Ilíada de Homero – Canto XVI
Versão brasileira de Manoel Odorico Mendes
ARGUMENTO DO LIVRO XVI
Patroclo vai ter com Aquiles, e depois
de lhe haver pintado as
desgraças dos Gregos, pede-lhe suas
armas para combater com os
Troianos. — Aquiles concede-lhas.
— Ajax enfraquece. — Aquiles
apressa o seu companheiro a partir,
ordena os Tessálios e faz libações
a Júpiter. — Atemorizam-se os Troianos
à vista de Patroclo. — Dá-se
um combate junto aos navios, fogem
os Troianos e são perseguidos. —
Só Sarpédon resiste. — A Glauco é
reservado o cuidado de vingar
a morte de Sarpédon. — Os Troianos
dão ataque. — Feitos de Patroclo.
— Valor de Glauco. — Os Gregos não
se deisam abater; despojam o
corpo de Sarpédon. — Patroclo esquece
as recomendações de Aquiles
e avança aos muros de Tróia. — Luta
de Patroclo com Heitor. — É
aquele morto por Euforbo e Heitor.
— Heitor persegue a Automedon.
Da nau fervia o prélio, e ao divo
Aquiles
Vem Patroclo a verter cálido choro,
Como de celsa rocha em fio brota
Fundo olho d’água. Comovido o encontra
O amigo velocípede: "Patroclo,
Pranteias molemente? És qual menina
Que, da mãe apressada após, retém-na
Pelo vestido, e em lágrimas olhando,
Insta-lhe até que em braços a receba.
Aos Mirmidões, a mim, que novas trazes
?
Veio de Ftia um núncio? Vivem, consta,
Menetes e Peleu, cujo trespasso
Tinha de entristecer-nos. Ou lamentas
Os que ante as cavas naus ingratos
morrem ?
N ã o me ocultes, amigo, as mágoas
tuas . "
Gemente assim Patroclo: "Não
te agastes,
Aqueu sem-par; dor grave oprime os
nossos:
Os mais valentes já feridos jazem,
De lança o Atrida e Ulisses, e frechados
Na coxa Eurípilo e no pé Diomedes.
Médicas mãos os curam cuidadosas;
Mas não se dobra teu rancor, Pelides.
Nunca ira tal me cegue, herói funesto!
Quem mais em teu valor fiar-se pode,
Quando não livras da ruína os Gregos?
Nem te gerou, cruel, Peleu nem Tétis;
Filho és do turvo mar, de broncas
penhas.
Se agouros temes, se de Jove arcanos
Declarou-te a mãe deusa, ao menos
dá-me
Teus Mirmidões, e aos nossos lume
escasso
Talvez serei. Tua armadura emprestes:
Crendo-te em liça os Teucros, é factível
Cessem do assalto, e aos márcios Gregos
deixem
Útil breve respiro em tanta lida;
Frescos nós outros, o inimigo lasso
Fácil do campo e naus rechaçaremos."
Ail néscio implora, e o fado e a morte
chama.
Suspira Aquiles: "Como! eu, bom
Menécio,
De agouros me temer! de Jove Tétis
Nada me revelou. Mas dói-me o agravo
De um prepotente par, que o prêmio
ganho
Por minha lança na invadida praça,
A jovem bela escrava, arrebatou-me;
Dói-me sim que esse Atrida ma tirasse,
Como das mãos de ignóbil vagabundo.
Olvide-se o passado, nem perpétuo
Ódio quero nutrir: de não depô-lo
Voto fiz, sem primeiro à minha esquadra
Chegar o estrondo e a pugna. O arnês
que pedes,
Veste-o, conduz os Mirmidões fogosos:
De Teucros nuvem basta as naus circunda;
Pouca ourela da praia aos Dânaos resta;
Ílio em peso concorre e afouta inunda.
Oh! não vêem mais luzir meu capacete:
Se o rei me fora justo, em fuga tinham
O fosso de cadáveres enchido;
Ora, opugnando, o exército encurralam.
Não mais braveja a Diomédea lança,
Os Dânaos resguardando; a voz calou-se
Das goelas do Atrida abominável:
A de Heitor homicida aos seus troveja;
Guerreiros vivas o triunfo aclamam.
Sus, Patroclo, das naus remove a peste,
Anda, acomete; a frota não se abrase,
Que nos deve repor na doce pátria.
Ouve e do meu conselho não te olvides,
A fim que honras os Dânaos me prodigucm,
E a cativa gentil me restituam
Com magníficos dons: repulsos, volta;
Embora o esposo altíssimo de Juno
Te apreste a glória, os bélicos Hectóreos
Não combatas sem mim, que me é desdouro;
Nem ávido exultando na carnagem,
Aos muros de ílio o exército avizinhes;
Pois descerá do Olimpo um dos Supremos,
Talvez o Longe-vibrador que os ama.
Salva as naus e retorna; eles pleiteiem
Em raso campo. Ó sempiterno Padre,
Minerva e Apoio, a morte a nenhum
Teucro
E a nenhum Grego poupe; escapos ambos,
Sós ílio sacra derribar nos caiba."
De rojões, entretanto, Ajax vexado,
Mal se sustinha, que o domava Jove
E o dardejar contino; em torno às
fontes
O elmo hórrido rouqueja, que o brilhante
Artífice cocar alvo é dos tiros.
Do pavês o ombro esquerdo já tem lasso,
Mas quedo apara a chuva de arremessos;
De anélito açodado, os membros todos
Escorrendo em suor, nem resfolgava,
Aumentando um perigo outro perigo.
Musas do Olimpo, recontai-me como
O fogo se ateou na Argiva armada.
Onde a espiga se encava, de montante,
Corta o Priâmco o freixo ao Telamónio,
Que mutilado vibra hastil inútil,
E cai no chão tinindo a cúspide énea.
Treme o indómito Ajax reconhecendo
Que obra é celeste, que o senhor do
raio
Decide e quer aos Teucros a vitória;
Enfim recua. A infadigável chama,
Remessada ao baixei, inextinguível
Pega de popa a proa; então veemente
Bate Aquiles na coxa: "Eia, Patroclo,
Vejo lavrar tenaz o hostil incêndio;
Não se nos tolha o meio à retirada;
Já já te arneses, e eu reúno as hostes."
Cinge o Menécio deslumbrante saio;
Com prata afivelando, as finas grevas
Ajusta às pernas; estrelada e vária
Aos peitos liga a do veloz Pelides
Érea coiraça; o claviargênteo gládio
Pendura; o grã pavês, sólido ombreia;
Põe à forte cabeça o casco insigne,
De nutante penacho e horrente crista;
Válidas lanças a seu pulso adapta,
Que a do Eácida exímio, por disforme,
Argeu nenhum, só ele, manejava:
Cortou Quiron seu freixo no alto Pélion,
De heróis futuro dano, a Peleu dado.
A Automedon manda aprontar o coche,
A quem mais preza após o rompe-esquadras,
Pajem fiel, no afogo das batalhas.
Este junge os ligeiros Xanto e Bálio
Ao vento iguais: Podarga harpia, ao
sopro
De Zéfiro num prado os concebera
Junto ao rio Oceano. Ata à boleia
Com imortais corcéis Pédaso fero,
Preia de Aquiles d’Eetion nos muros.
O filho de Peleu, de tenda em tenda,
Arma os seus. Quando crus vorazes
lobos,
O estômago a instigá-los, dilaceram
Montes cervo ramoso, em alcatéia,
Rubros os queixos, com delgadas línguas,
Lambem de cima a funda escura fonte;
E, teso o ventre, a impar, cruor vomitam,
Mais gana inda os instiga e os acorçoa:
Dos Mirmidões os príncipes, não menos,
O amigo audaz famintos e animosos
Do Eácida ladeiam, que os ginetes
E adargados belígero afervora.
Cinqüenta lestes naus a Tróia Aquiles,
Caro ao Satúrnio, trouxe, com cinqüenta
Remos em cada uma, e a cabos cinco
Diviso o mando, presidia a todos.
Menéstio cncoiraçado era o primeiro,
Que a Espéquio rio, génito de Jove,
Polidora pariu, de Peleu filha,
Gentil mulher que ao deus se unira
assíduo:
Nado o criam de Bóros Periério,
Que lhe esposara a mãe com dote imenso.
Era Eudoro o segundo, que houve oculta
A de Filas garbosa Polimela:
O Argicida Mercúrio amou-a, vendo-a
Cantos guiar e danças da auri-archeira
Diana estrepitosa, e manso ao quarto
Subindo virginal, teve este egrégio
Rápido campeão; mas, dês que ao lume
Do sol o deu cruíssima Ilitia,
Casou com Polimela o Actório Equecles,
Dotando-a com mil dons: o avô cuidoso
O criou como seu. Era o terceiro
Pisandro Memalides, que excedia
Na lança os Mirmidões, Patroclo cxepto.
Quarto, o équite Féníx; era o quinto
Alcimedon famoso Laerceio.
Tudo Aquiles ordena, e diz severo:
" N ã o vos esqueça, Mirmidões,
que a bordo
Ameaçáveis os Troas ; que freqüente,
Condenando meu ódio, me exclamáveis:
— De fel a mãe te amamentou, Pelides;
Tirano, os sócios à inacção constranges;
Pois que a ira fatal caiu-te n’alma,
De volta a casa o pélago sulquemos.
—
Ei-lo o conflito pelo qual bramíeis:
Quem tiver coração, corra aos Troianos
. "
A voz regia afogueia as filas todas.
Como, a prova dos ventos, o arquitecto
Em parede superba ajunta a-s p e d
r a s ;
Ajuntam-se, elmo a elmo, escudo a
escudo,
Lado a lado, os varões: tocam-se e
ondeiam
Indistintos penachos e cocares.
Sós dois, Patroclo e Automedon, concordes
Em ferir a batalha, os precediam.
Vai logo à tenda Aquiles, abre a tampa
Da que a mãe argentípede, à partida,
Lhe dera arca louça, de agasalhados
Capotes cheia, e túnicas e mantas
E tapetes felpudos: copa tira
De alto lavor, em que ele só bebia
E a Jove só libava; com enxofre
Untada a expurga e em água a purifica;
Também lavando as mãos, purpúreo vinho
Despeja, e em meio dos guerreiros
posto,
Nos céus a vista, ao fulminante Padre,
A seus rogos atento, assim brindava:
"Jove Pelasgo, tu que longe habitas
E imperas em Dodona hiberna e fria,
Dos Selos teus intérpretes cercado,
Que de pés andam nus e em terra dormem,
Perfaze ora os meus votos, já que
os Dânaos
Por honrar-me afligiste: eu permaneço,
E de muitos à testa envio o sócio;
Dá-lhe vitória, altíssono, e a coragem
No peito lhe confirma; Heitor aprenda
Se é de si forte o amigo, ou se invencível
É só quando combate à minha ilharga.
Mas, depois que do assalto as naus
liberte
E do tumulto, incólume aqui volte,
Com meu arnês inteiro e os meus soldados."
Previsto Jove, anui somente em parte:
Salve Patroclo as naus, mas não se
salve.
Depois que liba súplice, o Peleio
Entra na tenda, e a copa na arca fecha;
À porta volve, e espectador ainda
Quis ser da atroz mortífera batalha.
Como Patroclo bizarro as hostes marcham,
Té que aos Troas remetem corajosas.
Quando as vespas, que encelam-se na
estrada,
Insensatos meninos irritando,
Público mal preparam buliçosos,
Por descuido se as toca o viandante,
Elas com forte coração rebentam
Em defesa do enxame: assim prorrompem
Os Mirmidões, e a cuquiada ruge.
Grita Patroclo: "Ó sócios do
Pelides,
De quem sois recordai-vos, com façanhas
Esse herói dos heróis honremos hoje:
O amplo-dominador confesse a culpa
De agravar o fortíssimo dos Gregos."
Com tal estímulo, adensados ruem;
Das naus em torno o alarma horrível
soa.
Vendo ao Menécio coruscar nas armas
E o mesmo auriga, trépidos os Teucros
Se desconcertam; cuidam congraçado
O Eácida veloz, e olhando em roda
Cada qual busca efúgio à instante
Parca.
Patroclo estréia, com fulgente lança,
Onde mais tumultuam, junto à popa
Do grã Protesilau: fere o armo dextro
A Pirecmeu, que os équites Peónios
Caudilha de Amidon e do Áxio largo;
Vai de costas, no pó gemendo rola,
E a flor dos seus espavoridos fogem.
Remove e extingue o fogo, e atropelados
Da nau já semiardida os Frígios deita:
Por entre as outras, com ruído enorme
Derramando-se os Dânaos, os repulsam.
Se alquando espalha Júpiter fulgúrco
O negrume do cimo da montanha,
Aberto o máximo éter, aparecem
Rocas, píncaros, bosques; tais os
Dânaos,
Livres do incêndio, um pouco respiraram:
Porém dura inda a pugna; que os Troianos
Costas não davam todos, mas forçados
Iam deixando o campo e resistindo.
Cada chefe um contrário acossa e mata.
Logo a bronze o Menécio de Areilico
Fractura o fémur e o debruça em terra.
A Toas, que do peito arreda o escudo,
Prosterna Menelau. Na arremetida,
Meges lanceia a perna, onde há mais
polpa,
Ao nobre Anficlo, e os nervos lhe
descose;
Letal escuridão lhe cega os olhos.
Antíloco Nestório de érea ponta
A Atínio espeta o lado e o prostra.
Máris,
Ante o fraterno corpo, ao Grego vibra;
Mas Trasimedes, prevenindo o golpe,
No ombro lhe mete a cúspide, e lhe
corta
Os músculos do braço e o osso escarna:
Baqueia Máris em medonha treva.
E dois irmãos a Dite assim remete,
Ambos hasteiros, a Sarpédon caros,
Filhos de Amisodar, que, infensa a
muitos,
A Quimera nutria insuperável.
Na baralha a Cleóbulo impedido
O Oilíades empolga, e na garganta
Lha ensopa toda e em sangue a espada
aquece:
Purpurea morte o imerge era noite
escura.
Lícon e Peneleu, que se entrechocam,
Botes errando, às lâminas recorrem:
Lícon no hostil cocar imprime o gládio,
Que pelo punho estrala; sob a orelha,
Peneleu de um revés lhe fende o colo,
E a cabeça, da pele só retida,
Lhe dependura e os órgãos lhe desata.
Merion desenvolto após Acamas,
Ao montar, o escalavra no ombro dextro:
Ofusca-se-lhe a vista e rui do coche.
De pique atroz Idomeneu, de Erimas
Por sob o cérebro atravessa a boca,
Racha alvos ossos e desloca os dentes:
Os olhos dois infiltram-se de sangue,
Sangue das ventas bolha e abertas
fauces;
Da nera morte o envolve a nuvem baça.
Cada herói Grego assim talha uma vida.
Como lobos roazes que, de espreita,
A mães roubam cabritos ou cordeiros,
Cujo pastor os descuidou no monte,
E aos balantes imbeles despedaçam;
Dão sobre os Troas, que olvidando
o brio,
Só na horríssona fuga se afiuzam.
Ansioso o grande Ajax a Heitor procura;
Que, adargando experiente os ombros
largos,
Dos tiros o zunido ou silvo observa,
E inclinada a vitória, inda constante
Vela nos companheiros. Qual do Olimpo
Ao céu vai nuvem, se o nimboso Padre
O éter sereno tolda, as naus expedem
O trépido Tumulto: os de Heitor passam
Em debandada, e os rápidos ginetes
Apartam-no dos seus, que o fosso embarga.
Quantos corcéís, na escarpa escorregando,
Quebram temões, donos e coches largam!
Uns alenta o Menécio, outros acossa
Com ígnito furor: em gritos fogem,
As estradas enchendo, e os corredores,
Por turbilhões de pó que os ares turvam,
Das naus e tendas à cidade voam.
Trota e se envia onde há maior distúrbio,
E minaz urra: sob os eixos muitos
Rolam dos voltos clamorosos carros.
Os imortais unguíssonos dos deuses,
Dom preclaro a Peleu, transpõem o
fosso
De um pulo; e de ir o impulso tem
Patroclo
Sobre Heitor, que é da biga arrebatado.
No outono, quando Júpiter, sanhudo
Contra o julgar dos homens que a justiça
Do foro banem sem temor dos numes,
A negra terra agrava de chuveiros,
Com tal fúria desfecha, que em dilúvio
Rios dos montes, sementeiras e agros
Arrasando, a gemer se precipitam
No vasto mar purpúreo: assim nitrindo
Iam na desfilada as Teucras éguas.
Rotas as hostes, para as naus Patroclo,
De ílio tolhendo o ingresso desejado,
As repulsa, e entre a praia e o Xanto
e o muro
Gira a vingança e a morte. Nu de escudo
Fere a Pronos o peito; os membros
laxa,
E fragoroso expira. De outro bote
Prostra o Enópio Testor, que perturbado
No assento encolhe-se e demite as
rédeas:
Pela dextra maçã lhe fisga os dentes,
A si contrai a lança; e, qual se pesca
De linha e anzol, de cima de um rochedo,
Grã sacro peixe, pela boca hiante
Do carro abaixo o tira inanimado.
Joga uma pedra a Eríalo que arrosta,
O elmo parte e a cabeça racha em duas;
Por terra se debruça, e a morte o
cinge.
Patroclo, um após outro, ao chão derriba
A Erimas e Anfotero, Epalte e Pires,
Équio e Ifeu, Tlcpolemo Demastório,
A Polímelo Argeiades e Evipo.
Dele Sarpédon vendo os seus domados,
Repreende os nobres Lícios: "Que
vergonha 1
Onde, Lícios, fugis? Como sois ágeis
1
Corro a provar o armipotente braço,
Que a tantos campeões tolhe os joelhos."
Do carro eis salta e apeia-se Patroclo,
Quais, de bico recurvo e garra adunca,
Sobre alta penha aos guinchos dois
abutres,
Travam-se eles gritando. — Ao contemplá-lo,
Para a consorte e irmã suspira Jove:
"Dos homens o mais caro, ai!
meu Sarpédon,
À lança do Menécio está votado:
Hesito n’alma se na Lícia o ponha,
Subtraído ao combate lutuoso,
Ou se ao cruel destino o deixe entregue."
Mas a augusta olhitáurea: "Que
proferes,
Ó formidável Júpiter? salvares
Mortal à triste Parca já fadado!
Salva-o, porém do Céu não tens o assenso.
Digo mais, e reflecte, à pátria vivo
Se envias teu Sarpédon, outros numes,
Da injustiça irritados, hão-de os
filhos
Muitos livrar que ante llio estão
pugnando.
E do teu predilecto se hás piedade,
Mal do Menécio a mão do alento o prive,
Consente à Morte e ao Sono que o transportem
À opulenta alma Lícia: irmãos e amigos
Façam-lhe exéquias e lhe sagrem pios
Túmulo e cipó, aos mortos honra extrema."
O pai de homens e deuses resignou-se;
Mas pelo filho, a quem da pátria longe
Na feraz Tróia imolará Patroclo,
Asperge a terra de sangüíneo orvalho.
Já se contrastam; mas Patroclo ao
bravo
Pajem do rei Sarpédon, Trasimelo,
Vulnera no imo ventre e solta a vida.
Sarpédon brande a lança impetuosa,
E o golpe errado a pá direita fere
De Pédaso corcel, que em vascas geme
Na arena a espernear e arcando expira.
Xanto escouceia e Bálio; o jugo estala,
E as bridas se embaraçam no que atado
Ao temão jaz no pó. Na afronta, o
hasteiro
Automedon prove: de junto à coxa
Robusta saca a lâmina aguçada,
E ao da boleia presto aos loros talha.
Direita a imortal biga ao freio açode.
Aos dois rói nova sanha e fogo novo:
Inda a Sarpédon falha a cúspide énea,
O ombro só roça esquerdo; mas certeiro
Patroclo o pique lhe enterrou por
onde
O coração as vísceras torneiam.
Como o carvalho, ou choupo ou celso
pinho,
Para naval fabrico, ao truz desaba
De afiada secure; ante os cavalos
E o carro jaz, e o pó sangüíneo apalpa,
Os dentes a estrugir. Qual fulvo touro,
Suberbo entre a flexípede manada,
Sob os colmilhos do leão morrendo,
Muge, inda se debate; assim, vencido,
Gemente o rei dos adargados Lícios,
A bracejar, o camarada chama:
"Dilectíssimo Glauco, mais que
nunca,
Mostra o que és, sê pugnaz, o mando
assume.
Por Sarpédon concita os cabos todos
A pelejar; tu mesmo a lança enrestes.
Infâmia e opróbrio te será perpétuo
Os Gregos despojarem-me o cadáver,
Onde os Lícios heróis as naus disputam.
Eia, as tropas inflama, inabalável."
Cala, afila o nariz e empana os lumes,
Revolto em morte. O Aqueu lhe calca os peitos,
A cúspide lhe saca e entranhas e alma.
Os Mirmidões retêm corcéis que vagam
Açodados, sem coches nem senhores.
De Sarpédon a voz contrista a Glauco,
Nem este lhe valeu, que na mão preso
Tinha o braço, e a frechada o confrangia
Do Aquivo Teucro na mural contenda;
Mas ora a Febo: "De ílio, ou
da possante
Lícia, escuta-me, ó nume arcipotente;
Queixas em qualquer parte e rogos
ouves
De afligido mortal: picadas sinto
Lancinantes, o sangue não se estanca,
O ombro é pesado, o pique mal sustento.
Nada posso empreender; mas jaz Sarpédon,
Sem que ao valente filho acuda Jove.
Ó rei, sequer me sara esta ferida,
Alivia-me, a fim que esforce os Lícios
E o cadáver eu mesmo lhe defenda."
Benigno Febo, as dores já lhe acalma,
Veda o sangue e o robora. Exulta Glauco
Da protecção do deus; primeiro os
chefes
Lícios procura, e a cheio passo aos
Teucros
Agenor se dirige e Polidamas,
Mais a Eneias e Heitor, e a este exprobra
:
"Sócios esqueces que da pátria
e amigos
Longe perecem, nem salvá-los queres
1
Sarpédon morto jaz, da Lícia apoio,
Valoroso, eloqüente e justiceiro;
Pelas mãos do Menécio o prostrou Marte.
Indignai-vos, consócios, de que o
dispam
E insultem Mirmidões, vingando irosos
Aos que ante as naus a botes aterrámos."
Lavra um luto geral; que, estranho
embora,
Esteio era de Tróia, e o mais galhardo
Entre os galhardos Lícios. Por Sarpédon
Chameja e os guia Heitor; Patroclo,
os Dânaos,
Instigando os Ajax de si fogosos:
"Vós Ajax, dantes sempre os mais
estrénuos,
Hoje aos Teucros. O herói que entrou
primeiro
No Graio muro, em terra está, Sarpédon.
Possamos nós despi-lo e encher de
afrontas,
A bronze escarmentar os que se oponham!"
De estímulo os Ajax não careciam.
Uns e outros firmam-se em renhida
pugna,
Teucros e Lícios, Mirmidões e Aquivos,
Com medonho alarido e fragor de armas.
Para estrago maior em torno ao corpo
Do amado filho, Júpiter estende
Lôbrega noite sobre o atroz conflito.
Olhinegros Aqueus primeiro afrouxam,
Ferido um Mirmidon não lerdo, prole
De Agacles valoroso, Epigeu divo,
Que em Budeia magnífica imperava,
E morto um primo audaz, súplice veio
A Tétis argentípede e ao marido,
Que a Tróia em poldros fértil o enviaram
Do seu rompe-esquadrões na comitiva:
Sobre Sarpédon quando a mão já punha,
De uma pedrada o elmo Heitor partiu-lhe
E em duas a cabeça; do cadáver
Descai por cima, e a feia Parca o
cinge.
Qual açor caça a gralhos e estorninhos,
Entre os primipilares, anojado
Pelo defunto sócio, tu Menécio,
De chofre dás nos Lícios e Troianos.
De seixo a Atenelau Itemeneides
Os tendões rompes da cerviz; recua
Com seus primipilares o Priâmeo:
Quanto, ou no jogo ou na homicida
guerra,
Alcança um tiro de esforçado pulso,
Ganham tanto os Aqueus e os Teucros
perdem.
Glauco o primeiro se voltou, matando
O caro filho de Calcon, Baticles,
De Hélade opulentíssima habitante
E o Mirmidon mais rico: este após
ele,
Já quase o apanha; de repente o Lício
Vira-se e a lança embebe-lhe no seio:
Ao baquear do braço, um grito soltam,
Com mágoa os Dânaos, com prazer os
Troas,
Que em derredor se apinham; mas briosos
Vêm de encontro os Aqueus. Merion
derriba
O audaz Laogono, de Onetor progénie,
Do Ideu Jove ministro e um nume ao
povo;
Sob a orelha e a maxila o fere e prostra:
A alma afunda-se logo em treva horrenda.
O Anquíseo a Merion dispara, crendo
Sob o escudo o enfiar na arremetida;
Ele previsto se proclina, e o freixo
Por cima zune, enterra-se na areia,
E o conto fixo treme, até que Marte
A fúria impetuosa lhe aquieta,
Pois dardou mão robusta o bote inútil.
E Eneias irritado: "És bom dançante;
Mas o pique, Merion, certeiro fosse,
Que para sempre te afracara as pernas."
Ao que retorque o hasteiro: "És
forte, Eneias;
Mas nem a todos que arrostar-te ousarem,
Tu contes extinguir. Mortal nasceste;
A tocar-te o meu bronze, embora sejas
Na dextra afouto, me darias glória,
Tua alma ao rei da lúgubre quadriga."
Mas o Menécio a Merion censura:
"Que te presta o falar, valente
amigo?
Antes que um morda o pó, com feros
nunca
Arredarás os Teucros do cadáver;
O braço à guerra, ao parlamento a
língua;
Não palavras, sim obras". Nisto
avança,
Marcha e o ladeia Merion deiforme.
Qual soa ao longe a mata, em fundo
vale,
Dos lenhadores aos contínuos golpes,
Ei-los em todo o campo o estrondo
excitam
De éneos arneses, bipontudas hastas,
Elmos, lorigas, e broquéis e espadas.
Desconhecera o experto ao Lício cabo,
Desde a cabeça aos pés de pó coberto
E sangue e tiros: cercam-no e vozeiam,
Como em curral, na primavera, moscas
De alvos tarros de leite em roda zumbem.
Júpiter, fitos no combate os olhos,
Medita ansioso de Patroclo o fado:
Se ali sobre Sarpédon o Priâmeo
O imole e dispa, ou se ele a vários
inda
Lance no extremo afã. Por fim resolve
Que o fâmulo de Aquiles à cidade
Com matança repila o chefe e os Teucros.
O coração primeiro a Heitor quebranta,
Que à pressa monta e exorta os seus
que fujam,
A balança Díal pender sentindo.
Nem os Lícios resistem, vendo em meio
Jazer seu rei de um vasto morticínio,
Pois sobre ele muitíssimos caíram,
Quando o Satúrnio o prélio exasperava.
Despem-lhe as éreas coruscantes armas,
Que às naus remete o vencedor Patroclo.
Diz a Febo o Nubícogo: " Anda,
filho,
De sob os dardos meu Sarpédon ergas,
Puro do negro sangue, a parte, em
veia
Limpa o lava, e de ambrosia perfumado
Veste-lhe imortal roupa, e o dá que
o levem
Os dois gêmeos cursores Morte e Sono
À opulenta ampla Lícia: irmãos e amigos
Façam-lhe exéquias e lhe sagrem pios
Túmulo e cipó, aos mortos honra extrema."
Dócil Apoio, do Ida ao campo desce:
De sob os dardos a Sarpédon ergue,
Puro do negro sangue, a parte, em
veia
Limpa o lava, e de ambrosia perfumado
Veste-lhe imortal roupa, e à Morte
e ao Sono
O dá, que na alma Lícia o depuseram.
A Automedon excita e aos inimigos
Deita o coche Patroclo; e, se os preceitos
Louco não desprezasse do Pelides,
O trespasso evitara. Mas os de homens
Vence o aviso de Jove, que afugenta
E ao forte que instigou tolhe a vitória,
Ao Grego estimulando. — A quem, Menécio,
Derribaste primeiro, a quem postremo,
Quando a morrer os deuses te chamaram?
A Adresto e Equeclo e o Mégades Perimo,
E Autonoo, e Epistor e Melanipo;
Depois a Elaso e Múlio, enfim Pilarte:
Mata-os, os mais persegue. E a de
altas portas
À tremebunda lança ajoelhara,
Na grã torre se Apoio não parasse,
Em mal dos Dânaos e a favor dos Troas.
O herói pelo espigão do altivo muro
Três vezes trepa, três a eterna dextra
O empurra e bate-lhe o fulgente escudo;
Qual deus indo a investir, minaz o
impede
O Longe-vibrador: "Não mais,
Patroclo,
À brava lança tua os fados vedam
Ílio santa arrasar; compete a braço
Que o teu muito mais forte; ao grande
Aquiles."
Temendo a frecha do agastado Apoio,
Retrograda o Menécio. Às portas Ceias
Tem-se Heitor, cogitando se os cavalos
De novo atire à turba, ou clame às
tropas
E as congregue ante o muro; e, enquanto
hesita,
Aproxima-se Apoio em forma de Ásio,
Tio seu maternal, mas verde e guapo,
De Dimas geração, que às Frígias margens
Do Sangário habitava, e assim lhe
fala:
"Que vil moleza, Heitor 1 Oh!
quanto em forças
Te cedo, eu te excedesse, que da inércia
Te havia de pesar. Anda, coragem!
A Patroclo os unguíssonos propele;
Busca matá-lo, e dê-te a glória Febo."
Disse, e torna à refega: Heitor ordena
Ao belaz Cebrion que açoute as éguas
E entre em peleja. O deus corre as fileiras,
Turba e assusta os Aqueus, exalça
os Teucros.
Despreza os mais Heitor, só trata
e marcha
Contra o Menécio, que do coche pula,
Na sestra o pique, na direita um branco
Áspero seixo oculto, e forcejando
Errado o joga, mas não foi baldio
Que acerta em Cebrion, Priâmco espúrio,
Tendo as rédeas auriga: às sobrancelhas
O esmecha a pedra e o osso lhe espedaça,
Aos pés vaza-lhe os olhos na poeira;
Ele exânime ao chão vai de mergulho.
E Patroclo a zombar: "Oh! como
é ágil!
De nau saltara no piscoso ponto,
Como da sela, e a mergulhar nas vagas,
Sustentara de ostrinhos a maruja.
São bons mergulhadores os Troianos."
Aqui, remete a Cebrion, em guisa
De agro leão, que ao devastar o cerco,
É malferido, e nímia ardência o perde.
Pronto apeia-se Heitor. Qual num cabeço
Crus também dois leões esfomeados
Morta corça tetérrimos disputam;
Os dois, Patroclo e Heitor, da pugna
mestres,
Cortarem-se almejando a sevo bronze,
Brigam por Cebrion: dos pés o aferra
O Menécio, e o Priâmeo da cabeça;
Teucros e Argeus frenéticos se abarbam.
Quando, em floresta ou brenha, de Euro e Noto
O certame sacode o cortiçoso
Corniso e o freixo e a faia, gemebundos
Seus longos ramos confundindo, estralam
Num contínuo fragor: tais se entrelaçam,
Não pensando na fuga desastrosa,
De Cebrion em roda os contendores,
Em recíproco ataque a trucidar-se.
Lanças pregam-se e dardos, setas voam
Dos nervos rechinando, e a rodar pedras
Aos combatentes os broquéis abolam;
Da boleia esquecido, o herói se estira
De pó num turbilhão por grande espaço.
Enquanto o Sol montava, a tiros morrem
De parte a parte; mas no seu declive
Era imensa dos Gregos a vantagem,
Que a Cebrion arrancam do tumulto
E do acervo das armas e o despojam.
Patroclo a Marte igual, medonho urrando,
Três vezes rui, três vezes mata a
nove;
Mas ah! da quarta, ó campeão divino,
Luziu teu fim! Terrível sai Apoio;
Oculto em nevoeiro, a mão pesada
Lhe carrega no dorso e largos ombros;
Vidra-lhe os olhos súbita vertigem;
Desenlaçado o esguio capacete,
Rola aos pés dos unguíssonos tinindo;
Sangue e pó suja as crinas e a cimeira,
Nunca dantes manchadas, quando ornavam
Do divo Aquiles a venusta fronte:
Na cabeça de Heitor, para seu dano,
Pôs Jove esse elmo. Reforçado e rijo
De Patroclo nas mãos rebenta o pique;
Dos loros o pavês se lhe desliga;
Mesmo Febo a coiraça lhe desprende.
Quedo e estúpido, os membros entorpece:
Traspassa-o pelas costas o Pantóídes
Jovem Euforbo, auriga e hasteiro ínsigne,
Celérrimo e adestrado, que dos carros
Novel já despenhou vinte inimigos,
E a ti, Menécio, te feriu primeiro,
Sem derribar-te; e, assim que extrai
a lança,
Mete-se no tropel; pois não se atreve
Encarar com Patroclo, bem que inerme.
Este, opresso de um nume e vulnerado,
Aos seus retrocedendo, ia salvar-se;
Mas Heitor, ao magnânimo ferido
E em retirada, vem por entre as alas,
No vazio lhe ensopa o aéneo gume:
Tomba o herói com fracasso, e os Gregos
gemem.
Qual se um leão com javali forçudo,
Beber ambos querendo em fonte exígua,
Luta cruel empenha em árduo cume,
Té que o cerdo açodado enfim sucumbe;
Tal ao Menécio, a tantos pernicioso,
Desalma Heitor. Sobre ele ovante o
insulta:
"Creste assolar, demente, a pátria
nossa,
E à tua, subtraído o livre dia,
As Teucras embarcar: por defendê-las
Desse dia servil, é que os sonípedes
Cerdosos de Heitor à pugna o levam;
Por guardar seu decoro, é que na lança
Os Troianos supero belicosos.
Hão-de comer-te, mísero, os abutres!
Nem vale o forte Aquiles, que ao ficar-se
Recomendou-te certo: — Às naus bojudas
Não me revertas, cavaleiro amigo,
Sem que de Heitor ferino aos peitos
rasgues
A cruenta loriga. — Essas palavras
Seduziram-te, louco, e te perderam."
E lânguido o Menécio: "Ora blasonas!
Domado eu fui por Júpiter e Apoio,
Que o próprio arnês dos ombros me
arrancaram.
Sem eles, como tu vinte guerreiros
Pelo meu dardo acabariam todos;
Mas fatal sorte e o filho de Latona,
E entre os mortais Euforbo, me renderam;
És terceiro e despojas um finado.
Escuta, e fixo o tenhas; longo tempo
Não viverás; a Parca já te espera
Sob a lança do Eácida invencível."
Disse, e expira: dos membros desatada,
A alma voa aos infernos lamentando,
O seu viril esforço e mocidade.
Ao morto fala Heitor: "Por que
me agouras
Destino tal? Quem sabe se inda ao
nado
Da pulcrícoma Tétis hei-de a vida
Extinguir?" Nisto, o calca, e
o éneo pique
Da ferida sacando, o ressupino
Corpo com ele afasta; o enresta ansioso
Trás o pajem deiforme do Pelides,
Automcdon, que os imortais ginetes,
A Peleu dom celeste, arrebataram.
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