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Deixando, pois, de
parte, as divergências entre as diferentes escolas, para aceitar somente o que
todas elas proclamam, o que pode ser contestado é que o que caracteriza a
filosofia é a unidade: quer dizer: a filosofia é sempre o conhecimento universal,
o conhecimento do todo, em uma palavra, uma concepção do mundo.

A afirmação de que a filosofia
caracteriza-se pela unidade, é uma verdade que não pode deixar de ser reconhecida
e proclamada por todos, porque pertence ao número daquelas que girara acima das
divergências dos sistemas. A esta verdade estão, como vimes, subordinados mesmo
aqueles que, confundindo a filosofia com a ciência, terminam por considerá-la,
na frase de Augusto Comte, apenas como o conjunto sistemático das ciências: ou,
segundo se exprime Herbert Spencer, como o conhecimento do mais alto grau de
generalidade.

Mas para que haja
unidade na filosofia é preciso, antes de tudo, que a filosofia seja o
conhecimento do todo, isto é, que se encaminhe para uma concepção do universo,
dando a cada coisa a sua explicação natural e abraçando em suas explicações o
conjunto da natureza. A não ser assim, esta unidade é impossível. Daí vem que
no domínio do conhecimento é da filosofia que tudo parte e é para a filosofia
que tudo volta. Em outros termos: a filosofia é a fonte comum onde encontram
sua justificação os princípios fundamentais de todas as outras ciências, que
nestas condições dependem dela. Ou mais precisamente ainda: a filosofia é o
conhecimento universal.

É assim que o
verdadeiro caráter da filosofia em suas relações com as ciências só pode ser
determinado por meio de imagens como estas:

A filosofia é uma árvore: as
ciências são ramos mais ou menos frondosos que brotam desta árvore, o fruto que
ela produz.

A filosofia é uma
luz: as ciências são raios mais ou menos brilhantes que emanam dessa luz.

Todas estas explicações são
verdadeiras e trazem sem dúvida muito esclarecimento: mas entrando na
substância mesma da coisa, o que importa estabelecer é que a filosofia é uma
concepção do mundo, sendo que por entre a variedade infinita dos fenómenos
naturais, o espírito tem necessidade de elevar-se a uma concepção geral que
abranja todas as outras concepções e possa servir de princípio de explicação
para o conjunto da natureza. Esta concepção geral é que constitui o que se
chama propriamente filosofia: é o que se deduz de todos os pensadores da
antiguidade, como de todos os pensadores modernos.

Mas nisto está somente um
dos caracteres da filosofia, mas não o único, nem mesmo o mais importante. Mais
adiante e em lugar apropriado veremos e— que em realidade constitui a
investigação filosófica e em que a filosofia verdadeiramente se distingue da
ciência.

 

Capítulo
VI
(¹)

METAFÍSICA E POSITIVISMO

Para todo aquele que
colocado em face da natureza se propõe a interrogar o problema do mundo três
questões se apresentam necessariamente: l.a) por que o mundo é; 2.a)
para que é; 3.a) como se manifesta. Por que, como, e para que o
mundo é — eis a síntese do conhecimento universal. Mas aqui há urna distinção
importante a fazer: é que no modo de sentir comum a grande número de
pensadores, somente o como das coisas é que pode ser conhecido, ao passo que a
questão do por que e do para que, remontando ao chamado problema das causas
primárias e finais, constitui propriamente o terreno em que se move a
metafísica, excedendo os limites do conhecimento. Nisto está toda a questão
moderna da distinção entre a coisa em si e os fenómenos, sendo que o por que e
o para que referem-se à coisa em si, e somente o como refere-se aos fenómenos.
Ora, limitado unicamente aos fenómenos, isto é, limitado à questão do como,
todo o conhecimento humano reduz-se a uma espécie de física universal: e é só
quando ultrapassa a esfera dos fenómenos e tenta elevar-se ao domínio da coisa
em si que a física degenera em metafísica. É, pois, o momento de perguntar: a
filosofia é uma ciência metafísica? Em outros termos: a metafísica deve
existir?

Eis a grande questão que
revoluciona o espírito moderno. Dois homens tomaram por seus trabalhos fecundos
a dianteira do pensamento em relação a essa importante questão: Augusto Comte,
que se apresentou como o destruidor da metafísica e Schopenhauer, que se propôs
como o criador de uma metafísica nova. Ambos partiram de um mesmo ponto — o
aniquilamento da teologia, para se elevarem a dois extremos opostos, um
limitando-se à exploração dos fenómenos sem romper os limites inacessíveis que
impôs à atividade do espírito: o outro rompendo o círculo que achou por demais
estreito da fenomenalidade e elevando-se ao exame da coisa em si.

(1) pp. 58-63

 

O
princípio fundamental da filosofia de Comte é a lei dos três estados. Cada ramo
de nossos conhecimentos passa por três estados teóricos diferentes: o estado
teológico ou fictício: o estado metafísico ou abstrato: o estado científico ou
positivo. Em outros termos: o espírito emprega sucessivamente em cada uma de
suas buscas três métodos de filosofar diferentes e mesmo opostos: a princípio
o método teológico, em seguida o método metafísico, por fim o método positivo.
O primeiro é o ponto de partida e daí a inteligência passa através do método
metafísico, que indica um estado de transição, até o método positivo, que é o
seu estado definitivo. E partindo deste princípio aplicável ao espírito humano,
tanto na marcha geral da sociedade, como em cada indivíduo, Comte deduz que sua
filosofia só se aplica aos fenómenos como sujeitos a leis invariáveis,
considerando como vã toda a busca das causas primárias ou finais.

 

Fica assim
inteiramente excluída a metafísica. E passando a uma sistematização geral das
ciências que é ao qjie fica reduzida a filosofia, Comte conclui a sua obra
colossal pela criação de uma ciência nova — a sociologia, submetendo os fatos
sociais à sua concepção geral e excluindo da sociedade qualquer intervenção
sobrenatural ou extra-sensível. A obra, porém, verdadeiramente de Comte e que
exclusivamente lhe pertence é o esclarecimento do conceito positivista que
exclui a metafísica. Também é este o seu maior mérito: tal é o parecer de
Lange.

Schopenhauer, porém,
não se contenta com os fenómenos. "Não basta a aparência", diz ele,
"é preciso que nos elevemos à realidade". Sua teoria pode ser
consolidada nestes termos: o universo é um fenómeno cerebral. Tudo demonstra na
natureza que o mundo, para ser um objeto, tem antes de tudo necessidade de um
sujeito que o pense-‘ é o que cada um poderá facilmente verificar por sua
experiência pessoal. O sono profundo inteiramente sem sonhos não é uma prova
manifesta de que o mundo só existe para uma cabeça pensante? Admita-se por um
momento que tudo dorme inteiramente de um sono profundo, de um sono do qual
ninguém mais acorda; admita-se que tudo fica reduzido à existência das pedras:
haverá porventura questão sobre a existência ou não existência do mundo
exterior? Assim o universo não tem’ realidade objetiva, não existe fora do
espírito, é simplesmente uma representação. Nosso corpo como parte do universo,
é também uma representação. Nosso corpo como parte do universo, é também uma
representação: mas há dentro de nós uma coisa que é mais do que representação,
é a vontade. A vontade é a ccusa em si e deve ser considerada como a causa
primária de tudo. Deste modo Schopenhauer, depois de haver feito um exame geral
sobre o mundo dos fenómenos no que se limita a uma teoria da inteligência,
lançando as bases da doutrina da representação, passa ao estudo da coisa em si,
a vontade. Daí o título de sua grande obra: O mundo como vontade e como
representação.
Note-se, porém, que a palavra vontade é aqui empregada em
uma significação toda especial e muito mais ampla que a significação ordinária
do termo vontade.

 

 

Vontade é aqui sinonimo de força. É a vontade,
a força oculta que dorme na pedra, sonha na planta e acorda no homem.

O materialismo e o espiritualismo, a
negação e a afirmação absoluta das idéias gerais e fundamentais da teologia,
são excluídos tanto por Augusto Comte, como por Schopenhauer, sendo que, para
ambos, esses dois sistemas opostos já exerceram seu império, devendo agora
pertencer unicamente à história. É certo, entretanto, que eles ainda continuam
a dirigir a marcha da humanidade, um como elemento reacionário, outro, como
elemento edificador: e foram até hoje e é possível que ainda continuem a ser
por muito tempo as duas formas características da metafísica. Nem pode causar
estranheza o fato de serem considerados igualmente o materialismo e o
espiritualismo como formas da metafísica. Com efeito, quanto ao espiritualismo
por certo não haverá quem se oponha: é a doutrina clássica dos metafísicos. E
quanto ao materialismo também afirmo: é uma doutrina metafísica: e é o que não
se poderá contestar, conquanto os materialistas em geral se considerem como
inimigos declarados da metafísica. É mesmo costume entre eles dizer, quando se
opõem a algum princípio: "é um erro grosseiro que vai dar em pura
metafísica". Mas nisto há erro nas idéias e confusão na linguagem: e
tomadas as palavras em sua verdadeira significação, es materialistas são
metafísicos. De fato, qual é o princípio fundamental do materialismo? É ainda o
velho princípio de Demócrito: — o universo inteiro só se compõe de átomos e
vácuo. O átomo, a matéria é, pois, o elemento primordial, o todo na natureza e
como tal não pode ser considerado como fenómeno, é coisa em si, númeno, na
linguagem de Kant: e nestas condições é uma entidade tão metafísica quanto o
Deus e a alma dos espiritualistas.

Sem tentar submeter a
matéria a um exame decisivo e completo, nem dar sobre a questão de que se
trata, a última palavra, uma coisa é permitido sem receio assegurar: é que a
metafísica é uma necessidade fundamental do espírito humano. Neste ponto
Schopenhauer tem razão quando diz que o homem é um animal metafísico, porquanto
em todos os tempos o homem sempre se esforçou de elevar-se à explicação última
das coisas, e em sua ânsia de saber é certo que não se satisfaz com o
conhecimento do fenómeno, quer conhecer o que há acima do fenómeno e lhe serve
de causa, aspira ao conhecimento da coisa em si. E a incerteza, a
dúvida cruel em que se vive, a miséria de uns, as ilusões de outros, e em face de
tudo o nada da existência, e depois de tudo isto, os sofrimentos, a dor, a
significação da vida, os destinos da morte, foram sempre problemas a que se
ligou o maior interesse: e nenhuma explicação racional e verdadeiramente
consoladora é possível sobre estas questões sem que nos elevemos ao campo da
metafísica .

Será um erro, um
vício hereditário, uma enfermidade, a nossa necessidade metafísica? Não
importa, mas é uma realidade: e pode-se dizer que a história da humanidade não
é senão, em grande parte, a história de nossos esforços quase sempre
infrutíferos para a metafísica. O homem não pode mas quer elevar-se a uma
concepção do mundo e neste sentido trabalha e se esforça indefinidamente: e
embora tenha certeza de que vai dar lugar a uma criação que o tempo terá
necessariamente de destruir, são inumeráveis os casos em que aplica toda a sua
atividade, consome toda a sua existência na busca de uma solução para os
chamados problemas insolúveis. E a cada tentativa que aborta sucedem noves e
repetidas tentativas.

Assim Comte, com a
autoridade de um sábio dotado de conhecimentos enciclopédicos, grande
matemático e grande reformador, proclama com a publicação da Filosofia
Positiva
a sua sentença de morte contra a metafísica, supondo por um golpe
de audácia abater todas as concepções anteriores e destruir as crenças
tradicionais da humanidade: mas a metafísica renasce, surgindo, como por
encanto, das próprias ruínas do pensamento.

Compreende-se que
tudo isto demora na região misteriosa do insondável e do imperceptível, e aí a
inteligência anda a passos vacilantes e incertos e nada pode estabelecer com
segurança; mas uma coisa se impõe irresistivelmente em vista destas avançadas
inúteis do espírito: é a necessidade fundamental da metafísica. Resta ver que
elementos podem ser deduzidos que estejam em condições de ser elevados à
categoria de leis naturais sem o que não há ciência possível. Há fatos físicos
e estes obedecem a leis: por isto a física é ciência. Para que a metafísica
seja também uma ciência é preciso que haja fatos metafísicos e que estes também
obedeçam a leis, podendo tudo isto ser explicado sem que seja necessário
ultrapassar a esfera da natureza. Assim compreendida, a metafísica constitui o
que verdadeiramente se poderia chamar uma metafísica naturalista, sendo que o
que caracteriza ou deve caracterizar o pensamento moderno é não a eliminação da
metafísica, mas unicamente a eliminação do sobrenatural. Tal é, penso eu, o
ponto de vista em que deve_ser colocada a metafísica do futuro, sendo aqui indispensável
submeter a matéria a um exame mais detalhado e profundo. Mas antes de fazê-lo,
cumpre estudar a verdadeira distinção que deve ser estabelecida entre a filosofia e a
ciência.

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