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QUARTA PARTE

ELDORADO

 

O ECO DAS GERAIS

Ah, o eco das Gerais. . . Eram, ao mesmo tempo, arrepiantes e
deslumbradores: o ouro das minas, não havia dúvida, desgraçava a muitíssimos;
mas aquele ouro, também não havia dúvida, enriquecia a muitíssimos. Ninguém,
contudo, tinha olhos para ver os inúmeros infelizes que lá perpetuamente,
ficavam, a carcassa ao sol, apodrecendo no chão dourado das catas. Toda a gente
tinha olhos unicamente para ver os que de lá voltavam poderosos, triunfantes,
com as canastras entupidas de barras amarelas. Esses traziam a Pirati-ningá a
fama enlouquecedora das Gerais. Essa fama alastrou-se de golpe, estrepitosa,
pelos ermos mais remotos de São Paulo. E então, naqueles anos ardentes do ouro,
de S. Paulo inteiro, das suas cidades e dos seus povoados, dos matos mais duros e dos socavões mais míseros, de
toda parte, numa desabalada alucinante, descomedida, única, despenharam-se às
minas levas e levas de piratininganos, arrastados e dementados por mórbido
frenesi de riqueza!

As
Gerais! As Gerais! Que afogueadas coisas se não contavam da grandeza daqueles
rincões! Salvador de Mendonça,
António Dias, Borba Gato, haviam revelado à colónia, com a descoberta do
Ribeirão do Carmo, de Ouro Preto, de Sabará, não apenas três grandes e opulentos
veeiros, mas sim três largas e formidandas regiões de minas, donde o ouro
exsurgia esbanjada-mente a cada canto. Buscando com ânsia aquelas três regiões,
explorando-as, e explorando as redondezas delas, quanto paulista correu a
aventurar-se nas Ge-raisl Quanto e quanto! Os Raposos foram dos primeiros que
acudiram ao estrondo da fama. E acharam, sem tardança, uma enormidade de
folhetas nas areias dum ribeirão obscuro. Foi a este ribeirão que se deu o nome
de "Ribeirão dos Raposos". Gaspar Soares, que veio no rastro dos
Raposos, descobriu logo uma lavra rendosíssima ao pé de certo morro. Este
morro, por sua vez, ficou chamado "Morro de Gaspar Soares". E
Francisco Bueno? Esse veio de Piratininga, às lufadas, rumo do El-Dorado. Mal
pisou as terras das Gerais, já teve a boa estreia de descobrir — "grande
copia de ouro nem só no córrego que teve o nome de Córrego de Bueno, como
também do Rio das Pedras" (1). Francisco Bueno não pôde, só com os seus
escravos, dar conta da grandeza que descobrira. Mandou avisar às pressas os
parentes e os amigos. Vieram de S. Paulo, parentes e amigos às chusmas.
Entre eles, veio José

(1) — Memória de Bento Fernandes.

Camargo Pimentel. E
este famoso e aventuroso Camargo Pimentel meteu-se a batear com Bueno no
Ribeirão Bueno — "onde extrahiram ambos, diz o cronista, sommas enormes de
grãos com a maior facilidade". Mas eis que sobrevêm a fome. A primeira
fome de 1698. Os mineiros, acuados pela desgraça, dispersam-bc todos pelos matos. No ano seguinte,
contudo, já Camargo Pimentel está de volta. E, segundo a palavra velha do
relato que nos perpetuou estas coisas — "continuando elle os seus
descobrimentos, achou outro loco de ouro em outro ribeiro, cuja povoação teve o
seu nome". Não se saciou. "Tocado da mania de fazer novos
descobrimentos", como lá dizem os documentos, afoita-se ainda mais pelo
sertão adentro, até às margens do rio Piracicava, onde descobre nova e grossa
madre de ouro — "achando sempre indicios de ouro nos cascalhos deste rio,
só parou onde descobriu maior copia delle" (1). E não foram somente esses
paulistas os que acharam lavras novas. Houve dezenas de outros! Leonardo
Nardes, por exemplo num arranco bravio, descobre, em pleno sertão, as minas
fertilíssi-mas do Caeté. António Soares, as do Serro Frio. Domingos Borges, as
de Catas Altas. Rodrigues da Fonseca, as do Ribeirão do Campo. João de Siqueira
Afonso, as de S. João dei Rei. António Rodrigues do

(1) — Bento Fernandes,

Prado. . . Não vale
continuar. O rol é demasiado extenso (1).

Essas centenas de catas, rasgadas naqueles chãos mágicos, apregoavam,
como bocas escancaradas, a grandeza das Gerais. Não havia no mundo, dizia toda
a gente, lavras tão magníficas! E era verdade. "Teem os paulistas como
ribeiro de bom rendimento o que dá, em cada bateada, duas oitavas de
ouro". Pois bem: naquelas lavras, comumente, "as bateadas eram de
dez, vinte, trinta oitavas, e até mais; isto não poucas vezes sucedeu na mina
do Ribeirão e na de Ouro Preto" (2). Era espantoso! Mas ainda não ficava
aí: houve catas, como as de Bento Rodrigues, que chegaram a dar, a cada
bateada, a enormidade de duzentas oitavas! Outra, de opulência ainda mais
vertiginosa, chegou a dar, a cada lavagem, esta coisa desmesurada: meio arrátel
de granetes!

E, além de tão incrível abundância, era de ver-se o tamanho e a beleza
dos grãos! Mal se acredita na palavra sisuda do jesuíta que nos dá estes
números embasbacantes: "… os grãos de maior peso, que se tirarão, foram:
hum grão de noventa e cinco oitavas (ou sejam, hoje, mais de 340 gramas); outro
grão de três libras (ou sejam quase um quilo e meio!) que se repartiram entre si
três pessoas com um machado; ou-tro que passou de cento e cincoenta oitavas (ou
cerca de 600 gramas) que se
mandou ao governador; e outro
grão ainda maior: seis libras (ou sejam quase três quilos!)". Era de enlouquecer. . . O ouro das Gerais incendiava as cabeças
mais frias. E com razão! Bastava, dizia o povo, arrancar-se uma touceira de
barba-de-bode
e vinham folhetas e grãos, fuzilando, pegadas às raízes. Vinham, de fato. O
ouro, nas Gerais, rolava à flor da terra, a granel. . .

(1)      
— Vide nota L in fine.
(2)       – Antonil.

 

O "RUSH”

E não havia invencionices nessas falas. Nem exagerações fabulosas. Era
tudo verdade. Por isso, nem só de S. Paulo, mas, logo após, do Brasil todo, num
rush desmarcado, verdadeiro desvario, rumaram gentes de todo o jeito a caminho
das Gerais. "Convidou a fama das minas tão abundantes do Brasil, homens de
toda a casta e de toda a parte…" Sim, a obsessão do ouro empolgou com
fúria todos os ânimos. Não houve gente válida, no Brasil inteiro, que não se
abalasse para o El-Dorado. "… vão brancos, pardos, pretos, e muitos
indios de que os paulistas se servem. A mistura he de toda a condição de
pessoas: homens e molheres, moços e velhos, nobres e plebeus, ricos e pobres,
seculares e religiosos", conta Antonil. Que arremetida formidanda! Os
senhores d’engenho abandonavam as suas moendas. Os roceiros, as suas roças de
mantimentos. Os criadores de gado, os seus rebanhos e currais. Os fazedores de
marmeladas, as suas lavouras de marmelo. Todas as atividades da época
paralisaram de sopetão. Só se cogitava em minerar. Exclusivamente minerar. Escravos, quantos houvessem, eram disputados a preços altíssimos para o
trabalho das catas. O fabrico de açúcar, a viga-mestra da colónia, decaiu
vertiginosamente. O governo, atemorizado, determinava que ninguém mais,
colono ou rei-nol, sob pena de degredo para Angola, se passasse às minas sem
licença da Secretaria do Estado. E proibia tom rigores violentos, pena de
cárcere e de confisco, que se vendessem escravos da Bahia para as lavras de
Ouro. As naus, por isso mesmo, antes de largarem para o Sul, eram
rigorosamente esquadrinhadas. Mas tudo em vão! Colonos e reinóis
tocavam-se para as minas com licença e sem licença. Traficantes de negros
saíam às ocultas com botes cheios de escravos e, barra fora, entupiam as naus
de carga humana. Toda a gente burlava as ordens. E burlava de tal jeito,
com tal desrespeito, que não houve remédio senão afrouxar o rigor delas. Com
essa frouxidão, o arranco para as minas recrudesceu mais desenfreado. Esse
arranco, já agora, não era só do Brasil. Era também, e principalmente, de
Portugal. Era mesmo da Europa. Incontáveis os portugueses e estrangeiros que
aqui desembarcavam e, na ânsia do ouro, se embrenhavam a caminho das Gerais.
"Cada anno vêem nas frotas quantidades e quantidades de Portuguezes e Forasteiros
para passarem ás minas". . . di-lo o jesuíta, testemunha daqueles
sucessos. Simão Pereira, coevo dos acontecimentos, fixa, tal como o jesuíta,
essa correria desabalada rumo às lavras:
"A exhuberante copia de ouro destas minas deu logo estrondoso brado, cujos
echos soaram nos mais distantes e recônditos seios da America. Em breve tempo,
das cidades e logares maritimos, sobrevem innumeravel multidão. Os mesmos
echos, levados nas azas da fama sobre os mares, voaram á Europa, Viu-se em
breve tempo transplantado meio Portugal a este império já celebre por todo o
mundo"… (1).

Portugal,
assustado com o êxodo de tantos filhos, exclamava ao Rei pela boca do Conselho
Ultramarino: "A fama de taes riquezas convida os vassallos deste Reino a
se passarem ás minas; e por isso passam para aquel-le Estado muitissimas
pessoas. Por este modo, se não se atalhar o mal, se despovoará logo todo o
Reino". Despovoar-se-á todo o Reino. . . Era bem verdade! E foi por isso,
ao considerar tal insânia, ao considerar essa corrida febrenta, despeada,
única, que o ilustre Derby, com justificada razão, dizia: — "guardadas as
relações de tempo, de facilidade de communicações, e de outras circunstancias,
o rush para as Geraes foi talvez mais notável do que os rushes
provocados pelos descobrimentos de ouro na Califórnia, na Austrália e no
Trans-val". Grande e certa palavra: a arremetida para as minas, não há
negar, foi verdadeira loucura!

(1) — "Triumpho Eucharistico".

CRIME, FOME, GUERRA

As lavras
povoaram-se assim de aventureiros de todas as raças. De todas as cores.
De todas as línguas. E que ralé imunda! Ralé desordenada e amoral.
Escumalha lodosa do Brasil nascente aglutinada em torno ao ouro. Mas
ouro quer dizer desgraça. Ouro quer dizer ruína. Ouro e crime são
irmãos gémeos. Por isso, nas Gerais, entre aqueles homens duros, chuçados
por ganâncias isopitáveis, repetiram-se as mesmas odientas tragédias, os
mesmos dramas horro-rizantes que se têm até hoje, sangrentamente iguais,
repetido em todas as histórias da conquista do ouro. Quanto crime, senhorl
Assassínio era coisa banal. Por um grânulo de ouro, roncavam tiros de
trabuco. E facadas. E foiçadas rachando cabeças. Além de tais rixas de
homem para com homem, contendas em que sempre tombava alguém estrebuchante,
houve, muita vez, por causa de veios e catas, encontros ferozes de bandos
assanhados. E com esses encontros, que larga mortandade! Albernaz, por
exemplo, ao vir de S. Paulo, deu logo com um chão rico, dourado, prenhe de
pepitas e grânulos. Não o pôde guardar para si: caíram sobre ele chusmas de aventureiros. Roncaram
balázios. Correu sangue. Juncaram-se as catas de cadáveres.
"Inficionaram-nas". E as minas, exatamen-te por causa dessa
hecatombe, ficaram chamando — "Minas do Inficionado". E o caso dos
Camargos? Estes, acirrados pela posse de umas catas, tiveram com a gente de
Pascoal da Silva, um tremendo ajuste de contas. Estrondaram de novo trabucos,
fuzilaram lapea-nas, lutou-se corpo a corpo, braviamente. E o ouro das minas, o
tão sonhado ouro das minas, ficou ali, com a luta, bem tinto daquele sangue de
irmãos.

Mas não eram só mortes, não! Eram também, nesses primitivos e
desbragados tempos — roubos, contrabandos, desacatos, extorsões, estupros, toda
a gana arrepiante do crime e do desenfreio. "Foi a epocha dos concubinatos
e das bastardias; epocha de animali-dades sensuaes, de ciúmes ferozes, de
crimes quotidianos" (1). Ao que acrescenta judiciosamente Aristides Maia na
História de Minas: "não havia lei que os obrigasse a viver sujeitos. A
grande abundância de ouro desenvolvera os vícios; a luxúria pompeava com todos
os seus consequentes". O regime matrimonial, nesses despejados dias, era o
da mancebia. E as i amásias, disputavam-nas os mineiros de bacamarte em punho. Como eram poucas, e a posse delas negócio de agudo melindre – "a
violação do thalamo de uma simples concubina punia-se com a morte. E
bastavam leves indicios para ser lavrada tal condemnaçao, que era executada
pelo próprio offendido". Como atalhar tanta morte? De que jeito?
Não havia nas lavras autoridade com força bastante para tal. As vezes, e ver
dade, metiam-se alguns poderosos a fazer justiça. Mas que justiça? Se
acusavam a alguém de furto, por exemplo, o mandão "collocava o
accusado num circulo, que traçava com o seu bastão, e impunha-lhe, sob pena de
morte, que sem sahir dalli, satisfizesse a parte ac-cusadora". E como
não satisfazia (pois só por misericórdia, e isto rarissimamente acontecia, é
que o povo vinha em seu socorro) a cabeça do miserável rolava abaixo com um
golpe de catana. E assim ia, entre aquelas gentes primárias e brutais, a vida
rudíssima das catas. Nada os tolhia. Nada os refreava. Nao ha
ministros, nem justiças que tratem, ou possam tratar do castigo destes crimes
que não são poucos .. . exclamava, aterrorizado, o jesuíta contemporâneo
destes sucessos.

(1) — História Antiga de Minas Gerais.

Mas o madrugar das Gerais, a época fúlgida do ouro, não foi só a época
do crime. Foi também – oh sarcasmo do destino! – a época da fome. Sim, a
época da riqueza e da fome!
Os aventureiros, na alucinação do ouro, alma e corpo voltados só para as catas,
nem sequer tinham tempo de plantar lavouras de mantimentos. Mal se pode crer na
absurda imprevidência! Mas é a verdade. Ninguém queria abrir roças. Ninguém
queria semear. Batear — eis a obsessão única! Lavar areia— eis a ambição
frenética daquelas gentes! Em meio a essa demência, a essa espantosa loucura
por folhetas e grãos, catas e grupiaras, tabuleiros e madres

—  veio a Fome. E a fome, a megera selvagem e ossuda,
trincou, entre os seus dentes rilhantes, aqueles bandos de ricos enlouquecidos.
Que calamidade arrasan-te! Os que, deslumbrados pelo rumor das Gerais, vieram
às minas após as descobertas, aí por 1698, topavam com horror, ao longo da
jornada, espichado num socavão bruto, já podre, o corpo escaveirado dum
caboclo, olhos vidrados, na face contorcida os últimos arreganhos do desespero,
uma das mãos agarrando apertadamente a-s-aeola abarrotada de ouro, a outra,
como por sarcasmo, crispada com fúria entre os restos dum mísero sabugo de
milho já roído. "… não se pôde crer o que padeceram os mineiros por
falta de mantimento

—  contam os velhos papéis — achando-se não poucos mortos
com um sabugo de milho nas mãos". . .

Esses primeiros
lavageiros de ouro, acuados assim pela indigência, tiveram que abandonar as
minas. Os ribeiros
despovoaram-se. Mas, no ano seguinte, já refeitos, tornaram todos de novo às
lavras. E ao tornarem, recomeçou a alucinação maldita. Ouro fatídico! Jorrava
ele em tamanha caudal, tão delirantemente copioso, que não havia mineiro,
naquele entontecimento, que tivesse ânimo bastante para largar a bateia e
agarrar na enxada: ninguém deixou o seu veio; ninguém abriu uma cova! E, de
novo — caso pasmante, caso que só se acredita com os velhos documentos debaixo
dos olhos — ressurgiu em 1700, com as mesmas arrepia-doras cenas, com a mesma
sacolejante ferocidade, aquela mesma Fome, que, pela mesma incúria, arrasara
aquelas mesmas minas em 1698. E então, pela segunda vez, viu-se naquelas
paragens, fuzilantes da riqueza amarela, que — "mineirar não foi possivel
pella grande fome q. os mineiros experimentarão; chegou a tal extremo q. se
aproveitarão dos mais immundos animaes, e, faltando-lhes estes para poderem
sostentar a vida, largarão as minas para os
mattos, com os seos escravos, a sustentarem-se com as fructas agrestes
q. nelles acha-vão" (1).

* * *

(1) – Carta de Artur de Sá ao Rei

 

Ouro e Fome! Ouro e Crimel Mas não bastaram o Crime e
a Fome para a glória infernal do deus satânico. Não bastaram os dois tigres
raiventos atrelados com sanha ao carro triunfal da dura divindade. Foi preciso
mais. Foi preciso a Guerra! Sim, foi preciso que um drama sanguinolento, bravia
tragédia fratricida, cobrisse de cadáveres o chão por onde rolava a quadriga
dourada da majestade sem entranhas. Sim, foi o ouro, com o seu manto de
púrpura, do seu refulgente carro de chamas, quem ateou nas montanhas das Gerais
a guerra dos Emboabas. Paulistas, dum lado; forasteiros de outro. Uns, os
descobridores das minas; outros, os aproveitadores das descobertas. Uns a
defenderem encarniçados o que julgavam legitimamente seu; outros a quererem
abocanhar para si o que custara o trabalho alheio. E entre todos,
dementando-os, a ambição da riqueza. Ferretoados por essa ambição, brutal e
cegante, os dois bandos precipitaram-se odientos um sobre o outro. A vida da
colónia, de súbito estacou paralisada. Não houve mais governo que refreasse as
paixões. O próprio Governador, D. Fernando Mascarenhas, que partira com os seus
dragões para as minas, a fim de pôr termo à luta, teve de lá voltar desacatado,
corrido, com a autoridade em cacos. Senhores e mamelucos, brancos e negros,
bandidos e frades, roceiros e lavageiros, todos se uniram, todos se fundiram
numa só cupidez, e, ensandecidos pelo ouro, avermelharam as catas das Gerais com mortandades
selvagens. Sim, houve assassínios, e combates ferozes, e massacres
perfidíssimos, e traições, e barbaridades, e sangue a rolar por sobre aquele
chão maldito onde fuzilavam as jazidas douradas. Os paulistas tiveram que
ceder. Os emboabas repeliram os conquistadores das terras conquistadas.
Mas que importava isso? Que importava a Guerra? Que importava a Fome?
Que importava o Crime? O rumor daquela imensa riqueza que ia pelas Gerais
aturdia todas as almas. O eco, tão estrondoso, dos que lá enriqueceram,
deslumbrava e desvairava. . . Ah, os que enriqueceram!

OS QUE ENRIQUECERAM

Os que enriqueceram. . . "Foram sem conta os que (narra-o Antonil)
ajuntaram a riqueza de huma; duas e três arrobas de ouro"… Mas o que eram
lá, uma, duas, três arrobas? Ninguém dava importância a essas parcelasinhas.
Ninguém, nas lavras fabulosas, dava importância a essas migalhas atoas, pura
bagatela, em comparação à largueza de arrobas que inúmeros outros paulistas
haviam já amontoado nas catas. Só o velho Borba Gato, dos veeiros de Sabará,
empaio-lara nas suas canastras de couro a enormidade de cinquenta fúlgidas
arrobas e grãos! Quarenta arrobas, e quarenta arrobas em barras amarelas, de
dez onças, Tomaz Ferreira, "comprando muitas roças e occupan-do muytos
escravos nas catas", trouxera das Gerais numa tropa de mulas. É verdade
que, indo cobrar o ouro que lhe deviam alguns bateadores — "houve
entretanto, quem lhe desse por esse desgosto umas balas de chumbo. E he o que
succede não poucas vezes nas minas". Mas que importavam tais balázios? O
principal era enriquecer. E todos enriqueciam. Só um tal Baltasar de Godói, que
vivia de roças e catas, ajuntou, sem alarde, vinte
surrões com vinte arrobas. Amador Bueno da Veiga ajuntou oito. Os Penteados,
sete. Sendo que Francisco Rodrigues Penteado, "nobre e venerando cidadão
de S. Paulo, tendo passado ás minas Geraes, nos primeiros annos depois das
descobertas, se recolheu com grosso cabedal de ouro em pó, que o fundiu todo na
real casa dos quintos, em S. Paulo" (1). Domingos da Silva Bueno, que fora
guarda-mor do Ouro Preto "se estabeleceu nas minas com grande escravatura;
e, com os seus negros, da fertilidade de sua lavra, extrahiu muytas e muytas
arrobas de ouro" (2). E José de-Góis e Morais? Não há quem possa fixar em
número a riqueza assombrosa que catou nas Gerais esse mimoso da fortuna.
Riquíssimo "passou elle (con-la-o Taques) a viver dos interesses que
convidavam as grandezas do ouro, que extrahiam os seus escravos nas Geraes;
nellas se fez tão opulento em cabedaes, que, recolhido á pátria, não houve no
seu tempo quem o cgualasse no tratamento. Teve muitos mulatos e escravos, e tão
claros na cor, que competiam com brancos neste accidente". E isso ainda é
ninharia. Para ter-se verdadeiramente uma ideia da opulência a que chegou este
minerador, basta dizer que, desejando ele fundar com lustre um morgadio para a
sua casa, não vacilou em mandar comprar, em dinheiro sonante, dos sucessores de Martim
Afonso, simplesmente a metade de toda a Capitania de S. Vicente! O negócio
ajustou-se. Partiu para Lisboa uma nau com o ouro do ajuste. E só não se lavrou
a escritura de compra, porque o rei, D. João V, intervindo
no negócio, adquiriu para si a imensa gleba.

(1)       — Taques.
(2)       – Idem.

E como José de
Góis, talvez tão rico como ele, havia em S. Paulo o famoso padre Guilherme Pompeu. Este, que era "o banqueiro dos bandeirantes", na expressão de
Taunay, sem jamais ter ido às minas, recolhia delas, contudo, por intermédio
dos seus feitores, mais ouro de que qualquer outro. "Vivendo entre
grandiosidades (conta-o Taques), com a sua copa de prata que excedia a quarenta
arrobas de peso, a mais primorosa do que nenhum outro nacional" — padre
Pompeu tornou-se, com os ganhos que lhe vinham das Gerais, tão opulento que,
para ayaliar-se a pompa e o tratamento de sua casa, basta dizer que "fazia
elle paramentar cem camas, cada uma com cortinado próprio, lençoes finos de
bretanha, guarnecidos de rendas, e, com isto, uma bacia de prata debaixo de
cada huma das ditas cem camas". . . Mas não eram apenas padres seculares,
como o padre Pompeu, os que levavam ouro nas Gerais. Até religiosos, tomados do
fascínio das riquezas, metiam-se nas catas a batear como negros. Frei José de
Godói, prior de convento, "homem de grande veneração e respeito, passou ás
minas das Geraes donde se recolheu com
grande abundância de capital", É verdade que "o empregou todo nos
ricos ornamentos de tela branca e de ouro que ainda hoje existem no seu
convento de S. Paulo". Mas não houve outro exemplo de tal desapego. Os
mineiros enriquecidos, que eram sem conta, não empregavam os seus capitais
corno frei José, em telas de ouro para igrejas: viviam como nababos,
refulgentemente, gastando o seu ouro de olhos vendados, em superfluidades e
festas. Dionísio da Costa, paulista de Iguape, "eternisou o seu nome
porque teve uma lavra mineral tão grandiosa que delia se retirou um arrátel de
ouro em cada bateada". Pois este Dionísio "foi tão liberal (conta o
linhagista em outro passo) e de animo tão generoso", que só numa
solenidade, das Onze Mil Virgens, em que seu filho Pedro servira de capitão,
"gastou, sosinho, uma arroba de ouro no dia da festa!" Uma
arroba de ouro num só dia! Era de embasbacar as gentes. E embasbacava tanto
que, no seu deslumbramento, S. Paulo inteiro se fez às minas. Nada mais natural
que, seguindo o exemplo de S. Paulo, o Brasil inteiro também se despenhasse ao
encalço do El-Dorado. E foi então que muitos outros, como os paulistas, também
se enriqueceram. Estes muitos outros são os emboabas. Isto é, aqueles reinóis
e aqueles baianos (como os chamam as crónicas) que, aproveitando-se das
descobertas dos piratininganos, também abarrotaram nas Gerais surrões e surrões de riquezas.

* * *

Assim é que Manuel Nunes Viana, o célebre chefe da guerra dos emboabas,
descendo um dia das suas terras da fazenda "Escuro", no Carinhanha,
veio minerar, como as gentes do Tietê, no El-Dorado tentador. Ao arrebentar a
guerra, aquela guerra brutal em que os advenas se propunham a rechassar
injustissimamente das Gerais, como de fato rechassaram, aqueles mesmos
bandeirantes que as descobriram, as desbravaram, as povoaram — ao arrebentar
aquela guerra tão odiosa quanto estúpida, já Manuel Nunes Viana tinha de seu,
catadas nas lavras e fechadas em largos baús encoura-dos, perto de cinquenta
fúlgidas arrobas de ouro quin-tado! E Francisco do Amaral? Esse, toda a gente o
sabia, só em lavar grãos e vender negros, tornou-se ainda mais opulento do que Nunes
Viana: arrebanhou dezenas e dezenas de canastras entupidas de barras. E Bento
do Amaral Coutinho? Alma execranda do conflito, figura sinistra de bandido
"que já mandara capar e matar muytos homens", Bento Amaral ajuntara,
em apenas três anos nada menos do que vinte arrobas bem pesadas. Sebastião
Pereira de Aguilar, esse, com engorda de bois e abertura de grupiaras,
tornara-se com o tempo um verdadeiro, famosíssimo nababo — "o
bahiano mais rico das minas". De todos, porém, de baianos e reinóis,
ninguém chegou a competir em riqueza com esse afortunado, esse extraordinário,
esse incrível Pascoal da Silva Guimarães, cuja vida nas Gerais é pitoresca
página de novela.

Pascoal da Silva
Guimarães! Era um simples cai-xeirinho no Rio. Ao ouvir o estrondo das
descobertas, o pequeno reinol enche de bugigangas e quinquilharias umas caixas
de pau, e, o coração à ventura, rumando a caminho dos Cataguazes, vem tentar
fortuna nas lavras. "… novato, de caixeiro que era, passou a
mascate nas minas, nesses tempos em que se não fazia questão de preço, nem de
ouro. Com isso enrique-ceu-se de improviso". . . Sim,
enriqueceu-se de improviso. E, rico, botou-se logo a comprar veios e a
lavar ouro com os paulistas. Foi quando chegaram os Camargos. Chegaram e
se instalaram numas catas que ficavam nas cercanias de Ouro Preto. Eram uns
"tabuleiros" ao pé do morro. Balearam aí os grãos que puderam.
Mas a lavra era de chão pobre, diziam — e secou logo. Os Camargos abandonaram-na.
E lá foram em busca de ouro mais fácil em outras paragens mais fartas.
Pascoal apossou-se então das catas abandonadas. Mas em vez de se ficar só
naqueles tabuleiros, como fizeram os paulistas, meteu-se a pror curar ouro ao
longo de todo o morro. E eis que, nas suas sondagens, "atinou Paschoal com
um veeiro nas fraldas da montanha.
Atacou-o no logar chamado Lages. Ferida apenas a terra, era tal o deposito de
folhetas ali accumulâdas (conta-o Diogo de Vasconcelos), que de súbito se
esfarelou toda montanha e derramou-se na povoação uma verdadeira avalanche de
ouro!" O morro maravilhoso, desde então, ficou-se chamando — Morro do
Pascoal; e o ouro, que assim tombava esfarelado da serra fofa, foi o que os mineiros
chistosamente cognominaram — Ouro podre.

Os
Camargos, ao terem notícia do prodígio, tornaram às correrias a suas velhas
lavras. Queriam reaver os chãos que haviam abandonado. Mas Pascoal da Silva,
com os seus homens, defendeu acuradamente, de trabuco em punho, a montanha
dourada. Essa defesa custou sangue. Tombou muito reinol. Tombou muito Camargo.
Mas o mascate — caixeirinho de ferro! — não cedeu um só grânulo da riqueza
nababes-ca que topara na lavra dos Camargos.

Foi este
amimado da fortuna que se envolveu jeitosamente, mas com encarniçados
devotamentos, na guerra dos emboabas contra os paulistas. O Conde de Assumar,
que então o conheceu, deixou-nos dele este retrato: — "afectada modéstia,
brandura, cavillação, manha, docilidade em pessoa, de poucas palavras, mas
sempre submissas, com aparentes visos de obediência". Pois este raposão,
que assim aparecera nas minas, com Seu mísero baú de bugigangas, deixou, ao
morrer, depois dos largos
gastos que fez na ajuda da guerra, nada mais e nada menos do que a imensidão de
cem arrobas de ouro! "… cem arrobas de ouro, acrescenta o cronista, sem
contar as suas fazendas, as suas lavras, e os seus escravos".

Foram
esses homens ricos, mas insaciados, paulistas aqui, emboabas acolá, que se
atiraram uns contra outros, sangrentamente, como bandos de queixadas. E por
quê? Por causa daquele mesmo ouro. Por causa daquele ouro fatídico que aflorava
às arrobas do chão deslumbrador das Gerais. Ó, celerada fome de ouro, gritava,
com razão, há quase dois mil anos o épico latino — ó, celerada fome de ouro, a
que desgraças não impeles os peitos mortais!

Auri
sacra fames quid non pectora mortalia cogis?

DEZ
MILHÕES QUATROCENTOS E VINTE MIL CONTOS DE RÉIS!

Frouxissimamente, escassissimamente povoado, era o Brasil no alvorecer
do século XVIII. No entanto, conclamados pela turba das lavras,
havia nas Gerais (conta-o Antonil) a multidão, realmente pasmosa para a época,
de mais de trinta mil lavageiros de ouro. Trinta mil lavageiros de ouro, por
volta de 1700, densamente amontoados, como abelhas zumbidoras, em torno duns
ribeirões rústicos! E esses aventureiros, heterogéneos e brutos, não viviam nas
catas só a batear. Viviam, no seu desespero por enriquecer, a negociar em negócios de toda a laia vender negros,
comprar barras, mascatear, barganhar, fazer dinheiro de qualquer jeito e
por qualquer caminho. "… huns
se occupam em catar, outros em mandar catar, outros em negócios, e outros
vendendo e comprando". E era um delírio! Delírio em que todos, ou quase
todos, enchiam a gorja de ouro. Foram verdadeiramente raros os que nessa idade
metálica, não se tornaram abastados. Com tamanha fartura de dinheiro, a vida
nas Gerais passou a ser, naquele momento, a vida mais cara do mundo. Um alqueire de milho, o cereal mais
vulgar do Brasil, houve época em que custou o despropósito de 40 oitavas! E
40 oitavas, naqueles recuados tempos (em que o governo alugava de Simão de
Toledo Piza, para servir de Paço, todo um bloco de casas pela respeitável
quantia de cinco mil réis) 40 oitavas perfaziam a soma carrancudíssima de
cinquenta e seis mil réis! Era um absurdo. Que importa? Havia coisas
ainda mais absurdas: o feijão. O feijão, sustento diário e básico dos
mamelucos, chegou a atingir, por alqueire, este preço incrível: 80 oitavas!
"40 oitavas custou nesse anno o alqueire de milho; mas o alqueire de
feijão custou, nesse mesmo anno, o dobro dessa quantia" (1). E todos os
demais preços eram assim esmagadores. Por uma galinha, cujo valor em S. Paulo era de 150 réis, paga-va-se nas lavras a exorbitância de quatro mil réis, isto é,
quase trinta vezes mais! Com a farinha de mandioca era ainda pior. O
alqueire dela, em toda a parte, valia 600 réis; nas minas — quarenta e três mil
réis! E um boi? Um boi, que nos povoados custava dois mil réis, o que já
era caro, chegou a custar nas Gerais a enormidade de cento e vinte mil réis:
aquilo que um pai, medianamente abastado, dava de dote à filha no dia da boda!

(1) – Memória de Bento Fernandes.

Por preços tais, diante de carestia tão desmarcada, vender bugigangas e
comezainas nas lavras, foi logo de início das minas, negócio dos melhores e de
lucros mais certos. Por isso "com o vender cousas comestíveis, aguardente,
garapas, ninharias, muytos em breve acumularam quantidade considerável de
ouro". . . Assim é que sem se pejarem do negócio humilde "os homens
de maior cabedal não deixaram de se aproveitar por esse caminho dessa mina á
flor da terra, tendo negras cozinheiras, e mulatas doceiras, e crioulos
taverneiros ocupados nesta rendosissima lavra". Depois, com o crescer da
mineração, já não eram só bugigangas e comezainas. O ouro pagava as maiores
superfluidades. Por isso aqueles arranchamentos brutos, perdidos em selvas
remotas, encheram-se, num contraste berrante, das coisas mais requintadas e
finas que a civilização propiciava. "Tanto que se vio a abundância de ouro
que se tirava, e a largueza com que se pagava tudo o que lá hia, começaram logo
os mercadores a mandar ás minas o melhor e o mais fino que chegava nos navios
do Reino e de outras partes". Neste o melhor, neste o mais fino,
arrolavam-se, pitorescamente, "mil bugiarias de França que lá foram
dar"… Mil bugiarias da França! Quer isso dizer que perfumes, rendas,
pós, requififes, telas caras, mimos, tudo foi ter àquelas paragens selvagens,
pleno sertão, povoadas broncamente
de caboclos chucros, enriquecidos de sopetão. E o ouro dava para tudo! Dava
e sobrava. Os lava-geiros, na estonteante profusão daquela riqueza fácil,
catada aos punhados em gamelas de pau, esbanjavam-na com descomedimentos
perdulários. Não havia capricho, por mais caro, que não satisfizessem de
pronto. "Compravam (por exemplo) hum negro, bom trom-beiro, por mil
cruzados; e huma mulata de máos tratos por dobrado preço, para multiplicar com
ella contínuos e escandalosos peccados". E o jogo? "O ouro
convidou-os a jogar largamente e a gastar em superfluidades quantias
extraordinárias, sem reparo". . . E jogava-se rasgado e caro. Nas
casas-de-truque, à luz fumacenta dos candeeiros de azeite, os caboclos varavam
a noite em roda da mesa do buzo ou carteando jogos de parar. Havia
apostas assombrosas. Essas apostas, que arruinavam num só lanço o ganho
dum ano, andavam de boca em boca, discutidas, deslumbrando, como façanhas
épicas! E o ouro, que jorrava das lavras, pagava tudo isso. Pagava e
sobejava ainda. Para ter-se uma ideia bem concreta do que ia de riqueza
por aqueles sertões, basta dizer-se que, em média, no período culminante do
ouro, as lavras das Gerais produziam, por ano, a soma tremenda de mais de
trezentas arrobas "… o que he certo, porem, he que cada anno se retiram
das lavras mais de trezentas arrobas de ouro",
diz o jesuíta nos seus informes preciosíssimos.

Trezentas
arrobas, ou sejam: 1.228.000 oitavas. Ora, considerando-se a oitava, por essa
época, ao pre-ço médio de 1$400 (a oitava, do século XVIII, oscilava
entre 1$200 a 1$600), temos como resultado que as Gerais davam por ano, em
ouro, quase dois mil contos de réis. Não é enorme, dirão. Sim, não é enorme,
aparentemente. Mas se levarmos em conta, como judiciosamente e tão eruditamente
o demonstra Taunay, que o poder aquisitivo do mil réis, no século XVII e XVIII era, no mínimo, cem vezes maior do que o poder aquisitivo de
hoje, chegamos à conclusão, perfeitamente aceitável, de que as Minas Gerais,
produzindo anualmente as suas trezentas arrobas de ouro, produziram,
anualmente, a imensidade de duzentos mil contos de réis! O que não é
gracejo. . .

Segundo
a avaliação, tão fundamentada e tão conscienciosa, do eminente Calógeras, a
produção global do Brasil (sem contar contrabando, sonegações de quinto,
descaminho de ouro, remessas escrituradas em livros que ainda não apareceram, e
o mais) a produção global do Brasil, durante os primeiros cem anos da
mineração, atingiu à cifra de 1.042.000 quilos de ouro. Vemos assim que,
dando-se à grama o preço de hoje (10$000), o Brasil forneceu em ouro, no século
dezoito (Minas Gerais entrando com 80%), esta quantia que
maravilha: dez milhões quatrocentos e vinte mil contos de réis! Repitamo-lo
com todas as letras:

— Dez milhões quatrocentos e vinte mil contos de réis.

* * *

Diante
desses algarismos, diante dessa caudal de ouro que assim alagou as Gerais, no
correr dos setecentos, não é de espantar que o Brasil inteiro se arremetesse,
com alucinação, ao encalço do El-Dorado sertanejo. Entre essa multidão de gente
que lá foi ter, destaca-se a figura dominadora de Bartolomeu Bueno da Silva. É
o Anhanguera. Lá, nas brenhas dos Cataguazes, o célebre paulista encontra, já
desencadeada, vermelhe-jando em sangue e fogo, atiçada raiventamente por aquele
ouro fatídico, aquela famigerada e execranda luta fratricida: a Guerra dos
Emboabas.

Os paulistas perderam essa partida. Mas o Anhanguera, ao ver os seus
patrícios rechassados das lavras que haviam descoberto, arma com desassombro,
sem o mais leve desânimo, uma nova, poderosa, atrevidíssima bandeira:

— Nada
de sucumbimento, moçada! Os emboa
bas nos roubaram as Gerais? Que é lá isso para paulistas? Toca à busca de novas minas! Não é só nas Gerais que há ouro. A
Serra dos Martírios também está cheia dele. É por isso que eu me vou, com a
minha gente, atacar o sertão dos goiazes à procura de tal serra. E aqui vos
juro, moçada: à fé de Bartolomeu Bueno, custe o que custar, hei de descobrir os
Martírios por esse mundo de Deus!

E o
Anhanguera partiu à busca da Serra dos Martírios.

Datas das
Descobertas

A
fim de não atravancarmos o texto de datas, deixamos para esta página o
elucidarmos os leitores sobre as épocas em que, de acordo com os documentos
mais fidedignos, ocorreram as primeiras descobertas de ouro nas Gerais:

1638 — Garcia Paes descobre o primeiro ouro de
lavagem;

1693 – Padre Faria, Borba Gato e outros
descobrem três corridos de ouro;

1694 – Miguel Garcia descobre o "Ribeirão do
Garcia" (Gualaxo do Sul);

1696 — Salvador de Mendonça descobre o
Ribeirão do Carmo;

1699 — Joáo Lopes
de Lima completa, com Salvador de Mendonça, a descoberta do mesmo
Ribeirão do Carmo;

1699 (ou 1698?) – António Dias de
Oliveira descobre o Ouro Preto;

1699 — Padre Faria completa, com António Dias, a
descoberta de Ouro Preto;

1700 – Borba Gato descobre o ouro de Sabará.

1697-1698 – a grande crise da
fome. 1700-1701 — a segunda crise da fome.

NOTAS

A

Diz Braz Cubas, na sua carta ao Rei, que andou 300 léguas no sertão à
busca de ouro. Levado por essa informação o prof. Derby tenta mostrar que Cubas
foi, já por essa época, até ao sertão de Minas Gerais. Há mesmo quem pense ter
Cubas alcançado o rio Paramerim nos sertóes da Bahia. E isto porque, na carta
de Barbosa Leal ao Conde de Sabugosa, depara-se esta passagem: "Não ha
noticia de que por ally andace outro descobridor; só ha tradição que hum
Paulista, fulano de Cubas, chegara ao Paramerim, adonde descobrira hum grande
haver, voltando para S. Paulo"… Tal trecho, contudo, não é lá muito
probante, pois, como se sabe, houve outros vários Cubas que, por essa época,
andaram pelo sertão. Demais, o fato de Luiz Martins, o companheiro de Cubas, ao
voltar ao sertão buscar o oura que este encontrara, ter somente pesquisado os
arredores de Santos, num raio de apenas trinta léguas, dá a entender que Cubas
achara o seu ouro por aquela mesma região e não pelos confins de Minas e da
Bahia, As 300 léguas de Cubas talvez não passem de 30. É este, hoje. o parecer
dos mais abalizados bandeirógrafos.

B


quem julgue ter-se descoberto ouro, no norte, em 1551, antes de Martim de
Carvalho, dizendo que as amostras desse ouro, segundo carta de Tomé de Sousa,
foram enviadas ao então Príncipe regente por um tal António Cardoso. Parece não
ser exato. A carta de Tomé de Sousa nem sequer se refere a ouro. Fala apenas, e
vagamente, em metal. Ei-la: "António Cardoso escreveu a Vossa Alteza
acerca das amostras do rnetall que mandou de pernambuquo e se perderão no recife"…

C

Eleodoro
Eobanus, segundo uma nota muito erudita de Basílio Magalhães, em "Expansão
Geográfica", era alemão, filho do poeta e historiador Helius Eobanus
Essus e casou-se no Brasil com D. Maria de Sousa, filha de João Pereira de Sousa, o
Botafogo, alcunha que ainda hoje vive e o relembra em conhecido bairro ào
Rio de janeiro.

D

Com a bandeira de Jerónimo LeitSo partiram Diogo Unhatc, paulista, e
JoSo de Abreu, também paulista, que foram os dois mais antigos povoadores de
Paranaguá.

E

Este John Withall aqui esteve em S. Vicente onde a vida, ao que ressalta de suas cartas, lhe correu muitíssimo risonha. Tudo lhe saia à medida dos
desejos. Nem só a teria era deleitosa, muito boa de se viver, como até
choviam-lhe ofertas de casamentos ricos. Eis, a propósito, uma das cartas deste
saboroso bretão, perdido nestes fins da America, escrita no inglês rude da
época, que vem na Coleção Hakluyt:

"Worshipfull
sir, and welbeloued friend M. Staper. I haue me most heartily commended
unto you, wishing your health euen as mine owne. These- fcw words may be to let
you understand, that whereas Iwrote unte you not many dayes past by way of
Lissabon, howe that I determined to bee with you very shortly, it is
in this countrey offered me to marry, and make my choice into three or foure:
so that I am about three daycs agoe consorted with an Italian
gentleman to marry with his daughter within these foure dayes. This my friend
and father in law Signor Joffo Dore is bom in the citie of Genua in Italy; his
kindred is wel knowen amongst the Italians in Londón also hee hath but onely
this childe which is the daughter, which hee hath though better bestowed upon
me then on any Portugal ín ali the countrey, and doeth give with her in
marriage to me part of an Ingenio which he hath, that doeth makc every vcare a
thoirand roves of sugar. This my marriage will do worth to me two thousand
duckets little more or lesse. Also Signor Joffo Dore my father in law doeth
intende put into my handes the whole Ingenio with sixtie or seuentie slaves,
and there of to make me factor for us both. I give my
living Lord thankes for placing me in such honour and plentifulnesse of ali
things".

F

António
Knivet, um dos que estiveram no assalto de Cavendish. deixou a relaçSo dos
sucessos. Vide Rev. Inst. Hist. 41 (l.a parte). Quanto ao lugar Mutinga,
há várias interpretações, que Basílio Magalhães assim
resume: Mutinga, isto é, ribeirão da Amaitinga, segundo o Dr. F. L. Pereira
Leite garganta do Tutinga ou Itutinga, conforme o Dr. Orvilç Derby;
Piratininga, consoante com o Dr. J. H. Duarte Pereira.

G

Sabaraçu (como tio engenhosamente o explicou o Sr. Teodoro Sampaio)
provem do vocábulo indígena Itaberá — oçu, isto é, pedra-grande–quc-rcsplandcce..
.Itaberá — ocu corrompeu-se nos lábios europeus em Tabcrabuçu (como o escreve
Monsenhor Pizarro) ou, mais comumente, como vem nos livros, em
Sabarabuçu.

H

É realmente um pouco extraordinário constatar-se que no Estado do
Paraná, e no litoral paulista, andassem os bandeirantes catando bastante ouro c
que hoje não mais exista por lá sombra de mineração. No entanto a notícia
desses ouros vem claramente fixada em muito* documento velho. Pedro Taque.s,
entre’outros, na sua "História da Capitania de S. Vicente" diz:

— "Vila de Parnaguá………………………..
Tem esta Villa minas de ouro

de lavagem, e
tão antigas que já em 28 de Novembro de 1651 ordenou ei-Rei D. Joio IV. ao Dr. Luiz Sallema de Carvalho, desembargador da Rellação da Bahia, que
se passasse ao Sul para fazer examinar as minas do descobrimento do Capitão
Lcodoro Ébano".

— "Villa de Curitiba…………………….
Esta Villa de Curitiba, serra acima, e sertão
de Parnaguá, tem minas de ouro de lavagem, tão antigas, etc…"

— "Villa de Iguapc …………………… A
esta Villa estão sujeitas as minas de ouro de
lavagem chamadas da Ribeira, c tão antigas que já em 1690 renderam de quintos,
com as de Parnaguá, mil duzentos e setenta e nove oitavas".

I

Três
versões, de três autores que fazem fé, correm sobre a descoberta desse ouro.
Uma é de Antonil dizendo que certo mulato, que já havia estado nas minas de
Parnaguá e Curitiba, indo ao sertão, numa bandeira de paulistas, buscar índios,
o achara "no serro do Tripuhy, no ribeiro que agora chamam de Ouro Preto".
Outra é a de Rebello Perdigão dizendo que "os primeiros sertanistas de S.
Paulo informam que um Duarte Lopes fazendo experiência num ribeiro que desagua
no Guairanga, com
tuna batea tirou ouro"… È outra ainda, a do Coronel Bento Fernandes, diz
que António Rodrigues Arzão, ao fazer uma entrada no ria da Casca, em busca de
índios, "tocado da semelhança que notou entre os cascalhos desta região e
os cascalhos de Parnaguá e Coritiba" meteu-se a explorar aquela curiosa
região — "obtendo amostras de ouro esperançosas".

Estudadas com cuidado essas narrativas, parece que as três, no fundo,
contam o mesmo fato com variantes de pormenores e alguma confusão de nomes,
confusão natural em quem narra acontecimentos por ouvir dizer, e, no caso, sem
maior importância. Creio estar com a inteira verdade o escrupuloso Basílio
Magalhães quando, perfilhando os argumentos de Calógeras, diz: "Quiçá o
mulato da narração do jesuíta Antonil (posto á margem o anachronismo quanto a
Arthur de Sá) talvez o mesmo Duarte Lopes das informações de José Rebello
Perdigão, fossem uma e única pessoa e não passasse esta de um companheiro de
António Rodrigues Arzão, o qual, segundo a noticia do Coronel Bento Fernandes
Furtado de Mendonça, conhecia os cascalhos auríferos de Coritiba e Parnaguá".
Perfilhando tal opinião, que se coaduna com lógica às narrativas, eu a
desenvolvi tal como o leitor viu no capítulo.

J

Diogo de Vasconcelos é quem conta haver Bucno achado o primeiro ouro de
Pitanguí. É verdade que, nas fontes que tive à mão, não encontrei a confirmação
do episódio. Mas estou certo de que o ilustre historiador mineiro,
escrevendo-o, como escreveu, com precisão e minúcias, forçosamente o hauriu
em algum velho documento probante.

K

Esse
trecho citado foi extraído de uma "carta-patente" datada de outubro
de 1698. A propósito dessa carta diz Derby: "nota-se neste documento a
preocupação com as minas de prata e de esmeraldas e com a famosa serra do
Sabarabussú. A fama desta serra do Sabarabussú já se tinha espalhado ate na
Europa, tanto que ela vem representada com o nome de serra do Sarabassú, (e em
posição extremamente próxima á serra da Canastra) no mapa de
Coronelli".

L

Além
dos nomes que vêm citados nestas páginas, e, talvez de mais alguns outros que
andam esparsos pelas memórias e livros da época, há a notar-se esta lista de
descobridores paulistas que povoaram Minas Gerais e que Basílio de Magalhães
enumera na "Expansão Geográfica".

"Domingos
Rodrigues da Fonseca descobriu o ribeiro do Campo (hoje Villa Nova de Lima);
Leonardo Nardes revelou as minas do Caeté, onde os dois irmãos Guerra — António
c João Leme — moradores em Santos, fundaram depois um arraial; António Soares
Ferreira, acompanhado de vários outros paulistas, estabeleceu-se no ribeirão de
Santo António de Bomfiin, onde elle Manuel Correia de Arzáo, Lourenço Carlos
Mascarenhas e Balthazar Leme de Morais Navarro, repartiram entre si as minas do
Serro Frio; Gaspar Soares achou o morro a que ligou o seu nome, Salvador de
Faria Albernaz encontrou as ricas jazidas auríferas do Inficionado (hoje Santa
Rita Durão): os Penteados estabeleceiam-se na Roça Grande; os Raposos no
ribeiro do seu apelido: João Leite da Silva Ortiz,
na Serra do Curral de El-Rei. Bartholomeu Bueno, o Anlian-guera, em S. João do Pará; António Rodrigues do Prado em Pitanguy: Mathcus Leme no Itatiauçu; Domingos
Borges descobriu as Catas Altas; .António Bueno o ribeiro de Santa Barbava,
núcleo da cidade do mesmo nome; Tomé Portes dei Rey e António Garcia da Cunha
assentaram-se ás margens do rio das Mortes (Lourenço da Costa e Manoel João de
Barcellos também ahi descobriram ouro) onde surgiram S. João dei Rey e S. José
dcl Rey (esta hoje chamada Tiradentcs, embora o heroc da Inconfidência se
dissesse filho daquela outra cidade). E João de Siqueira Affonso. descobridor
das minas de Piranga e de S. João dei Rey, em 1706. encenou a primeira fase do
grande cyclo de ouro, quando em 170G, descobriu, nas faldas da
Mantiqueira, as minas de Aymuoca".

M

A
respeito da figura, ainda não devidamente estudada de D. Francisco de Sousa,
escreveu o nosso grande Afonso de Taunay (Hist. Geral das Bandeiras Paulistas,
vol. l.°), à guisa de esboço biográfico, uma bela página justiçadora.
Dela destacamos os seguintes tópicos:

"Em
fins do século XVI opera-se notável transformação na vida
paulistana. Em grande parte a determina a ação de um homem ilustre: D.
Francisco de Sousa, sétimo Governador Geral do Brasil, inteligência superior
que, pelo espaço de onze anos, dirige os destinos da colónia (1591-1602). É
muito graças a ele que os paulistas se projetain pelo sertão adentro. Cabe-lhc
papel capital na história da expansão geográfica do Brasil. É o verdadeiro
promotor do bandeirismo que deixa de ser sincopado e transforma-se num esforço
persistente e contínuo,

Obsecado
da mineração, certo de descobrir minas ricas, promove a primeira devassa
metódica dos sertOes, com o ordenar a internação, em 1601, da entrada de André
de Leão, cuja importância nunca é demais encarecer, observa Basílio de
Magalhães, com toda a justiça, passo inicial dos paulistas em relação a
Sabarabuçu, aos Cataguazes, a Goiás e Mato-Grosso. Em 1602 fêz partir
segunda grande expedição, a bandeira de Nicolau Barreto. Tenta fundar um centro
siderúrgico em Ipanema c outro em Ibirapueira (Santo Amaro).

À capitania vicentina prestou o Senhor de Beringel os mais assinalados
serviços, sob todos os pontos de vista. Verificando quanto ainda era rudimentar
o seu mecanismo administrativo entendeu logo dar-lhe outra ampliação. De S.
Paulo fez como que fossem a capital de fato da Capitania, ai instalou a sede do
foro vicentino, instituiu mamposteiro de cativos, avaliador, partidor e
medidor, avaliador da fazenda dos órfãos e repartidor de terras, procurador e
escrivão dos índios, capitães das aldeias, escrivão do juízo dos índios,
escrivão do campo, capitão da gente de cavalo, escrivão da ouvidoria, das
execuções, armou cavaleiros, pasfou cartas de nobreza e de perdão: foi realmente
enfim o criador do aparelhamento administrativo e forense de S. Paulo.

Fossem
quais fossem os defeitos que lhe assacam alguns escritores, duas coisas se não
podem obscurecer: a sua extraordinária influência sobre o bandeirismo paulista
e as tentativas para a organizarão social dos índios cativados. É natural,
pois, que os historiadores se detenham ante a sua personalidade positivamente
fora do comum, procurando pôr em destaque esta dupla feição de agente notável
do alargamento territorial do Brasil e de defensor dos princípios civilizados
do respeito do forte pelo fraco".

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