Pe. Leonel Franca – Noções de Filosofia (1918)
ARTIGO III
EVOLUÇÃO DA FILOSOFIA DE DESCARTES
115. INFLUÊNCIA DE DESCARTES — Larga e profunda foi a influência exercida por Descartes em toda a filosofia moderna. No século XVIII, século áureo da literatura francesa, quase todas as inteligências de escol viveram do seu pensamento. A superioridade indiscutível do seu gênio, a sinceridade de suas convicções, fruto de longo e paciente meditar, o elevado cunho espiritualista de suas especulações, a auréola de físico e de matemático que lhe cingia a fronte, por um lado, e, por outro, em contraste, a decadência da filosofia tradicional nos dois séculos precedentes e a fermentação geral dos ânimos ávidos de independência explicam facilmente este raro prestígio intelectual a cujas seduções não se furtaram aqueles mesmos que o combateram. Fenelon e Bossuet, se bem confutas-sem muitas idéias cartesianas e se mostrassem afeiçoados às doutrinas escoláticas, ressentiram-se, em vários pontos, de seu influxo. Mais ardentes defensores encontrou o cartesianismo na escola jansenista de Port-Royal, onde se distinguiram Arnauld (1612-1694) e Nicole (1625-1695), autores de uma Lógica célebre. Pascal (1623-1662), brilhante apologista católico, eivado, nos últimos anos de idéias jan-senistas, excede-se no uso da dúvida metódica, comprazendo-se em acerbas e por vezes injustas invectivas contra a razão humana.
Mas os discípulos mais célebres de Descartes, que desenvolveram suas idéias até às últimas conseqüências e mais profundos vestígios deixaram na história do pensamento, foram Malebranche, Spinoza e Leibniz.
§ l.° :— Malebranche — Ontologismo
116. VIDA E OBRAS — Nicolau Malebranche, nascido em Paris, em 1638, entrou jovem para a Congregação do Oratório, onde a leitura das obras de Descartes decidiu sua vocação filosófica. Faleceu em 1715, após uma calorosa discussão com o idealista Berkeley.
Suas obras mais importantes são: Recherche de la vérité (1675), um dos tratados mais completos sobre o erro, suas causas e remédios, e Méditations métaphysiques et chrétiennes (1683). Como Descartes, muito contribuiu, também êle, com a espontaneidade elegante e linguagem tersa de seus escritos, para a formação do estilo claro e nítido, que tanto caracteriza a prosa francesa.
117. DOUTRINAS FILOSÓFICAS — Na sua filosofia, Male-branche segue com fidelidade a Descartes, ilustrando-lhe as idéias e desenvolvendo, até a plena maturação, os germes do ocasionalismo e ontologismo latentes nos princípios do mestre. São estas as duas teorias que lhe são características.
A. Ocasionalismo (129). Descartes declara a matéria inerte e destituída de verdadeiras forças, reduzindo tôda a atividade finita à simples transmissão e modificação de movimento. Malebranche atira a barra mais longe; nega, de todo, a causalidade às criaturas. Só Deus έ verdadeira causa. Os seus finitos são apenas "causas ocasionais", isto é, ocasião para o exercício da causalidade infinita, que, única e imediatamente, produz todos os efeitos.
B. Ontologismo. O ontologismo ensina a visão imediata e intuitiva de Deus, e, nesta luz divina, o conhecimento de todos os seres. Em Malebranche, o sistema é uma conseqüência de seu ocasionalismo e da separação cartesiana entre a matéria e o espírito. Rejeitadas as idéias inatas que Descartes admitira e excluída a possibilidade de qualquer comércio causai entre os objetos e a inteligência, força é recorrer a um intermediário para explicar o conhecimento do mundo exterior. Deus é esse intermediário, diz Male-branche. N’Êle vemos as idéias eternas de tudo o que é, "nous voyons toutes choses en Dieu" (130). Desaparecessem todos os corpos, vê-los-íamos ainda do mesmo modo, nos seus arquétipos eternos. Só pela revelação, pois, podemos ter certeza da existência do universo sensível. As reminiscências de Platão são aqui evidentes. O "lugar inteligível", ποτοζ νοητόζ do idealista grego identifica-se para Ma-lebranche, como já para S. Agostinho, com a essência divina. A contemplação direta da Essência infinita explica, então, todo o conhecimento intelectual.
118. JUÍZO SOBRE MALEBRANCHE — É inútil observar que tais teorias, em aberta oposição com os dados imediatos e evidentes da consciência, são, de todo, privadas de fundamento e levam naturalmente ao panteísmo. Com efeito, por que não identificar logo com Deus estas criaturas inúteis, incognoscíveis em si mesmas e destituídas de tôda atividade? Mais. Se as nossas idéias são a essência divina diretamente contemplada, quando as identificamos, nos juízos afirmativos, com os seres finitos e indivíduos, não confundimos, porventura, numa identificação panteísta, as realidades contingentes com o Ser necessário? Só a fé deteve o piedoso oratoriano na orla do abismo, em que logicamente o iam precipitando as suas teorias. Spinoza não teve esta salvaguarda. Entre o panteísmo deste e os princípios da filosofia de Descartes, Malebranche estabelece a transição histórica.
(129) Antes de Malebranche jé Amoldo Geulincx (1624-1669) na Holanda, havia ensinado o ocasionalismo, mas o seu nome eclipsado pelo do célebre oratoriano permaneceu na penumbra.
(130) Referindo-se a esta teoria e a este texto disse Faydit, num epigrama de graça pesada; Lui qui voit tout en Dieu, n’y voit pas qu’il est fou.
BIBLIOGRAFIA
Malebranche, Oeuvres, 11 vols., Paris 1712; — nouv. edit, par J. Simon, 4 vols., Paris, 1871 (incompleta) ; — Ollé-Laprune, La Philosophie de Malebranche, 2 vols., Paris, 1870-72; — M. Novaro, Die Philosophie des Malebranche, Berlin, 1899; — H. Joly, Malebranche, Paris, 1901; — H. Gouhier, La vocation de Malebranche, Paris, 1926; — Id., La philosophie de Malebranche et son expérience religieuse, Paris, 1926; — Revue de métaphysique et morale, janv., 1916, todo este número consagrado a Malebranche; — L. Bridet, La théorie de la connaissance dans la phil. de Malebran-che, Paris, 1929; — R. W. Church, A study on the Philosophy of Malebranche. London. 1931.
§ 2.° — Spinoza —- Panteismo
119. VIDA Ε OBRAS — Filho de hebreus portugueses, nasceu Baruch Spinoza em Amsterdam (1632), onde fez seus primeiros estudos. Dedicando-se à filosofia, após a leitura das obras de Descartes, foi mais tarde, pela heterodoxia de suas opiniões solenemente excomungado da sinagoga. Refugiou-se, então, em Haia e aí passou os restos de seus dias na humilde ocupação de polidor de lentes. Recusou uma pensão oferecida por Luiz XIV e a cadeira de filosofia de Heidelberg, que lhe propusera o eleitor palatino, morrendo em 1677, como vivera, na independência de uma pobreza honrada.
Suas obras principais são: Tractatus theologico-politicus (1670) e Ethiea more geométrico demonstrata (póstuma).
120. DOUTRINAS FILOSÓFICAS — Spinoza constrói um sistema completo de filosofia, subordinando a teoria à prática, a especulação à moral. A questão da felicidade humana é a que mais o preocupa e, por isso, Ética é o título de seu grande tratado metafísico. Os dissabores particulares de uma vida atribulada explicam esta orientação geral do seu pensamento.
A. Deus, substância única. Atributos — O ponto de partida de Spinoza é uma definição equívoca da substância proposta por Descartes, à qual êle acrescenta as de atributo e modo (131). Destas três noções formuladas α priori, deduz êle toda a sua metafísica por meio de teoremas, axiomas e corolários à maneira de "geometria sem figuras", como já disse alguém. A substância é uma só, necessária, eterna, infinita — Deus (132). Dentre os infinitos atributos de que é dotado, só dois nos são cognoscíveis; a extensão e o pensamento. Deus est res cogitans, Deus est res extensa, são para a mente humana dois aspectos antitétïcos de uma mesma realidade infinita.
(131) Per substantiam intelligo id quod in se est et per se concipitur hoc est, id. cujus conceptus non indiget conceptu alterius rei a quo formari debeat. Def. III. Desta definição Spinoza infere que: a) a substância não tem causa; do contrário, por ela se conceberia; b) é infinita; senão seria concebida por outra coisa que a limitaria; c) é única porque se existisse outra, esta limitaria a primeira.
Per attributum intelligo id quod intellectus de substantia percipit tanquam ejusdem essentiam constituens. Def. V.
(132) Para provar a existência de Deus — substância única, serve-se Spinoza, entre outros, do argumento ontológico, cuja maior é por êle assim enunciada: Id necessário èxistlt cujus nulla ratio vel causa datur quae jmpedlt quominus exsistat.
Β. Modos da substância. Todos os outros seres do universo são modos ou modificações finitas dos atributos da substância infinita.
Os corpos são modos de extensão, os espíritos, modos de pensamento. Entre estas duas manifestações modais da substância infinita corre um rigoroso paralelismo de tal forma que a cada manifestação de pensamento corresponde uma manifestação de extensão. Idem est ordo idearum et ordo rerum (133). Assim, no homem, a alma e o corpo são os dois aspectos de pensamento e extensão, sob os quais concebemos uma única realidade determinada. A totalidade dos modos finitos constitui a natura naturata em oposição à substância infinita, natura naturans.
Tal em suas linhas fundamentais o panteísmo de Spinoza.
Deus é a causa imanente de quanto existe (134). Sua evolução eterna obedece à lei férrea de uma inflexível necessidade, inerente à própria natureza. "Non datur contingens in rerum natura". A palavra livre, que, por vezes se encontra em Spinoza, significa apenas independente de determinação extrínseca.
C. Teoria do conhecimento — Passando ao estudo mais pormenorizado do homem, composto, como já vimos, de uma dupla série paralela de modos de pensamento e de extensão, distingue Spinoza, no conhecimento três fases ou graus: a) imaginação, conhecimento insuficiente, fragmentário, individual dos modos finitos; b) razão, conhecimento dedutivo das leis gerais e princípios comuns, mais perfeito por que nos representa as coisas sub specie quadam aeternitatis — é o conhecimento dos atributos; c) intuição, de todos o mais perfeito porque nos representa as coisas sub specie quadam aeternitatis dar lugar à contemplação de todas as coisas sub specie aeternitatis, na visão direta e compreensiva da substância única.
D. Moral — A moral do sistema é paralela à teoria psicologia do conhecimento; Em todas as coisas finitas há um impulso à própria conservação, um conatus existendi que lhes constitui a essência. Este impulso, quando acompanha o primeiro grau de conhecimento, assume a forma de emoção. Agindo pelas emoções (em cuja análise e classificação Spinoza revela notável agudeza de penetração psicológica) o homem acha-se num estado de escravidão. Para atingir o estado de liberdade, cumpre-lhe elevar-se ao conhecimento científico no qual às emoções sucede a vontade. Convencida então a inteligência da inexorabilidade das leis naturais identifica-se com a necessidade universal e assim de todo se liberta do jugo das paixões. O último grau de emancipação moral do homem e em que reside sua suprema beatitude corresponde à intuição da divina substância e consiste no amor intelectual de Deus e na feliz imortalidade.
Este último conceito de imortalidade pessoal reduzida, talvez, à persistência das idéias cujo objeto participa de algum modo da eternidade, é incerto e hesitante e não responde às doutrinas metafísicas precedentes.
(133) Ética, P. II, Prop. 7.
(134) Deus est rerum omnium causa Immanens.
Pelo -exposto vê-se que, na moral lembra Spinoza aos estóicos como já em metafísica lembrara aos neoplatônicos e a G. Bruno.
A liberdade, porém, de que êle nos fala não passa de uma palavra oca de sentido, e, por isso, sua moral é praticamente nula. Na realidade lógica do sistema, onde tudo é sujeito ao mais infran-gível determinismo, não há lugar para a atividade moral. Bem o dizem estas palavras suas: "Como o peixe é feito para nadar e a ave para voar, assim tem o sábio o direito de fazer o que lhe dita a razão e o insensato, outrossim, o de pôr em prática quanto lhe aconselha o apetite. Um e outro vivem em conformidade com a própria natureza".
Ε. Política — Em política, o filósofo holandês reproduz as teorias de Hobbes que logo exporemos, dele, porém, apartando-se na determinação da melhor forma de governo, que para Spinoza é a república, não o despotismo como pretendia o inglês.
121. JUÍZO SOBRE SPINOZA — Pelo método geométrico transladado para a filosofia, pelo apriorismo de suas especulações, pelo desprezo da tradição e pela antítese entre a extensão e o pensamento, Spinoza mostra-se verdadeiro discípulo de Descartes. Quanto ao conteúdo doutrinai de seu sistema parece, à primeira vista, h’aver entre os dois filósofos irredutível contraste. A divergência, porém, aparecerá talvez menos profunda se atentarmos mais à tendência dos princípios cartesianos, já exageradamente acentuada por Malebranche, do que ao enunciado formal de suas conclusões. Com esta ressalva podemos convir com Leibniz, em que Spinoza se li-mita a cultivar as sementes do cartesianismo (135).
Encarada diretamente, a filosofia de Spinoza, além de esbarrar no cúmulo de contradições inevitáveis a qualquer forma de panteís-mo que tenta, num esforço impossível, a conciliação dos inconciliáveis, incorre também em outras incoerências graves a que, talvez, se pudera esquivar.
A derivação do múltiplo do uno pela teoria dos modos, a tentativa de emancipar o homem conservando-o sujeito ao determinismo de uma evolução fatal, a construção de uma moral sobre a mais absoluta necessidade, são outras tantas teorias que não escapam à condenação de uma lógica rigorosa.
Destes múltiplos e contraditórios aspectos das doutrinas de Spinoza provém a diversidade de apreciações que se têm feito de sua filosofia.
(135) Não nos atrevemos, pois, a afirmar que o panteísmo do filósofo holandês seja o resultado lógico da filosofia cartesiana. Que historicamente Descartes tenha preparado Spinoza e influído intelectualmente na orientação de seu pensamento, de pleno acordo. Mas que haja entre os dois sistemas uma relação rigorosa de causa a efeito, um nexo de absoluta necessidade como o que liga uma conclusão às suas premissas é o que não vemos evidentemente, ainda que outros o tenham, talvez, levianamente afirmado,
BIBLIOGRAFIA
A melhor edição das obras completas de Spinoza é a de J. van Vloten et J P. N. Land, 4 vols., Hagae, 1914; — St. von Dunin-Borkowski, Spinoza, 4 vols., Münster, 1910-1933 (Obra capital) ; — t. Camerer, Die Lehre Spinoza’s, Stuttgart, 1914; — J. Stern, Die Philosophie Spinoza’s, Stuttgart, 1921; — J. R. Katm, Die Philosophie Spinoza’s, München, 1921; — P. L. Couchoud, Benoit de Spinoza, Paris, 1902; — Ph. Borell, Benoit Sp., Paris, 1911; — Ch. Bellangé, Spinoza et la phil- moderne, Paris, 1912; — F. Pollock, Spinoza, his life and philosophy, London, 1912; — C. Cipriani, Spinoza, Sassari, 1914. — V. Delbos, Le Spinozisme, Paris, 1916; — A. Guzzo II pensiero di Spinoza, Firenze, 1923; — P. Siwek, Spinoza et le panthéisme religieux, Paris, 1936. A bibliografia sobre Spinoza é muito rica, cfr. Ueberweq, Grundriss, t. ΙΠ, p. 664-673.
§ 3.° — Leibniz — Monadismo e harmonia preestabelecida
122. VIDA E OBRAS — Nasceu Godofredo Guilherme Leibniz em 1646, na cidade de Leipzig. Desde os mais verdes anos deu-se com alma ao estudo da ciência, passando os dias em sérias leituras, na rica biblioteca que lhe deixara seu pai, antigo professor da Universidade. Aos 20 anos, empreendeu uma série de viagens pela Europa, entrando em relações diretas com os maiores sábios de seu tempo, Newton, Huyghens, Malebranche, Spinoza, Arnauld, Boyle, Collins, com alguns dos quais manteve mais tarde assíduo comércio epistolar. Em 1675, nomeado conservador da biblioteca de Hannover perseverou no cargo durante 40 anos até à morte ocorrida em 1716.
Leibniz é um gênio portentoso na universalidade de seu saber. Historiador, filólogo, jurisconsulto, matemático (com Newton divide a glória de fundador do cálculo infinitesimal) filósofo e teólogo, excele em todas estas disciplinas e em mais de uma é mestre exímio dos que sabem. De caráter, era bondoso e conciliador e, se não chegou a ser católico, envidou esforços para aproximar de Roma os luteranos, entretendo, neste intuito, importante correspondência com Bossuet.
Suas idéias filosóficas acham-se disseminadas em várias obras, opúsculos, memórias e epístolas. São mais dignos de menção os tratados: Nouveaux essais sur l’entendement humain (1704), contra as teorias ideológicas de Locke; Essais de theodicée (1710), re-futação das objeções de Bayle contra a Providência e Monadologie (1714), exposição sumária da sua filosofia da natureza.
123. DOUTRINAS FILOSÓFICAS — Apesar da energia de suas protestações (136), Leibniz é ainda, pelo méto’do e pela tendência geral de seu pensamento, um discípulo de Descartes, mas discípulo independente e genial como Aristóteles fora de Platão e Tomás de Aquino de Alberto Magno.
Vendo as conseqüências arriscadas que encerravam os princípios cartesianos plenamente desenvolvidos por Malebranche e Spinoza, Leibniz volta ao mestre e corrige-lhe mais de urna teoria fundamental, restabelecendo como princípio inconcusso a veracidade natural do conhecimento, suprimindo a antítese exagerada entre a matéria e o espírito, modificando a noção de substância e resti-tuindo parcialmente a atividade aos seres criados.
(136) "Fateor me nihil esse minus quam cartesianum".
COSMOLOGIA — A. Monadologia. À concepção cartesiana dos corpos como substâncias extensas e inertes, Leibniz opõe o dinamismo monadológico. Toda substância é essencialmente ativa, quod non agit nec existit, e como a forca é simples, os corpos constam de elementos inextensos e ativos. Estas unidades simples de forças chamam-se mônadas. Sua atividade é exclusivamente imanente, não havendo, portanto, entre os seres criados verdadeira reciprocidade de ação. (Influência incônscia de Malebranche a quem Leibniz impugna). De dois modos, principalmente, manifesta-se esta atividade interna: pela percepção, representação mais ou menos viva que transforma cada mônada em um como espelho vivo de todo o universo e pela apetição, espécie de esforço pelo qual cada mônada tende à própria perfeição, passando de um estado a outro.
Não há duas mônadas perfeitamente iguais. A sua imensa série dispõe-se, segundo o grau de atividade representativa em escala hierárquica onde, em virtude do princípio de continuidade: natura non facit saltus, as transições se operam insensivelmente. Nesta escala, Leibniz distingue quatro grandes ordens: 1.* mônadas nuas que constituem o reino mineral e as plantas, dotadas de representação inconsciente (panpsiquismo) ; 2.a) mônadas sensitivas, capazes de representação consciente ou apercepção; constituem as almas dos brutos; 3.a mônadas racionais ou almas humanas, enriguecidas de conhecimento científico e consciência reflexa; 4.") mônada suprema ou Deus, absolutamente perfeita, causa eficiente de todas as outras.
B. Harmonia preestabelecida — Resta ainda um problema cos-mológico. Negada às mônadas a faculdade de agirem transiti-vamente, umas sobre as outras, como explicar a ordem do universo? Leibniz responde com a célebre teoria da harmonia preestabelecida. Deus ab aeterno, regularizou todas as ações das mônadas por tal forma que se correspondessem como se realmente houvesse entre elas um influxo mútuo de causalidade recíproca. Assim, um hábil relojoeiro constrói dois relógios, que sem se influenciarem mutuamente, marcam ao mesmo tempo as mesmas horas.
Parece que, nos últimos anos,. Leibniz renunciou à sua teoria das mônadas para voltar à matéria e forma de Aristóteles, mas não é ponto perfeitamente elucidado.
PSICOLOGIA — A. O homem". A alma humana é uma substância simples, espiritual, uma mônada superior em que a atividade
representativa e a apetitiva se acham em grau mais perfeito. Sua união com o corpo é explicada pela harmonia preestabelecida que exclui toda atividade recíproca.
"As leis que ligam os pensamentos da alma na ordem das causas finais e segundo a evolução das percepções devem produzir imagens que se encontram e concordam com as impressões dos corpos sobre os nossos órgãos; do mesmo modo, as leis dos movimentos do corpos, que se sucedem na ordem das causas eficientes também se encontram e concordam de tal maneira com os pensamentos da alma que o corpo é levado a obrar no tempo que ela quer" (137).
B. Teoria do conhecimento. Rejeitada a solução ontologista de Malebranche, a que êle qualifica de "Deus ex machina" e não podendo recorrer à atividade transitiva dos objetos, Leibniz propugna com Descartes, contra Locke, a existência de idéias inatas. Seu ina-tismo, porém, é muito moderado e aproxima-se da teoria escolás-tica. Não são as formas atuais do pensamento que são inatas, mas apenas a disposição, a potência de formá-las ao contato da realidade. As sensações, contudo, não são causa, mas simples ocasião do conhecimento intelectivo. Assim entendido, admite êle o princípio peripatético-escolástico, nil est in intellectu quod prius non fuerit in sensu, que Locke falseara em sentido sensista e ao qual Leibniz acrescenta: excipe nisi ipse intellectus (138), com exceção da propria inteligência com as suas leis e virtualidades.
A correspondência das idéias com o mundo exterior ou o seu valor objetivo é assegurado pela harmonia preestabelecida. As mônadas psicológicas evolvem da virtualidade ao ato cognoscitivo paralelamente à evolução das mônadas cósmicas.
Das idéias, cuja origem acabamos de explicar, formam-se os primeiros princípios que Leibniz reduz a dois: o de contradição, que rege o possível e o de razão suficiente que rege as existências. Um ser é possível quando não envolve contradição, é real quando há uma razão suficiente para explicar-lhe a existência.
C. Determinismo psicológico — Em virtude do princípio de razão suficiente a vontade é determinada nos seus atos pelo motivo mais forte que lhe apresenta a inteligência. Como, porém, inteligência e vontade são princípios ativos da mesma alma, a determinação volitiva não deixa de partir do próprio indivíduo, não cessa de ser espontânea e nesta espontaneidade do ser inteligente julga Leibniz consistir a verdadeira liberdade. Na realidade, porém, tal teoria salva do livre arbítrio apenas o nome. De fato achamo-nos em face de um dos aspectos do determinismo ao qual modernamente se tem dado o nome de determinismo psicológico.
(137) Essais sur la bonté de Dieu et la liberté de l’homme, p. I, parágrafo 62.
(138) Nouveaux essais, 1, II, c. I, parágrafo 2.
TEODICÉIA — O título de teodicéia (ϋωϋ δίκη) justificação de Deus foi pela primeira vez empregado por Leibniz, no seu sentido mais restrito e posteriormente estendido a toda a teologia natural.
A existência de Deus é provada: l.9) a posteriori pelo princípio de razão suficiente, que exige uma causa necessária como razão de quanto existe; 2.9) pela harmonia preestabelecida, que requer uma suprema Inteligência ordenadora; 3.?) a priori, pelo argumento on-tológico de S. Anselmo e Descartes que êle modifica dando-lhe a nova forma: Deus é possível, logo existe. É possível — porque suas per-feições não envolvem contradição. Logo existe — porque na idéia da essência de um Ser Perfeito, a possibilidade identifica-se com a existência.
Da sabedoria de Deus, infere Leibniz a sua teoria do otimismo. O mundo atual é para êle o mais perfeito dos mundos possíveis. A presença do mal concorre, pelo efeito dos contrastes, para a beleza do conjunto.
Sobre a existência do mal e a sua conciliação com a Providência, encontram-se na sua teodicéia páginas admiráveis de penetração metafísica.
No que diz respeito às relações entre a razão e a fé Leibniz encontra-se com os gênios de Agostinho e de Tomás d’Aquino. "Deux vérités ne pouvant se contredire, il ne saurait y avoir de l’opposition entre la raison et la foi non plus qu’entre la raison et l’expérience" (139).
"Pour être au dessus de la raison, la foi n’est point contraire à la raison" (140).
124. JUÍZO SOBRE LEIBNIZ — Ao invés de Descartes Leibniz conhece e estima a tradição e crê sinceramente numa "philosophia perennis" à quai aspira pertencer. Seu desejo é "conciliar Platão e Demócrito, Aristóteles e Descartes, os escolásticos e os modernos e ir ainda mais longe" (141). Cumpre, porém, confessar que nem sempre o conseguiu. Tão verdade é que nem ainda os grandes gênios logram furtar-se de todo às influências do tempo em que viveram. O método apriorístico de Descartes domina ainda a sua especulação. Um contato mais vivo com a realidade tê-lo-ia reconduzido às teses fundamentais de S. Tomás de Aquino, a quem êle tanto admirava. A negação da atividade transitiva, afrontando a mais clara das evidências experimentais leva-o ao inatismo das idéias e à teoria original da harmonia preestabelecida, com todas as suas conseqüências. A oposição ao mecanismo cartesiano e ao seu dualismo irredutível entre a matéria e o espírito arrasta-o ao excesso oposto de um dinamismo, que diminui a diferença entre espírito e matéria e reduz a extensão — outro atentado contra a evidência dos fatos — a um fenômeno subjetivo. A monadologia, que atesta a originalidade fecunda de seu espírito, lembra as sínteses platônicas: belas de poesia ideal, mas destituídas de fundamento inconcusso na realidade das coisas.
E’ para lastimar que Leibniz não tivesse realizado esse ecletismo Ideal.
(139) Theodic., conform, de la foi et de la raison, parágrafo 1 e 6.
(140) Ibid. nn. 23, 60 e segs.
(141) "J’ai été frappé d’un nouveau système… qui parait allier Platon avec Démocrite, Aristote avec Descartes, les scolastiques avec les modernes, la théologie et la morale avec la raison: il semble qu’il prend le meilleur de tous côtés et qu’après il va plus loin qu’on est allé encore". Nouveaux Essais. L. I, c. 1.
125. DISCÍPULOS DE LEIBNIZ — Até o advento de Kant, Leibniz dominou o pensamento alemão. Entre os que velejaram na sua rota citamos:
Cristiano Wolff (1679-1754), que deu forma sistemática à filosofia do mestre, alterando-a em alguns pontos e dividiu a metafísica em ontologia, cosmologia, psicologia e teologia racional, divisão que geralmente tem sido adotada pelos autores posteriores.
Alex. Baumgarten (1714-1762), que publicou um tratado sobre o belo ao qual por primeiro deu o nome impróprio de estética, de αίσιΐάνοηαί — sentir. Na Itália, o jesuíta Boscovich (1711-1787), professor no Colégio Romano e matemático exímio, defendeu, acerca da constituição da matéria, uma teoria dinamista muito semelhante ao monadismo leibniziano.
Em algumas idéias de Leibniz prende também suas raízes a escola sentimentalista alemã, que precedeu imediatamente a Kant. A tendência dessa escola é valorizar os elementos sentimentais e afetivos da nossa vida psíquica, quase sempre em detrimento dos racionais e intelectivos. Entre os seus principais representantes mencionamos: J. N. Tetens (1736-1807) que vulgarizou a divisa tripartida das faculdades (inteligência, vontade e sentimento) F. A. Jacobi (1743-1819) que, num sentimento íntimo semelhante à intuição imediata, pôs o último critério de certeza das verdades mais importantes e fundamentais, como a existência de Deus. Fo um dos primeiros adversários de Kant.
BIBLIOGRAFIA.
Infelizmente não possuímos ainda boa edição crítica das obras Leibniz. Quanto às obras filosóficas temos: Oeuvres philosophiques de avec une introduction et des notes par P. Janet, Paris, 1866, 2.a ediçl 1900: — Die philosophischen Schriften von L. hq. von C. I. Gerhar-7 vols., Berlin. 1875-90. — Maine de Biran. Exposition de la doctrine phi, sophique de Leibniz Paris, 1819: — Ch. Secrétan, De la philosophie Leibniz. Lausanne. 1840: — E. Boutroux, La mona.doloqie de Leibniz, I ris. 1896: — Cl. Piat. Leibniz. Paris. 1915; — K. Fischer, G. W. Leibi Leben, Werke u. Lehre. Heidelberg, 1920; — E. Cassirer, Leibniz System s. Wissenschaft. Grundlage, Marburgo. 1902; — H. Schwalenbach, Leib München. 1921; — B. Rüssel. A critical exposition of the philosophy Leibniz. Cambridge, 1900. — Olgiati. II significato storico di Leibniz. lano, 1930: — Stammler, Leibniz, München, 1930; — H. W. Carr, Leib London, 1900. Copiosa bibliografia, cf. Ueberweg, op. cit., p. 673-681.
Fonte: Agir, 20ª ed.
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