Finalidade do Mundo – Farias Brito – vol. 1 (antologia)

A FINALIDADE DO MUNDO

Raimundo de Farias Brito (1862-1917)

Fonte: Farias Brito
Uma antologia organizada por Gina Magnavita Galeffi. GRD-INL/MEC (1979)

1.° Volume

PREFÁCIO

Publicando o
primeiro volume da Finalidade do mundo, devo observar que por tal modo
me absorve o pensamento desta obra que com razão posso dizer: tudo em minha
vida está subordinado a esse pensamento. É assim que, tendo em agosto de 1889
partido do Ceará com destino ao Rio de Janeiro, na resolução de fixar
definitivamente ali minha residência, assim fazia unicamente por ter o intuito
de matricular-me na Escola Politécnica, não porque pretendesse tirar uma carta
de engenheiro, mas somente porque desejava a fundo a parte geral do curso de
engenharia, e isto como preparação para dar o maior desenvolvimento possível a
algumas das questões de que pretendo ocupar-me que têm relação direta com a
matemática, especialmente com a mecânica.

Infelizmente não me
foi possível manter-me no Rio, e tendo voltado para o Ceará, já hoje mal posso
tirar, do tempo destinado às ocupações com que nos é dado vencer as
dificuldades ordinárias da vida, uma parte bem diminuta para estudo e trabalhos
de redação que demandam perseverante meditação e longa paciência. Não obstante,
já escrevi uma grande parte e tenho fé que hei de completar a obra.

Esta compor-se-á de três partes distribuídas na seguinte ordem:

Primeira parte: A filosofia
como atividade permanente do espírito humano.

Segunda
parte: Os dois grandes métodos da filosofia moderna.

Terceira
parte: Teoria da finalidade.

Sai neste primeiro
volume a primeira parte. A segunda está já quase toda escrita e poderá ser
publicada ainda este ano ou no começo do ano vindouro, constituindo a matéria
do segundo volume.

Quanto à terceira
parte, que é a mais importante por ser aquela em que propriamente me ocupo da
concepção fundamental de que se originou a idéia da obra, conquanto já estejam
coordenados todos os apontamentos necessários, ainda não foi redigida, pelo que
só um pouco mais tarde poderá ser publicada.

Cada uma destas três
partes constitui, debaixo de certo ponto de vista, uma obra distinta, se bem
que tudo esteja subordinado a um mesmo método e a uma só idéia central, sendo
que todas ss questões, de que trato, não são propriamente questões distintas,
mas apenas aspectos diferentes de uma só e mesma questão fundamental. E nesta
primeira obra desenvolvo a teoria; em outra, que não sei se terei forças para levar a efeito, tratarei da
prática, tendo em vista particularmente as leis da conduta e os princípios que
servem de base à organização da sociedade. Tudo, porém, obedece a um mesmo
plano e tem por fim um só e mesmo objetivo.

Na exposição que
faço, muitas são as doutrinas que preciso de resumir e analisar, algumas das
quais contrárias aos princípios que defendo; mas sempre que me refiro a teorias
alheias, reporto-me quanto possível aos próprios termos do autor, de modo a que
não possa haver dúvida quanto à fidelidade da exposição.

Junho
de 1895.

 

INTRODUÇÃO (¹)

Filosofar é aprender a
morrer: são palavras de Sócrates. E começando o presente trabalho por esta
luminosa idéia do mais puro dos pensadores antigos, não tenho em vista outra coisa,
senão tornar desde logo bem patente quanto nos deve preocupar o nada da
existência humana. Vivemos todos como se fossemos imortais. Entretanto a morte
é a única solução verdadeira do problema da vida. É assim que nessa atividade
se desenrola sob mil formas: pensamos e trabalhamos e nosso pensamento e nosso
trabalho constituem uma luta constante, uma reação permanente contra
inumeráveis influências externas e internas; mas ao mesmo tempo que vamos pelo
esforço de cada dia acumulando elementos para o combate da vida, vamos do mesmo
modo caminhando invariavelmente para a morte.

Em nossas relações
ordinárias, no exercício comum de nossa atividade, vivemos sempre como se nunca
tivéssemos de morrer, consideramos as coisas como se nossa vida tivesse de ser
eterna; mas nisto somos vítimas de uma ilusão permanente: e consultando a
experiência, interrogando a realidade brutal que a todos irresistivelmente se
impõe, o que há de incontestável sobre a vida é isto: a vida é um combate de
que só se pode sair vencido, porque toda a vida termina inevitavelmente na
morte.

Neste caso para que viver?
Para que vir ao mundo, contemplá-lo um momento e desaparecer na voragem do
tempo, sem saber o que somos, nem a que viemos, ignorando a significação de
tudo o que nos cerca, desconhecendo o papel que representamos, arrastados pela
corrente inexorável da fatalidade, sujeitos à miséria e à dor?

 

(1) pp. 13-17

 

A natureza é
maravilhosamente imponente e em sua opulência inesgotável sentimos que se
desdobra com majestade infinita por cima de nossas cabeças: mas tanto maior se
revela quanto mais inflexível se mostra, cruel para com os fracos, ilusória
contra os fortes, terrível contra todos. O espírito sente-se amesquinhado em contemplá-la. Cada estrela é um sol: cada constelação, um sistema de estrelas. O espaço e o
tempo constituem o cenário ilimitado em que se representa o drama universal, o
oceano em que se move o mundo; e é pelo atrito passageiro das forças neste
oceano eternamente em jogo, que se desenvolve o ser vivo, que nasce o homem;
mas unicamente para ser logo em seguida esmagado.

Quando se diz de um corpo
que se move: — ele vive —, logo se pode acrescentar: — morrerá. Morte — eis a
verdade suprema. Morte — eis a palavra terrível com que facilmente se poderá
abater o orgulho dos poderosos do mundo, indo tudo fatalmente terminar na
lúgubre sentença: — Vaidade das vaidades, tudo vaidade. Omme vivum in
pulverem.

Além disto, a vida,
mesmo libertando-a da morte, será porventura uma coisa desejável, se é que
semelhante libertação pode ser imaginada?

Consultemos todos aqueles
que vivem, interroguemos todos aqueles que sofrem: ouçamos a linguagem dos
leprosos, as queixas da miséria, as blasfémias do crime. Em que consiste a
vida? Ninguém vacilará em reconhecê-lo: viver é ser escravo das necessidades, é
desejar, é sofrer. O primeiro grito da criança que nasce, é um grito de dor; e
toda a vida, mesmo a mais risonha e venturosa, é uma tragédia. Todo o gozo é
ilusório. É assim que se esforçam todos por conseguir a felicidade; mas a
felicidade não é senão um sonho, sendo comprovada a cada instante pela
experiência vulgsr a palavra de Voltaire, quando afirma: "A dor é que é
real", acrescentando em confirmação: "Há oitenta anos a experimento e
não sei outra coisa senão resignar-me e dizer que as moscas nasceram para ser
comidas pelas aranhas e os homens para ser devorados pelas aflições". Ê o
testemunho de um homem que se achava no último período da vida e que, aliás,
não pode ser incluído no número dos infelizes, tendo sido mesmo em vida uma das
glórias de sua nação, respeitado e adorado pelos contemporâneos. E todos, se
quiserem dizer o que sentem, hão de falar do mesmo modo. O mais insignificante
prazer não se consegue sem esforço e para muitos o prazer, fato negativo, não é
senão a ausência da dor. E quantas vezes para uma ligeira volúpia de uns não se
torna necessária a morte de outros? "Comparai", diz Schopenhauer,
"os sofrimentos do animal comido com o prazer do animal que o come".
Além disto o prazer passa rapidamente e de sua passagem nada mais fica além de
uma recordação muitas vezes dolorosa; e a dor tudo destrói e aniquila. Mille
piacer non vagliono un tormento,
diz Petrarca.

 

"Há amargura
até no meio da felicidade", diz Hettinger. "Toda a biografia é uma
patografia", diz Schopenhauer, cuja tese fundamental pode assim ser
formulada: — A vida é sofrimento e a vida humana é a mais dolorosa forma da
vida.

II (¹)

Hartmann, o célebre
autor da Filosofia do inconsciente, reduz a uma forma ainda mais
sistemática o pessimismo de Schopenhauer. Três ilusões servem, segundo ele, de
base a todos os nossos sonhos de felicidade, cada uma das quais teve a sua
época de predomínio, sucedendo a todas o desgosto da vida, a decepção do
não-ser. A primeira corresponde ao período medieval: a terceira, à época
presente .

III (²)

Tal é a doutrina dos dois
principais representantes do pessimismo moderno. É desoladora e terrível.
Entretanto, se estudarmos a sociedade no que ela tem de falso em suas
grandezas, ilusório em suas promessas, no que ela tem de doloroso em tudo: se
observarmos a miséria sob todas as suas formas; se penetrarmos nos hospitais,
nas prisões, nos lazaretos; se atendermos às queixas de todos aqueles que
sofrem, veremos que essa doutrina não é nem exagerada, nem falsa, e até podemos
dizer que o quadro de Schopenhauer fica ainda muito pálido quando comparado aos
horrores da realidade.

(1) pp. 17-(2) pp. 19-22

 

E da observação rigorosa da
realidade, pondo de parte o sonho e encarando friamente a verdade das coisas, o
que se pode deduzir é o seguinte: Tudo o que se supõe que concorre para a
felicidade é ilusório. Um véu de dor enche o mundo, uma desgraça eterna é a
história, esse "escândalo permanente", na frase de Re-nan. Escravcs
do desconhecido, ignoramos em absoluto a natureza da força que nos rege: e das
atrocidades do despotismo, das incertezas da fatalidade não há recurso, senão
para o nada. Vivemos na dor e morreremos — eis a verdade suprema: de maneira
que não semente a vida é por suas consequências uma tremenda decepção, porque
toda a vida tem por desenlace a morte, como é ao mesmo tempo e em si mesma um mal irreparável, porque tem por essência a
dor e viver é sempre e em toda a parte "esgotar uma série de grandes e
pequenas desgraças".

Não obstante, no mundo que é
tão grande, o que nos parece maior é a vida. Pode-se mesmo dizer que a vida é a
finalidade do mundo, pois, é para a vida que tende a evolução natural no
desenvolvimento indefinido do cosmos, sendo que vem primeiro o mecanismo,
depois a vegetação e por fim a animalidade e o homem, E é no ser vivo, é no
homem que se manifesta o fenómeno fundamental da consciência, e como produto da
consciência a ação com suas condições formais — o sentimento e o conhecimento.

Como explicar em tal
caso esta contradição radical no que há de mais elevado e profundo? A vida é o
que há de mais grandioso na natureza visível: a vida é uma ilusão permanente. A
vida é a suprema manifestação da potência criadora e artística da natureza: a
vida é o desespero e a morte. A vida é tudo: a vida é nada.

Da morte de Sócrates
nos vem para esses graves problemas uma luz admirável. Basta, para fazê-lo
sentir, repetir aqui as palavras com que ele se dirigiu ao tribunal que o
condenou à morte,

São estas:

"Sou septuagenário e é
esta a primeira vez a que compareço perante um tribunal. Sou, pois,
absolutamente ignorante da linguagem artificiosa dos meus adversários:
falar-vos-ei, no entanto, em obediência à lei, como tantas vezes fiz nas
praças, à porta das lojas e em outros lugares. Os meus acusadores imputaram-me
o crime de querer investigar coisas que estão acima e abaixo de nós, de tornar
boas as coisas más e ensinar aos outros a fazer o mesmo. E contudo, é certo que
nada sei de tudo isso, e pois que sempre falei em público, digam os meus
ouvintes se alguma vez professei coisa semelhante e se os mancebos que me
escutaram, chegados à idade viril, não continuaram a estimar-me. O meu saber é
todo humano, e se o oráculo me proclamou o mais sábio é tão somente porque sei
que nada sei. Por dizê-lo incorri na inimizade dos filósofos, dos artistas e
dos poetas que presumem saber muito. A mocidade que me ouve aprende a fazer
pouco caso de sua suposta ciência: eis por que dizem que a corrompo, eis por
que concitaram contra mim Melitos, Anitos e Licon, que me argúem por corromper
a juventude, não acreditar nos deuses e inventar deuses falsos".

* * *

Podendo escolher o
castigo fazendo-se condenar a uma multa, recusou este meio para não parecer que
se confessava culpado. Irremediavelmente perdido, aconselharam-lhe seus amigos
que fugisse e para isto lhe ofereceram os meios. Recusou-se dizendo:
"Não conheço lugar nenhum do mundo em que não se morra." –

Ouvindo a
condenação, exclamou: "A natureza tinha me condenado antes dos meus
juízes". E voltando-se para estes acrescentou: "Tenho esperanças de
que lucrarei em ter sido condenado à morte, porque de duas uma: ou tudo se
acaba com a morte ou com ela começa outra vida. Se tudo se acaba, há de ser tão
agradável descansar de todo, sem sonhos dos tão numerosos trabalhos da vida! Se
há outra existência, que inefável prazer não terei em encontrar-me com os
antigos sábios, reunindo-me a tantas outras vítimas de julgamentos iníquos e
uma vez livre das vossas mãos comparecendo perante aqueles que com melhor
direito se chamam juízes! Por isto não me fica no espírito nenhum ressentimento,
nem de vós, nem de meus acusadores, embora a sua intenção fosse fazer-me mal. É
tempo de nos separarmos, eu para morrer e vós para viverdes. De quem é o melhor
quinhão? Só Deus o sabe."

IV(¹)

Era preciso lembrar
o memorável exemplo de Sócrates, depois de haver citado Schopenhauer e
Hartmann, para dar desde logo uma idéia do espírito que preside à concepção
deste livro. Ficam assim em face uma da outra duas doutrinas opostas: uma que,
partindo da consideração do sofrimento, afirma que a vida é uma desgraça
irremediável e leva à moral de desespero, sustentando que a finalidade é o
nada; outra que, reconhecendo a existência da dor como um fato universal,
ensina-nos em todo o caso a ser fortes, colocando na resignação o princípio da
sabedoria e sustentando que a morte pode ser e deve ser explicada como uma
libertação. É verdade que Sócrates não oferece nenhuma teoria sobre os destinos
da morte, não resolve nem poderia resolver o problema da finalidade. Mas
formulando a alternativa de que com a morte tudo se acaba ou ao contrário com
ela tudo começa, deduz que em qualquer destas hipóteses não se pode afirmar que
a morte seja um mal. Nada dá como certo, nada resolve, reconhecendo que só se
pode observar a vida até o momento da morte, tudo escapando daí por diante aos
nossos processos de investigação. Mas quando põe em dúvida que a vida seja
preferível à morte e faz entrever a crença de que é com a morte que começa o
verdadeiro problema da vida, levanta por assim dizer uma ponta, do
véu, fazendo brilhar um raio de luz na profundeza do abismo.

(1) pp. 22-25

 

Depois da morte — nada. Pelo menos nada se
pode conhecer e o mais que se pode fazer são conjeturas mais ou menos
razoáveis.

O que resta, pois, do ser
vivo, depois da morte? Pergunta milhões de vezes renovada e nunca respondida.

É certo que nosso organismo,
no curso normal de seu desenvolvimento, é a sede de uma dupla ordem de
manifestações: partem dele fenómenos físicos e partem dele fenómenos psíquicos:
é corpo e como tal se move na conformidade das leis reguladoras da circulação
da matéria: é espírito, quer dizer, é sede de outra ordem de fenómenos que não
estão subordinados às leis do movimento, que são independentes do espaço e do
tempo, e como tal sente e quer.

Há, porém, um abismo
entre os fenómenos mecânicos e os fenómenos de consciência: mecanismo e
consciência são princípios irredutíveis.

Para Sócrates toda a
questão da vida consiste em morrer sem ter culpa. Pouco importa que a vida seja
um bem ou seja um mal; pouco importa que com a morte tudo se acabe. O que é
essencial é viver bem: quer dizer: viver conforme as inspirações da
consciência, viver conforme a lei moral. Nestas condições só o crime é um mal,
só o crime merece ser odiado: e para aquele que odeia o crime, para aquele cujo
pensamento nunca se volta para o mal e cujos lábios nunca se abriram para dizer
uma inverdade, a própria morte é um bem, porque só há mal na morte quando se
morre culpado.

O que é verdade é
que no meio da dúvida profunda que nos domina, no meio da incerteza geral que
nos rodeia, só uma coisa dá força: a virtude. É o que não é necessário provar
porque sente-se, e para mostrá-lo nada mais é preciso do que apelar para a
consciência de cada um. Primeiramente tudo é claro para as consciências limpas.
Depois nada excede a coragem que dá a convicção do cumprimento do dever, pelo
que o justo nada teme. A virtude traz o equilíbrio e a força, o vigor e a
serenidade: é a inteira consciência de si mesmo, a harmonia subjetiva, a luz no
mundo moral.

 

Por isto mesmo é
forte o justo, por isto mesmo é inalterável o "homem que segue o caminho
do dever: e até, debaixo de certo ponto de vista, pode-se dizer que não está
sujeito ao sofrimento, porque mesmo quando o despotismo o abate, mesmo quando o
esmaga a tirania, está bem porque sente que nada poderá destruir a
independência de sua alma.

 

A uma geração sucede outra geração e os
que se vão, vão-se de certo modo sem deixar lugar vago: é uma onda que desce e
a que sucede imediatamente outra onda que sobe: mas esta, por sua vez, há de descer.
De modo que tudo passa, tudo termina e é a isto que se reduz a verdade suprema
no evoluir perpétuo dá vida. E por este modo gastamos tanta atividade,
empregamos tantos esforços por conseguir fortuna, posição, grandeza: mas tudo
isto o que vale? Nada, porque tudo isto termina no cemitério. Entre outras
tentativas há quem já tenha procurado explicar a morte considerando-a em
analogia com o sono.

E quando a ciência
humana é assim tão fraca e mesquinha, sucede que, para explicar a vida, ou
antes, para resolver o problema da morte, não basta estudar o ser vivo, é
preciso estudar a natureza inteira, é preciso compreender a significação do
mundo. Ora, o mundo é indefinível e incompreensível. Daí o medo da morte,
resultante unicamente da ignorância de sua significação verdadeira: daí também
a importância de seu estudo, que se confunde com o estudo da natureza mesma
considerada em sua multiplicidade e extensão infinita.

Também Schopenhauer afirma que a
presciência da morte é o começo das filosofias e das religiões. E não é senão
no mesmo sentido que deve ser interpretado o pensamento de que filosofar é
aprender a morrer. É que a filosofia é uma concepção do mundo, uma teoria que
dá a explicação de cada coisa no conjunto da fenomenalidade universal. E é só
quando nos elevamos a esse ponto de vista, isto é, quando se trata de
estabelecer uma fórmula capaz de estender-se à totalidade das coisas, que
verdadeiramente podemos interpretar o papel que representa
o homem no mundo, de modo a poder
tentar uma explicação racional da vida e da morte, do prazer e da dor. E sem
que tenha sido estabelecida a
doutrina destes grandes fatos, não tem fundamento estável a ciência moral, como
não pode, passando da teoria para a prática, haver noção segura do direito e do
dever.

É o que sucede presentemente
no mundo, ligando-se a isto sem dúvida o estado de perturbação e anarquia a que
se acham reduzidas todas as sociedades modernas.

Além disto, pela observação
experimental verifica-se que a natureza é inexorável, sendo imutáveis e eternas
as leis reguladoras de sua evolução indefinida. Um mecanismo inflexível nos
envolve, sendo patente e decisivo o contraste que se estabelece entre a nossa insignificância
e fraqueza, por um lado, e a omnipotência e majestade da natureza, por outro. Mas
nada podendo modificar-se na ordem das coisas, a consequência é que devemos resignarmos,
compreendendo-se então como é que se pede afirmar que a dor não é um mal, que a
morte não é um aniquilamento. A esse ponto assiste-se com serenidade
inalterável a todos os acontecimentos exteriores, por mais terríveis, por mais
desoladores que sejam: e justifica-se o pensamento profundo de Tobias Barreto,
quando disse ao expirar: "Tudo tem a sua lógica, até mesmo a morte".
E é então que os destinos da humanidade identificam-se com os destinos da
natureza, e o homem, de verme da terra, transforma-se em mecanismo intelectual
refletindo a imagem do mundo.

VI (¹)

É fácil agora fazer
sentir qual o intuito deste livro. O homem com todas as suas dúvidas e
sofrimentos, a sociedade cem todas as suas aspirações e trabalhos, os governos
em luta contra as revoluções, as religiões em luta contra a anarquia, nada tem
segurança, nada tem estabilidade: e a vida da humanidade em geral pode ser
reduzida a esta única fórmula: incerteza e fragilidade. Entretanto,
considerando as coisas por outra face, tudo é ao mesmo tempo vaidade, ilusão,
orgulho. Não há, porém, dificuldade em mostrar de que lado está a aparência e
de que lado está a realidade.

(1) pp. 28-33 16

 

Pois bem: considerando a
dolorosa contingência a que estão sujeitas todas as nossas condições existenciais,
quanto há de ilusório em todas as nossas aspirações, a quanta desgraça estamos
sujeitos todos nós que vivemos, .condenados irremediavelmente à morte:
considerando o nada de todas as grandezas humanas, quero indagar da
significação real desta natureza imensa que nos cerca, quero indagar que
relação tem a minha existência com a existência universal, quero, numa palavra,
interrogar os segredos da consciência de modo a explicar a cada um a
necessidade em que está de compreender o papel que representa no mundo. Tudo possa,
tudo se aniquila. Pois bem: eu quero saber se do que passa e se aniquila,
alguma coisa fica em virtude da qual se possa ter amor ao que já não existe ou
deixará de existir: se do que passa e se aniquila alguma coisa fica que não há
de passar, nem aniquilar-se: quero estudar esta ciência incomparável de que
falava Sócrates: quero ensinar aos que padecem como é que se pode esperar com
serenidade o desenlace da morte: quero dirigir aos pequenos e humildes palavras
de conforto: quero levantar contra os tiranos a espada da justiça: quero, em
uma palavra, mostrar para todos que antes de tudo e acima de tudo existe a lei
moral, e que é somente para quem se põe fora desta mesma lei que a vida
termina.

É princípio
axiomático que nada existe sem causa, que nada acontece que não tenha uma
explicação natural, sendo que na natureza tudo está subordinado a leis
invariáveis, tudo segue uma marcha regular e uniforme. É o que não digo por
conta própria, mas é reconhecido e confirmado por Stuart Mill.

Ora, se o mundo em
todas as suas manifestações está subordinado a leis invariáveis e seguindo uma
marcha perfeitamente regular e perfeitamente uniforme, vai de transformação em
transformação, sem que ao mesmo tempo nada se perca, nem deixe de concorrer
para a harmonia geral, ou mais propriamente e para empregar a palavra mágica do
século: se a natureza evolui e evolui sempre, a consequência lógica,
inevitável, é que tende necessariamente à realização de um fim. Qual é o fim a
que tende a evolução universal, para onde vai tudo isto que nos cerca, em que
consiste a finalidade do mundo? Tal é precisamente o problema que mê proponho a
estudar, ou sobre o qual ao menos pretendo apresentar algumas idéias.

Será difícil, será
impossível chegar a qualquer resultado? Bem sei que o problema é por quase
todos considerado como insolúvel: bem sei que minha pretensão é ousada e que
grandes serão as dificuldades com que terei de lutar. Além disto não há estímulo
em nosso país para esta ordem de estudos, considerando-se mesmo entre nós
inútil o estudo da filosofia. O que se quer, são obras que produzam resultado
material: o que se exige, são trabalhos de que resultem vantagens pecuniárias.
E este modo de pensar, principalmente depois que começou a desenvolver-se no
Rio o Centro Positivista, tem-se tornado tão geral que chegou a predominar nas
classes diretoras da sociedade, influindo mesmo sobre o
governo. É assim que depois que foi proclamada a República, em consequência do
movimento de 15 de novembro, o governo revolucionário que se estabeleceu em
seguida, sob a direção do Marechal Deodoro da Fonseca, começou a sua obra de
reconstrução suprimindo o ensino oficial da filosofia. O exemplo do Centro
produziu as suas consequências naturais, sendo que depois de pouco tempo havia
sido suprimida como inútil, do Liceu ou estabelecimento correspondente, em
todos os estados, a cadeira de filosofia. De modo que a República começou no
Brasil declarando guerra de morte à filosofia. Verdade é que o que então se
ensinava como filosofia era uma coisa indigesta e absolutamente intragável,
sendo de rigorosa necessidade uma reforma na organização do ensino, não somente
da filosofia, mas de todas as outras matérias que constituem o objeto do curso
secundário e superior no país. Mas a reforma a fazer-se, devia ser no sentido
de melhorar, não de suprimir. Não sucedeu assim: fez-se uma reforma que
chamarei desesperada: or-ganizou-se um programa palavroso e estéril, feito de
todo nos moldes positivistas, absurdo em teoria, impraticável de fato, espécie
de encadeamento de fórmulas aparatosas destinadas a enganar pela aparência
exterior, de modo que a julgar por aquilo a nação, nada é mais triste do que a
idéia que se deve fazer do estado de nossa civilização. E quanto à filosofia,
identificada à retórica, foi suprimida como inútil.

Nestas condições
conheço perfeitamente que vou de encontro a preconceitos inveterados e por
enquanto talvez insuperáveis, podendo acontecer-me como a quem bate em cheio
num corpo que não se move. Não encontrarei, por isto, quem me ouça? Perderei de
todo o meu tempo? Mas quanta gente não passa toda a sua vida em festas? Outros
empregam esforço inaudito, fazem sacrifícios enormes, para acumular fortuna nem
sempre aplicada à realização de obras meritórias. Outros entregam-se à
depravação e ao deboche. Outros, na intriga desenfreada da política. Todos
esses porventura também não perderão o seu tempo?

Ora, se tanta gente perde
por esta forma o tempo, se quase todos o perdem, por que razão não devo, nem o
poderei perder também eu, aplicando toda a minha atividade, dedicando
toda a minha existência ao estudo desta inutilidade — a filosofia?

Que seja tudo
perdido, que ninguém me ouça, que todos condenem a minha tentativa, pouco
importa, mas eu não posso viver bem, não compreendo a minha existência, desde que não conheço o papel
que represento na sociedade, desde que não conheço o papel que representa a
sociedade no mundo: quero, pois, saber o que sou, quero ter consciência de mim
mesmo. E interrogando a consciência ao mesmo tempo que submeto a exame o
organismo da natureza, sem nenhuma idéia preconcebida, sem nenhum intuito de
defender este ou aquele sistema, tenho certeza absoluta de que por modo algum
há de aterrar-me a verdade, qualquer que ela seja. E não há de aterrar-me,
porque não é admissível que a verdade possa ser odiosa, para o que seria
preciso que a natureza fosse um conjunto de monstruosidades inexplicáveis. Ao
contrário é preciso que haja em tudo um princípio de bondade, sendo que não era
senão já o reconhecimento desta verdade que levava o próprio Spencer a dizer
que há sempre uma alma de bondade nas coisas más, do mesmo modo que há sempre
uma alma de verdade nas coisas falsas. Depois, é necessário que seja verdadeira
a lei do progresso universal segundo a qual o próprio mal é uma condição ou
antes uma gradação para o bem.

O célebre autor do livro Força
e matéria, Buchner, estabelece que a natureza não tem alma, sendo
certo que nenhuma mão sai da nuvem para dar pão a quem tem fome, que nenhum
sinal do céu dá indício de uma inteligência protetora. E eu aceito tudo isto:
mas aceito também, com Spinoza, que tudo é bom, porque tudo é o que deve ser.
De modo que, considerando-se as coisas debaixo deste ponto de vista, é forçoso
reconhecer que tudo vai seu caminho, que o curso da natureza segue uma
progressão ascendente, que todos nós fazemos parte de um todo vivo e animado
que evolui e caminha, dirigindo-se para o alto de uma montanha desconhecida.
O que existe no alto desta montanha? Em outros termos: para onde se encaminha a
evolução universal?

Deixe um comentário

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.