antes que Bartolomeu Bueno e Miguel Garcia, se
destripem por causa desses granetes atoas. . .

Mas
Miguel Garcia não concorda. Está raivento como cobra pisada. E torna
abespinhado para o velho:

— Não
aceito, sô Salvador! Digo e repito: a minha palavra é uma só. É palavra que não volta atrás!
Eu fechei com Vosmecê o negócio e está fechado. Não
se fala mais nele. ..

Bartolomeu Bueno atalha-o com ira:

— Pois
desta vez, moço, a palavra de Vosmecê tem
de voltar atrás. E voltar já! Pois, a ser de outro
modo. . .

O
Coronel Salvador é homem de peso. É homem
conciliador. Vê claro, ante a fervedura dos ânimos,
que aquela diferença vai ter desfecho sangrento. E
soluciona ali, jeitosamente e generosamente, a trovejante contenda dos dois cabos: .

— Vosmecê
tem razão, Miguel Garcia: o nosso ne
gócio está fechado e acabado. Nem Vosmecê me devolve a clavina, nem eu devolvo a Vosmecê o ouro.
Mas eu desmancho o negócio das índias que fiz com
Garcia Velho. E vou mandar a Carlos Pedroso, como
lembrança minha, as doze oitavas do barulho. . .

Miguel
Garcia olha pasmado para Salvador de Mendonça. Mas Salvador, muito
naturalmente, vira-sc para Garcia Velho:

— Eu já falei a Vosmecê, Garcia Velho, que Vos-mecê carece ir ao
povoado buscar uns cargueiros de mantimento. Pois trate de se aprontar! E até
amanhã, no mais tardar, toque por esse mundo de Deus a caminho de Taubaté. Vá
levar a Carlos Pedroso, de minha parte, esse diabo de ouro que Miguel Garcia
bateou. ..

Os
dois contendores, ante a vencedora grandeza do velho tornam-se mais cordatos.
Refreiam as suas cóleras. Apazigúam-se. E, na manhã seguinte, madrugada ainda,
o irmão de Miguel Garcia, largamio-se por aquele sertão bravo, tocou-se para
Taubaté com o ouro dos Cataguazes.

CARLOS PEDROSO

Carlos Pedroso enfia num saquinho bordado as doze turbulentas oitavas
de ouro. E com elas, raposão matreiro, parte açodadamente para o Rio. Ah, que
êxito ruidoso teve no Rio aquele minguado ouro das barganhas! Carlos
Pedroso apresenta-o com grandes aparatos, oficialmente, ao governador Sebastião
de Castro Caldas, como sendo: — o primeiro ouro das "minas" dos
Cataguazes! Ouro de mina! O Governador recebe com enlevo as amostras. Manda
buscar no mesmo instante o prático da mineração.

— Vosmecê diga que casta de metal é este…

O prático, mal põe os olhos nos granetes, excla(ma com ímpeto:

— É ouro, Senhor! Nem há
dúvida. . .

Não havia, realmente, mais dúvida: era ouro. E ouro de mina — insiste
com espavento o ladino financiador da bandeira. Ouro das minas dos Cataguazes!
Das minas que Bartolomeu Bueno descobrira a mandado dele, Carlos Pedroso — a
mandado dele e à custa da sua exclusiva fazenda! "Vendo empenhado Portugal
(di-lo o próprio laques!) no descobrimento de minas de ouro e prata, Carlos Pedroso se animou á custa
de sua fazenda, sem a menor ajuda, nem interesse de futuras mercês, a fazer
penetrar o sertão dos bárbaros Cataguazes. Teve a gloria de ser o primeiro
(sic) que, com o cabo Bartolomeu Bueno de Siqueira, conseguiu o descobrimento
das minas de ouro". Não foi o primeiro, está visto. Pouco importai Ele
alardeia que o é. E o governador o ouve. E aceita de boa sombra os alardes do
capitalista. Bem sabia Castro Caldas que, com a descoberta do ouro, tão grata
ao coração do soberano, ele, governador, seria também generosamente lembrado
pela gratidão real. Por isso, no seu entusiasmo, seduzido pelas lábias do
descobridor espertalhão, Castro Caldas dá ordens para que se erga, sem mais
delongas, a fim de quintar-se o ouro que vai jorrar das minas dos Cataguazes,
uma Casa de Fundição em Taubaté. E distribui ao mesmo tempo retumbantes mercês:
galardoa já a Carlos Pedroso de Siqueira, pomposamente, com o cargo de:
Prove-dor-mor dos Quintos e Administração da Fundição Real de Taubaté; galardoa
também a Bartolomeu Bueno de Siqueira com o poderoso cargo de: Guarda-mor das
Minas Novas dos Cataguazes. E escreve festivamente ao Rei narrando o
acontecimento grandioso. Manda ao soberano, como prova tangível do sucesso, as
oitavas do achado opulento. O Rei, lá de Portugal, encantado e maravilhado,
aplaude sem reservas aqueles títulos e
mercês. E como não aplaudir? Ele próprio já autorizara aos governadores que
concedessem "mercês e honras aos moradores de S. Paulo e mais capitanias
que descobrissem minas de beta de ouro ou prata". E ainda mais
categoricamente: "… vos concedo faculdade para propor todas as honras e
mercês que se vos declara deveis prometter aos Paulistas". Ah, os
paulistas! Era necessário que "os Paulistas (como dirá em breve uma das cartas
do governador Rodrigo César ao Rei) continuem os seus descobrimentos de ouro,
pois a experiência tem mostrado que só os Paulistas sabem desprezar os
trabalhos do sertão, com os descobrimentos que teem feito com geral gloria de
sua pátria". O Rei, por isso, nem só aplaude as mercês, como agracia
ainda, refulgentemente, a Carlos Pedroso, precioso paulista que é, com o
envaidecedor hábito de Cristo e a grossa tença de 80$000 anuais!

Que Carlos Pedroso, blasonador e jeitoso, pavoneie ante o
governador as suas gabolices! Que se apregoe, sem o ser, o primeiro descobridor
das minas de ouro! Que abocanhe o título de Provedor-mor dos Quintos, e a mercê
do hábito de Cristo, e a tença de 80$000! São tudo coisas de somenos. Há, em
meio a essas espertezas, um fato certo: foi em verdade revelado, e — pela primeira vez — denunciado
oficialmente ao governo, o ouro dos Cataguazes.

O Rei de Portugal, diante daquela denúncia, tinha razão, e muita, para
aquelas suas alegrias e galardões. E tinha razão, não somente por causa
daquelas pobres oitavas que lhe fulgiam às mãos, mas porque, na realidade, o
que ia agora pelo sertão dos Cataguazes eram prodígios de enlouquecer um homem.
Sim: prodígios de enlouquecer um homem! Terra miraculosa! El–Dorado! Cascalho
onde roncasse o almocrafe, era cascalho de ouro. Ribeiro onde revoluteasse a
bateia, era ribeiro de ouro. Que entontecente descobridor de minas! Grãos e
folhetas, desvairando os sertanistas, rolavam por toda a parte. Por toda a
parte, por todos os socavões, por todos os
veios, por todas as grupiaras! Página refulgente a página brasileira da
conquista do „ouro. Vede:

PÁGINA REFULGENTE

Corramos
ao Itaverava. Alcancemos de novo, naquele pouso sertanejo, Bartolomeu
Bueno de Siqueira e Salvador Furtado de Mendonça.

As
duas bandeiras, depois da áspera cena da barganha, atacam de rijo o sertão do
ouro. Bartolomeu Bueno, já agora rompido com Miguel Garcia, mete os seus homens
rumo do Itatiaia. Salvador de Mendonça, já agora aliado a Miguel Garcia, lança
a bandeira rumo do Itacolomi. E lá vão, sedentos de riqueza, atrás daquele ouro
fascinador, tão sonhado, que o sertão escondia com rústicos ciúmes na estranha
fragosa. Lá vão, num peregrinar selvático, de ribeiro em ribeiro e de socava em socava. E eis que Bueno, na sua investida, chega às margens dum rio pequeno, muito remansoso, povoado de bugres mansos "… ribeiro que fornecia aos pedaços o ouro
de suas areias. Esses pedaços Bueno viu nos ornatos das Índias". Os
caboclos, guiados pelos bugres, começam a sondar o riacho. E, ao sondarem-no,
mergulhando as gamelas de pau na areia rebrilhante, as gamelas — céusl — vêm
refertas de granetes amarelos. E de todas as bocas:

– Ouro!

Sim,
é ouro! Bartolomeu Bueno, naquele sítio, descobre o ouro do Pitanguí (1).

*
* *

E
enquanto os fados assim propiciamente conduzem a bandeira de Bueno, o Coronel
Salvador de Mendonça vai, como um bruxo, tocando os chãos dos Ca-taguazes com
uma vareta enfeitiçada. Enfeitiçada, não há dúvida: onde bota o taubateano o
seu condão mágico, aí brota um veio de ouro! É verdade que o tauba-reano, por
mais que sondasse aquelas redondezas, não encontrou a tão buscada
"Mãe-com-o-Filho". Embora! Que viagem fabulosa a viagem do velho
paulista! Mal partido do Itaverava, alcança ele o ribeirão onde Miguel Garcia
colhera as oitavas da barganha. Ordena que os companheiros o bateiem de novo de
ponta a ponta. Mas não foi preciso tanto: ao socavarem os caboclos a primeira
beirada, já estrugem de todo o lado gritos quentes:

— Ouro! Ouro!

Sim,
é ouro! É o ouro do Ribeirão do Garcia. E esse ribeirão, hoje tão
conhecido é o que chamam de

(1) — Vide nota J in fine.

 

Gualaxo do Sul.
Nas barrancas dele, alvoroçados, os rompedores-de-mato põem-se a lavar as
areias que chispam. E colhem punhados de grãos. Largos punhados de grãos a cada
simples bateada. Ah, que dias de febre! Naquelas águas
longínquas, entre aqueles ser-lanejos deslumbrados, principia então um sôfrego
catar de riquezas. . .

E é
nesse ribeirão do Garcia, ali, naquelas paragens selvagens, que Salvador de
Mendonça lança os fundamentos do primeiro povoado regular que se plan-tou nos
Cataguazes. É o povoado do Fundão. O primeiro povoado! Fundão significa
a semente obscura que o semeador arremessou à terra. A semente, que era boa,
caiu em terra boa: fecundou. E a bravia região do gentio cataguá, hoje povoada,
hoje civilizada, hoje parte envaidecedora da comunidade brasileira, é o fruto
opimo desse sémen piratiningano. Com aquele povoado, com aquela rancharia de
sapé erguida toscamente nos sertões de além-Mantiqueira, Salvador de Mendonça,
esse desempenado e rústico povoador de desertos, abre, sem o supor, à beira do
riacho dourado, B página inaugural de belo e vasto pedaço do Brasil: o atual
Estado de Minas Gerais. Eis, no seu cerne, e com orgulho para os de S. Paulo, o
significado alto daquele pobre arraialzinho inicial. "Hoje, esquecido,
relegado em sua profunda humildade (diz Diogo de Vasconcelos), ninguém lhe pode
contestar a gloria de ter sido o primeiro domicilio erecto em Minas Geraes".

Mas
Salvador de Mendonça é um povoador empolgante. Não se contenta com o ribeirão
do Garcia. Aquilo é pouco para a sua fervente ambição. Ele ainda sonha com a
"pedra". Onde, naqueles sítios, estará o ribeirão dos granetes
cor-de-aço? E o velho continua novelescamente a sua rota agreste. Naquela rota,
que foi fecunda e magnífica, lá vão os paulistas, a cada passo, deixando
imorreudouramente os seus nomes pelos sítios que desbravam. Ribeirão do
Garcia… Ribeirão do Belchior. . . Ribeirão de António Rodrigues… Serra de
Bento Lente… (1) E lá vão também, dia a dia, tendo surpresas deslumbradoras.
A mais rumorosa delas, a maior, a mais pasmante, ocorreu às margens do grosso
ribeirão em que iam desaguar todos os córregos da região. Era um ribeirão de
areias fuscas, onde havia muito seixo escuro e pedraria. Ao dar com o estranho
rio, de ribanceiras pardavascas, sem areias brancas à borda, lampejam de súbito
os olhos práticos do taubateano. E estacando:

— E esta aguada tá com jeito de pintar, moçada!

Bem sabia o experimentado sertanista da antiga regra: "os
signaes, por onde se conhecerá se os ribeiros teem ouro, são:
não terem areias brancas á borda da agoa, senão huns seixos miúdos e pedraria
da mesma casta da margem". . . (1).

(1)   É ainda,
dentro em breve: Arraial dos Camargos, Ribeirão do» Raposos, Ribeirão de
António Pires, Cardosos, Ouro dos Bueno, etc, etc…

(1) — Antonil.

Salvador esbruga o cascalho moreno entre os dedos:

— Moçada, toca a fazer o desmonte destas bar
rancas !

Escravos
e índios, com o almocrafe, desmontam o cascalho das ribanceiras. Enchem as
carumbés. E, com as carumbés à cabeça, carreiam o cascalho aos ba-teiadores. Os
bateiadores afundam as bateias na água. Revoluteiam-nas. E, ao revolutearem-nas,
eis que pintam, em todas as gamelas, com esbanjada fartura, miríades de
grânulos que chispam.

— Ouro! Ouro!

Sim,
é ouro de novo. E aquele ribeirão selvagem, prenhe de grãos coruscantes, será
logo conhecido pelo nome ruidoso de Ribeirão do Carmo. E o local cia
descoberta é o local da atual cidade de Mariana. Ah, o rico e célebre Ribeirão
do Carmo! Salvador Furtado de Mendonça faz ali um descobrimento venturosíssimo:
arranca daqueles sertões, com a descoberta daquela aguada, uma das lavras mais dadivosas
de que há memória no Brasil. Os bandeirantes, maravilhados, atiram-se a elas com avidez. Desmarcada ambição,
vivamente acendida, chuça agora os peitos rudes daqueles mamelucos. E os
mamelucos, comum ardor frenético, botam-se a apurar ouro, dia e noite, na
torrente erma.

Enquanto
o apuram, o eco do opulento achado reboa logo com estrondo. E repercute longe,
lá ao longe, nos rincões mais remotos de S. Paulo. E desses rincões remotos
acorre, ante o febrento rumor, nova leva de caboclos atrás da bandeira de
Salvador de Mendonça. É gente de João Lopes de Lima. "… outra bandeira
fez João Lopes de Lima, morador do Tibaya, S. Paulo, levando o seu irmão, padre
Manuel Lopes, o Buá de alcunha, a descobrirem o ribeirão do
Car-mão" (1). João Lopes vara impetuoso aqueles longos matos. E eis que
topa, acampado nas ribanceiras do ribeirão famoso, Salvador de Mendonça a lavar
cascalho. Que festa cordial o encontro dos dois sertanejos! Tão cordial que as
duas levas, fundindo os seus destinos, põem-se, de então por diante, a socavar
irmanadas aquelas águas rústicas. E toca a batear. . . E o ouro a manar de todo
o canto! Ouro à flor da terra, ouro encravado nas barrancas, ouro chispando nas
areias, ouro a rolar no veio da correnteza! Os caboclos colhem-no à farta. E
quanto mais o colhem, mais os empolga a voracidade celerada. E, na
sua insaciável fome de ouro, já não se
contentam apenas com aqueles pedaços de chão milagroso. Espalham-se ao longo de
todo o curso do rio. Espalham-se também por todas as águas que nele desembocam.
E, ao longo do Carmo, ao longo dos ribeiros tributários, gorgolejam, no bojo
tosco das bateias, granetes e granetes dourados. Era de enlouquecer. . . Rabelo
Perdigão, com o seu eloquente desatavio, narra, como testemunha coeva, o que
foram esses achados. António Pereira, diz ele, descobre por aqueles sítios um
grosso ribeiro de ouro. Este ribeiro ficou se chamando António Pereira. Ê hoje
o conhecidíssimo Gualaxo do norte. No meio de tal ribeiro, outro sertanista,
Sebastião da Gama, descobre mais um ribeiro de pinta rica. Na barra, João
Pedroso descobre ainda outro ribeiro de rendimento ainda maior. As águas todas
destes córregos vão cair no Ribeirão do Carmo. "Por isso, e com
estes exemplos (lá diz o cronista) continuam os mais mineiros a prosseguir os
seus descobrimentos no dito ribeirão do Carmo abaixo". . . Desenrola-se
então, ribeirão do Carmo abaixo, mais um rol fúlgido de descobertas. E António
Rodovalho, e Lima Bonfante, e Pedro Alvarenga, e Francisco Bueno, vão, nas suas
buscas aventurosas, revelando catas sobre catas por todo aquele Carmo
estupefaciente.

, (1) — Relação de Rabelo Perdigão ao Governador.

O próprio
Salvador de Mendonça, com as canastras abarrotadas da riqueza que recolhera,
não se satisfaz. E corre a
arranchar-se no lugar chamado S. Caetano. E descobre em S. Caetano outras minas abundantes. Ainda não o satisfaz! "Não se acalmando o seu furor
por novos descobertos, o Cel. Salvador Fernandes expede um filho com ordem de
explorar o sertão meridional" … (1).

O
filho parte. Parte, e, ao invés de ir ao longo do Carmo, na direção do curso
das águas, como até então haviam feito os descobridores, mete-se (tinha ele de
explorar o sertão meridional) a margear o ribeirão em sentido
contrário ao da correnteza. E eis que a poucas horas de caminho, o moço,
surpreendidíssimo, topa com um bando de paulistas, tendo o padre Faria à
frente, "também a procurar minas por aquelas paragens. Encontram-se. Reconhecem-se.
Abraçam-se. E é ali, com o bom sucesso daquele encontro, que o filho de
Salvador de Mendonça descobre para o pai — coronel afortunado aquele coronel
taubateano! — novas e rendosíssimas lavras. A essas lavras, denomina-as
Salvador — Bom Sucesso. E denomina-as "nem só ao bom sucesso de seo filho,
como á devoção que tinha á Nossa Senhora do Bom-Sucesso de
Pindamonhan-gaba" (2).

(1)      
— Memória de Bento
Fernandes, filho de Salvador de Mendonça.

(2)       – Idem!

E
foi assim que se desvendaram na mirífica região do Carmo, hoje a cidade de
Mariana e as suas redondezas, aqueles veios célebres, tão estrondosos, que
golfaram incontável riqueza por esse Brasil afora.

Diante
de tão prodigiosas descobertas de tantas lavras fuzilantes de grãos, tornou-se
necessário repartir Com equidade aquelas glebas generosas. Repartir as lavras
era a prebenda mais melindrosa do sertão. Para resolvê-la (e resolvê-la com
autoridade) carecia um homem de estimação e respeito. E eis que surge no
cenário das minas esse homem. É um povoador de fama. Um povoador, amigo do Rei,
acatado e reverenciado como sertanista de peso: Garcia Paes. E Garcia Paes, o
filho de Fernão Dias Paes Leme, repartiu, no ano de 1699, entre os paulistas,
as lavras do Ribeirão do Carmo. Foi ele, nos Cataguazes, o primeiro descobridor
de ouro. É ele, agora, o primeiro repartidor das minas daquele ouro.

ANTÓNIO DIAS

Estuporante sertão aquele sertão dos Cataguazesí Não eram só as minas
de Salvador de Mendonça, que, naquele alucinante minuto brasileiro, rompiam do
seio da terra em torrentes de folhetas e grãos. Havia mais. Havia ainda outros
achados. E outros achados — quem o diria? — mais prodigiosos ainda que os do
Carmo, mais desvairantes, que, no desencadear daqueles acasos, por entre a
assombrada surpresa do Brasil inteiro, encheram o país com o barulho da sua
grandeza. Como?

Enquanto
a gente de Salvador de Mendonça e a gente de João Lopes socavam, aparceiradas,
as águas do Ribeirão do Carmo, eis que de Taubaté, daquela fervente e intrépida
Sagres paulista, apresta-se, já agora arrastado unicamente pela fascinação das
riquezas, um pequeno mas destemeroso magote de conquistadores de ouro.

Apresta-se e parte.


vai, o bando cúpido, atrás do ouro! Lá vai, O- bando visionário, ao encalço da
"pedra"! Aquela atrevida bandeirazinha que, de olhos fitos nas minas,
ali se embarafusta pela terra adentro, é a bandeira de António Dias de
Oliveira. Tomai bem nota: é a bandeira de António Dias de Oliveira. Que leva
bem fadadal Leva imorredoura, capital na história do ouro brasileiro, aqueles
poucos homens de António Dias investem pela brenha do Cataguazes sob signos
propícios. Investem, não há dúvida, guiados risonhamente pelo facho encantado
dum deus amável.

E avançam. . . E lá vão…

Certo
dia, andando por uns espigões de serra a margear longo vale, eis que se
rasga ante os olhos daqueles homens quase bárbaros, chucros desvirginado-res de
matos, um panorama estupendo e deslumbrador: além, dentando-se em corcovas,
outra e áspera corda de serranias, muito azuis, alteia no céu claro as suas
rústicas lombas penhascosas. E numa daquelas lombas, a mais altaneira delas,
há, bem no cimo, uma grande pedra atrevida. E junto à pedra atrevida há outra,
mais minguada, que se lhe aconchega amorosamente à ilharga. António Dias crava
os olhos sôfregos no bloco rústico. Será? Os caboclos da bandeira, tal como
o cabo, contemplam surpreendidos a lomba alterosa. E estão todos, como o cabo,
alvoroçadíssimos. Será? António Dias chama de parte o imediato da tropa. E ali,
da beirada da encosta, mal sofreando a sua ânsia, mostra-lhe à
distância, esbatidos na bruma fina que sobe dos grotões, os dois longínquos
penhascos da serra. Será?

— Está no jeito, sô Antôníoí Está no jeito… Mas o ribeiro? Aonde fica o ribeiro que dizem há
defronte da serrania?

— Ali
embaixo, no valo, corre decerto alguma
aguada. E se correr alguma aguada.

Enquanto
fala, António Dias continua com os olhos cravados na cumiada ao longe. De
repente, muito emocionado, como que assentando-se com firmeza numa ideia, o
taubateano, ali, diante dos caboclos aturdidos, põe-se a bradar, com gestos
desordenados, apontando a lomba azul que curveja no céu:

— É a pedra! É a pedra!

E
precipita-se, como um dementado, em direitura à "Mãe-com-o-Filho". Os
caboclos despenham-se, encosta abaixo, empós ele.

— A pedra! A pedra!

Lá vão todos, a bateia em punho, cortando o vale que se estira de
permeio às serras. E eis que, não longe, topam com um ribeirão a estrondar numa
barroca. Então, de todas as bocas, rompe o mesmo grito festivo: ‘ – É o
Tripuí! O Tripuí!

Os
caboclos mergulham atarantadamente, naquelas águas escuras, as bateias ávidas

Revoluteiam-nos.
E logo pintam em todas as gamelas — caso estranho! — uns granetes
pretos, singulares, que ninguém sabe o que sejam. Ouro? Uns dizem que sim. Outros
que não. António Dias trinca aqueles estilhaços com o dente. Dentro deles, com
surpresa de toda a gente, aparece logo — um amarelo gemado e vivo. Será ouro?
António Dias desconfiado, mete ao fogo aqueles extraordinários granetes pretos:
os granetes pretos, ao fundirem-se, gretam de todo lado. E pelas gretas, ao
calor das chamas, irrompem miríades de reflexos chispantes. Que faiscação
maravilhosa! Vendo-a, os caboclos têm uma exclamação só:

– Ouro!

Sim, aqueles estilhaços pretos eram ouro. Ouro preto. E toda a
gente, com pasmo:

— Ouro preto? Mas que casta de
ouro será esse?

Os
práticos botam o toque. E constatam, por entre júbilos de toda a leva, que é o
melhor e o mais puro de quantos ouros já se têm encontrado no sertão!

E foi assim, nas ribanceiras daquele ribeiro, que os da região chamavam
de Tripuí; e foi assim, em frente àquela pedra, a "Mãe-com-o-Filho",
isto é, o Itaco-lomi tão famoso, que António Dias de Oliveira, paulista de
Taubaté, arrancou afortunadamente das brenhas, revelando-as ao mundo, as
soberbas, as rumorosas, as fertilíssimas lavras de Ouro Preto.

* *
*

Desvendado o veio, os caboclos atiram-e a batear aquelas areias
fuzilantes. Que fome de riqueza! As barracas rústicas do
córrego refervem da faina escan
dente daqueles homens. É um lavrar ouro sem tréguas, de manhã à noite, com um acirramento de desvairados … E enquanto, na sua voracidade, os desco
bridores assim entopem surrões e mais surrões de grãos
dourados, eis que surge inopinadamente, às margens
do Tripuí, novo bando de chegadiços. Quem são eles?
António Dias reconhece-os logo:
— Deus vos salve e guarde, padre Farial

— E a Vosmecê, António Dias!

Sim, é o padre Farial Ê aquele mesmo desbravador dos Cataguazes, o
vigário de Pindamonhangaba, aquele velho e fragueiro caçador de granetes que,
com Borba Gato, havia descoberto por aqueles matos alguns corridos de ouro.
Padre Faria metera-se agora, de novo, com um séquito de paulistas de prol, rumo
à terra das minas. Vem com ele Francisco Bueno. E António Bueno. E Tomaz
Camargo. E João Lopes Camargo. E. . . As duas levas, por aquele feliz acaso,
encontram-se ali no córrego dos estilhaços escuros. E entremisturam-se com
alegria. Entremisturam-se em Ouro Preto, tal como, no Ribeirão do Carmo,
entre-misturaram-se as levas de Salvador de Mendonça e de João Lopes, E foi
assim que, fundidas, aquelas duas bandeiras, a de António Dias e a do padre
Faria, completaram, naqueles grandes e febrentos dias, a descoberta de toda a
deslumbradora região de Ouro Preto.

… achou-se outra mina, que se
chama do ribeiro de António Dias; e, dahi a meia légua, a do ribeiro do Padre
João de Faria; e, junto desta, pouco mais de hu-ma légua,
a do ribeiro do Bueno; e a do ribeiro de Bento Rodrigues". . . Padre
Faria, não saciado com tantas e tão resplendentes descobertas, mete-se ainda,
ribeirão abaixo, a buscar novos veios. É quando dá de encontro com o filho de
Salvador de Mendonça. E ambos com vivíssima surpresa, verificam então esta
coisa enorme: o Ribeirão do Carmo e o Ribeirão do Tripuí são, com nomes
diferentes, um único ribeirão! Assim, por essa ocorrência pasmosa, as
grandes bandeiras descobridoras, a de Salvador de Mendonça e a de António Dias,
sem jamais o suspeitarem, estavam ambas, bem próximas uma da outra, a batear
ouro nas ribanceiras da mesma aguada. . . Como explicar a coincidência? t
que a pedra, a "Mãe-com-o-Filho" não a encontrou Salvador de
Mendonça por este motivo simples: somente colocado em certo ponto, dentro
de determinado ângulo, pode um observador avistá-la. Salvador não teve a dita
de se colocar no tal ponto. Foi António Dias quem teve a boa fortuna
de arranchar o seu acampamento dentro desse ângulo. E por isso descobriu
a pedra. E o Tripuí. E estando no Tripuí — curioso acaso! — estava, sem o
saber, no Ribeirão do Carmo. Constatado o inesperado fato, tão de alegrar a
todos, botam-se o padre e o moço a socavar juntos aquele sitio. E ali; no lugar do venturoso encontro, no sítio
do bom-sucesso — nova mina! Sim, minas novas por toda a parte. . .
"Minas essas que, quasi todas, tomaram o nome de seus descobridores, que
foram todos Paulistas" (1).

Todos
paulistas! E a tuba da fama, soando com fragor, arremessa então, aos quatro
ângulos da colónia, esta palavra mágica:

~ Ouro Preto!

Ouro Preto. . . Foi este o ouro mais buscado do Brasil inteiro. Ouro
excelentíssimo
, no dizer unânime dos coevos entendedores. Bem podia,
portanto, escrever dele ao Rei o governador Artur de Sá: "As minas de
Taubaté, que são chamadas dos Cathaguazes, distão de Taubaté mais de cem
léguas; continuamente se vão achando novos ribeiros de grandíssimo valimento,
como já tenho dado conta a V. Magestade; o ouro excellentissimo"

Carecia agora, como careceu no Ribeirão do Carmo, repartir aquele ouro
excelentíssimo. Quem, entre aqueles caboclos bravios, teria poder para tarefa
de tanto espinho? Houve um nome unissonante aclamado: Salvador de Mendonça. E
Salvador de Mendonça, tal como Garcia Paes, repartiu, entre os paulistas
descobridores, as minas de Ouro Preto.

(1) — Antonil.

BORBA GATO

A página brasileira da descoberta das minas foi, não há dúvida, uma
página deslumbradora das mil-e–uma noites. Pois os achados não pararam aí. Não
ficaram apenas no Carmo e em Ouro Preto. Havia tambem ouro, e excelentíssimo, por outros rincões de além-Mantiqueira. Ecos de descobrimentos novos, de
catas inesperadas, de veeiros que rompiam improvisada-mente, estrugiam agora de
todos os quadrantes do sertão. Tantos, tão rumorosos, que o governador Artur de
Sá e Menezes decidiu-se a ir, em pessoa, ver de perto aquelas riquezas que
brotavam a flux no rústico El–Dorado maravilhador. Urgia, porém, antes de ir,
tratar da abertura de um caminho, expedito e fácil, que ligasse com rapidez a
região das minas à cidade do Rio de Janeiro. Para tal, foi Artur de Sá
entender-se com os sertanistas de Piratininga. E, na terra bandeirante,
entender-se particularmente com aquele sertanista de prol, amigo do Rei,
repartidor das minas do Ribeirão do Carmo: Garcia Paes.

Foi pois, em São Paulo, que, certo dia, Garcia Paes procurou o
governador. Procurou-o em sigilo.

E, a sós os dois, disse o filho do
caçador-de-esmeraldas ao procônsul reinol:

—   Vossa Excelência conhece bem aquela desgraça que
arruinou a vida do meu cunhado. . .

—   Borba Gato?

—   Borba Gato!

—   Conheço o caso, Garcia Paes. E então?

—   Então, senhor Governador, depois do desastre, como
Vossa Excelência de certo já ouviu dizer, Borba Gato sumiu. Por muitos anos não
deu ele notícia do seu paradeiro. Vossa Excelência não pode avaliar o desespero
que é para a minha gente a perda de Borba Gato! Ninguém se conforma em saber
que o meu cunhado, homem reto, companheiro firme de meu pai, vive fugido da
justiça como criminoso. A mulher dele, que é a mana Maria Leite, saiu de S.
Paulo e foi morar em Taubaté. Instalou-se no lugar chamado Paraitin-ga. que é boca de sertão, fica rente da estrada que vai para as lavras. A mana pousou
nuns campos daquela terra, ergueu casa, e ficou-se ali, que é perto dos
Ca-taguazes, na fiúza de ver o marido um dia aparecer. Mas foi tudo baldado!
Passaram-se anos e anos sem que Borba Gato desse notícia de si. . .

—  
Anos e anos?

—   Sim, senhor Governador! Vinte anos andou ele por
aqueles matos como um bicho. No fio desses vinte anos, corre prá cá, corre prá lá, encontrou
Borba Gato uns bugres de boa avença, da nação chamada piracicava, que o receberam
como amigo, Borba Gato arranchou-se com eles. E
viveu como bugre no meio desses
bugres. Tornou-se até o maioral desse gentio. Ora, faz pouco tempo, numa tarde
de vento grosso e chuva braba, surge em casa da mana um homem barbudo, cabeça
branca, que entra pela casa de sopetão. Uma rapariguinha de pouca idade, que já
é filha duma filha da mana, estando por acaso na sala–de-janta, ao ver o
estranho que vem varando, sai a grilar pela casa:

— Um
homem barbudo tá aí, mãe! Um homem
barbudo tá aí, mãe!

Acode
a mãe da menina a ver o que é. E ao dar com aquele velho que vem entrando,
naquele lusco-lusco de chuvarada, vestido de couro, botas, um arco de bugre às
mãos, a moça também se amedronta. E corre, com os olhos saltados, pelo quarto
da mana Maria adentro:

— 
Tá aí um homem barbudo,
mãe!

— 
Um homem barbudo?

—  Barbudo, vestido de couro, com um arco de bugre …

A mana estremeceu. Sentiu uma voz lá dentro que dizia: é ele! E
veio às pressas ver o homem que a moça e a menina não
sabiam quem era. Não se enganara o coração da velha! Na sala, mal vê o
chega-diço, a mana solta um grito de festa:

— Borba Gato!

Era,
de fato, Borba Gato. A filha, que ele deixara criança, não o pudera reconhecer.
A netinha, essa nascera e crescera enquanto o avô andava pelo mato. Mas a mana
Maria reconheceu logo o marido. E os dois velhos abraçaram-se ali, chorando,
depois de vinte anos de separação. . .

Artur de Sá ouve de boa sombra o filho de Fernão Dias. E torna-lhe:

—   Eu soube dessa volta de Borba Gato ao povoado, Garcia
Paes. Não soube assim com essas miudezas. Mas soube. E como tenho em grande
conta a Borba Gato, nem o quero mal pelo crime que praticou, mandei ordens a
ele para que voltasse ao sertão e se esforçasse por descobrir a serra do Sabarabuçu.
A descoberta de Sabarabuçu, Vosmecê bem o sabe, é o maior serviço que Borba
Gato pode prestar ao Rei. E, com tal serviço, o caminho certo para que Borba
Gato obtenha o perdão do crime.

—   Mana Maria botou-me a par dessa sua bondade, senhor
Artur de Sá. E até mandou-me estas letras em que vêm as ordens de V. Excelência. . .

Garcia
Paes desdobrou ante o Governador um velho
papel. Nele, entre outras coisas, dizia Artur de Sá
"pelas noticias que tenho, na paragem a que chamam Sabarabussú,
haverá mina de prata; a cujo serviço mando Borba Gato para que explore
os morros e serras que houver naquelas partes" … (1).

— Perfeitamente,
Garcia Paes, foram essas as mi
nhas ordens.

— Pois
Borba Gato, com essas ordens, tornou ao
sertão. No sertão, encontrando-se com o padre Faria, andaram juntos
aí pelos Cataguazes a provar uns ribei-ros. Acharam, é certo, uns corridos de
ouro. Mas foi coisa sem importância. Ouro atoa, de lavage. Na semana passada,
porém, apareceu no Taubaté, em casa da mana um bastardo de Borba Gato. E o
mensageiro me trouxe a mim, da parte do cunhado, uma notícia de peso. Por causa
dessa notícia, é que eu vim aqui falar com Vossa Excelência.

— Pois é dizer o que há, Garcia Paes!

Cai
um relâmpago de silêncio. E Garcia Paes, pausado, olhando fito o Governador.

— Senhor! Borba Gato é homem que não mente.É, como sempre foi, homem inteiro e verdadeiro. E
Borba Gato mandou dizer que agora, guiado pelos ín
dios, acaba de descobrir no sertão. . .

(1) — Vide nota K in fine.

Garcia Paes abaixa a voz:

— A serra do Sabarabuçu!!

Artur de Sá franze o sobrolho:

—  Descobriu a serra do Sabarabuçu? Borba Gato
mandou dizer isso, Garcia Paes?

— 
Sim, senhor: mandou
dizer que descobriu a

Sabarabuçu.

* * *

Sabarabuçu! A serra da prata, a miragem fasci-nadora, atrás da qual,
norte e sul, correram febrenta-mente tantos sertanistas! E eis que agora, lá no
fundo do mato, Borba Gato despacha aquela mensagem radiosa: descobrira a
Sabarabuçu 1 Não podia haver, como remate àqueles achados entontecedores, que
enchiam o sertão do Cataguazes, coroa mais preciosa nem mais fúlgida.

O
Governador ouve a nova auspiciosa. E com alvoroço:

— Garcia Paes, mande avisar imediatamente a
Borba Gato que eu estou de vereda para o Rio; mas
que, do Rio, irei sem tardança ao sertão das minas.
Que Borba Gato, quando tiver conhecimento da minha partida, não se afaste de onde está: do Tripuí eu
irei à serra do Sabarabuçu. Por enquanto, e para mos
trar o gosto que tive em receber a notícia que recebi, vou dar a Borba
Gato uma carta-de-seguro, com franquia, para que ele possa andar livre, sem
medo às jus-tiças, por toda a comarca dos Cataguazes.

E
assinou a carta-de-seguro. Com aquela carta, já conseguia o foragido quase
completa liberdade: a comarca dos Cataguazes, naqueles tempos, ia dos sertões
da Mantiqueira aos sertões do Peru!

No
mesmo dia, partindo a toda pressa para as bandas das minas, um próprio levava a
Borba Gato a palavra e o papel do Governador.

MINAS GERAIS

Artur de Sá partiu, com largo séquito, a caminho dos Cataguazes.
Alcançou as lavras. Viu, deslumbrado, o mar de ouro que brotava delas. E aí
legislou. E aí deu instruções. E aí assentou os lineamentos da vida
administrativa das minas. Depois de assim ter lançado, com os primeiros
alvarás, os alicerces básicos do Carmo e de Ouro Preto, o Governador meteu de
novo a sua comitiva pela terra adentro. Lá seguiu em busca de Borba Gato.

E
foi em pleno sertão, após ásperas léguas de jornada, que um dia, enfim, se
encontraram os dois homens. O Governador, mal apeado do seu macho, avança de
braços abertos para o assassino de D. Rodrigo de Castel Blanco:

— 
Deus vos salve e guarde,
Borba Gato!

—  Deus vos salve e guarde, senhor Artur de Sá e
Menezes, Governador de nós todos!

Artur de Sá, num gesto lhano, aperta na sua mão, com força, a mão
cerdosa do criminoso.

—  Aqui estou, Borba Gato. Vim ver a serra do Sabarabuçu
que Vosmecê descobriu. . .

—  A serra do Sabarabuçu, senhor Governador, é aquela que
ali está curvejando no céu. . . — diz o sertanejo apontando uns morros que se
alteiavam na distância.

Nada
de extraordinário na serra ao longeI Não era branca, nem
resplandecente, nem de prata. Uma serra como todas as serras.

—  Aquela? Pois é aquela, Borba Gato, a Sabarabuçu?

— 
Venha, senhor Governador,
venha daí comigo…

Artur de Sá, guiado pelo paulista, enveréda-se por uma picada aberta no
mato próximo. Ao fim de pequeno jornadeio, mal saído do arvoredo, o governador
estaca: ao pé dum ribeiro, a bateia na mão, magotes de índios mansos estão a
lavar areias.

—  Ouro, Borba Gato?

—  Ouro, senhor! Ouro!

E diante da surpresa do
Governador:

— Os
índios destas paragens, a uma boca só chamam aquela serra, que está ali tapando o horizonte, de
Sabarabuçu. E a Sabarabuçu, como V.
Excelência vê,
não é nenhuma serra de prata; não é nenhuma serra de esmeraldas. A
Sabarabuçu é uma serra de ouro! Veja, Senhor, veja o ouro sem conta que brota
dessas areias…

Artur de Sá e Menezes, pasmado, contempla, no bojo de todas aquelas
gamelas de pau, o faiscar dos granetes dourados.

E o paulista:

— Quis Deus, senhor Governador, que eu desco
brisse estas minas. Veja V. Excelência os grãos que
vêm a cada bateiadal É um nunca acabar. . .

Artur de Sá contempla aquilo. Examina o ouro. Vai de bateia em bateia. E afinal, diante de todos, pausado e solene:

— Borba Gato! El-Rei, nosso senhor, certamente saberá galardoar, com larga grandeza, o serviço que
Vosmecê acaba de prestar à sua real fazenda. Mas eu,
desde já, em nome de Sua Majestade, proclamo aqui,
alto e bom som, para que todos saibam: Vosmecê,
Borba Gato, está perdoado! E ordeno que se faça, de
hoje em diante, sobre o assassínio de D. Rodrigo de
Castel Blanco, perpétuo silêncio. . .

Principia, desde esse minuto, para o romanesco paulista, uma nobre
velhice respeitada. El-Rei, em breve, agracia-lo-á com o título de
General-do-Mato. Honra-lo-á com a sua amizade. Distingui-lo-á com a confiança mais
destacada. E Borba Gato, ancião e glo-rioso, será, na história inicial daqueles
sertões, um dos patriarcas maiores e mais prestigiosos. Há de tornar-se
imensamente rico. Os seus filhos e filhas serão troncos de vastas famílias
brasileiras. Dentre as suas filhas, duas, particularmente, hão de se casar com
dois guapos reinóis: António Tavares e Francisco de Arruda. Esses reinóis
enriquecer-se-ão. E, ricos, passarão com as suas esposas à Europa. Borba Gato —
"acrescentou-lhes um cabedal em ouro ao que já tinham. Recomen-dou-os ao
Rei. E, na Ilha de S. Miguel, sua pátria, compraram ambos ricas propriedades e
fundaram lá nobres morgadios".

Naquele
momento, porém, diante de Artur de Sá C
Menezes, o grande foragido tem esta alta missão histórica: revelar a
serra encantada do Sabarabuçu. Sim, revelar a Sabarabuçu e desfazer a lenda da
prata. Mas que importava a prata? Borba Gato, naquele momento, com o desmanchar
a quimera risonha, desvenda ao Brasil, por feliz acaso, aquelas ricas e
abundantíssimas lavras de ouro, tão barulhentas como as do Carmo e de Ouro
Preto, que se tornaram conhecidas, no correr dos anos, por este nome
simplificado: Sabará.

Sabará!
Ribeirão do Carmo! Ouro Pretol Ao longo de todos esses sítios, em apenas meia
dúzia de anos, que aflorar de minas!
Tantas, tão numerosas, tão gerais, que o povo, no seu pasmo, começou a
denominar a região: minas gerais. Minas Gerais!

Nota:
— Os ouros, que os
descobridores colhiam nas lavras, continuavam a ser ouros de aluvião: ou eram
encontrados à flor da terra, ou encontrados em cascalho após escavações pouco
profundas. Mas havia em tal quantidade no leito dos ribeiros (veios) ou nas
margens (tabuleiros) ou nas encostas das montanhas (grupiaras) que os
sertanejos chamavam esses sítios, onde assim tão abundantemente os exploravam,
de mina. Porém as minas verdadeiras, isto é, as jazidas, os veeiros metálicos
que se encravam nas entranhas da terra, jazidas donde provinham talvez esses
ouros de aluvião, essas é que ainda não foram (ao que parece) suficientemente
buscadas no Brasil.

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