MILAGRES – Dicionário de Voltaire

Dicionário Filosófico de Voltaire – verbetes selecionados

MILAGRES

Um milagre, pela força da palavra, é uma coisa admirável. No fundo, tudo é milagre. A ordem prodigiosa da natureza, a rotação de cem milhões de globos em torno de milhões de sóis, a actividade da luz, a vida dos animais, são milagres perpétuos.

Segundo as ideias aceitas, chamamos milagre a violação dessas leis divinas e eternas. Que haja um eclipse do sol durante um plenilúnio, que um morto faça duas léguas a pé, levando a cabeça debaixo do braço, chamaremos a isso milagre.

Vários físicos sustentam que, nesse sentido, não há milagres; e eis aqui seus argumentos. Um milagre é a violação das leis matemáticas, divinas, imutáveis, eternas. Pelo exposto, um milagre encerra uma contradição nos seus termos. Uma lei não pode ser imutável e violada. Mas uma lei, lhes diremos, tendo sido estabelecida pelo próprio Deus, não pode ser sustada pelo seu autor? Eles vão à ousadia de responder que não, é impossível um ser infinitamente sábio ter criado leis para violá-las. Não poderia, dizem eles, desarranjar sua máquina para fazê-la funcionar melhor. Ora, é claro que Deus fez esta imensa máquina tão boa quanto pôde; se lhe notou qualquer imperfeição resultante da natureza da matéria, removeu-a desde o começo; não precisará mudar mais nada.

Além disso, Deus nada pode fazer sem razão; ora, que razão o levaria a desfigurar por algum tempo sua própria obra?

É em favor dos homens, dir-lhes-emos. Será então em favor de todos os homens, respondem eles, pois é impossível conceber a natureza divina trabalhando por alguns homens em particular e não para todo o género humano, ainda mesmo seja o género humano bem pouca coisa: este não passa de um pequeno formigueiro em comparação com todos os seres que enchem a imensidão. Ora, não parecerá a mais absurda das loucuras imaginar o Ser supremo, invertendo em favor de três ou quatro centenas de formigas desse pequeno monte de lodo, o jogo eterno das molas imensas que fazem mover o universo?

Mas suponhamos Deus querendo distinguir um pequeno número de homens por favores particulares: ser-lhe-á necessário mudar o que estabeleceu para todos os tempos e todos os lugares? Ele não tem, decerto, nenhuma necessidade dessa modificação, dessa inconstância, para favorecer suas criaturas; seus favores estão nas próprias leis. Tudo previu, tudo determinou nelas; todas obedecem, irrevogavelmente, à força transmitida por Deus, para sempre, à natureza.

Por que faria Deus um milagre? Para cumprir certo desígnio com relação a algumas criaturas humanas? Diria Ele, pois: "Não pude chegar pela fabricação do universo, por meus decretos divinos, minhas leis eternas, a cumprir um certo propósito; vou mudar minhas ideias eternas, minhas leis imutáveis, a fim de executar o que não consegui por meio delas." Seria uma confissão de fraqueza e não do seu poder. Seria, parece, a mais inconcebível contradição. Assim, ousar atribuir a Deus milagres, é insultá-lo (se podem os homens insultar Deus), é dizer-lhe: "Sois um ser fraco e inconsequente". É, pois, absurdo acreditar em milagres; equivale a desonrar, de qualquer forma, a Divindade.

Apertamos esses filósofos, dizendo-lhes: "Podeis exaltar a imutabilidade do Ser supremo, a eternidade de suas leis, a regularidade de seus mundos infinitos; mas nosso peda-cinho de lama esteve sempre cheio de milagres; as histórias se acham tão cheias de prodígios quanto de acontecimentos naturais. As filhas do grande sacerdote Agno transformavam tudo que queriam em trigo, em vinho ou em óleo; Atália, filha de Mercúrio, ressuscitou várias vezes; Esculápio ressuscitou Hipólito; Hércules arrancou Alceste à morte; Hera voltou ao mundo, depois de haver passado quinze dias nos infernos; Rómulo e Remo nasceram de um deus e de uma vestal; o Paládio caiu do céu na cidade de Tróia; a cabeleira de Berenice tornou-se um feixe de estrelas; a cabana de Baucis e Filemon foi transformada num soberbo templo; a cabeça de Orfeu transmitia oráculos, depois da morte deste; as muralhas de Tebas construíram-se por si mesmas ao som da flauta, na presença dos gregos; as curas feitas no templo de Esculápio são inumeráveis, e temos ainda monumentos cheios dos nomes das testemunhas oculares dos milagres de Esculápio.

"Nomeai um povo entre o qual não se tivessem operado prodígios incríveis, sobretudo no tempo em que não se sabia ler nem escrever".

Os filósofos não respondem a estas objecções senão rindo e sacudindo os ombros; mas os filósofos cristãos dizem: "Acreditamos nos milagres operados em nossa santa religião; acreditamos pela fé e não pela razão que nos preservamos de escutar, pois quando fala a fé, estamos fartos de saber que a razão não deve pronunciar uma palavra. Temos uma crença firme e íntegra nos milagres de Jesus Cristo e dos apóstolos, mas permiti-nos duvidar um pouco dos outros; concordai, por exemplo, que suspendamos o nosso julgamento no que se refere a um homem simples a quem se deu o nome de grande. Assegura ele que um pequeno monge estava tão acostumado a fazer milagres, que o prior o proibiu de tal, a fim de utilizar-se do seu talento. O mon-gezinho obedeceu, mas tendo visto um pobre pedreiro prestes a cair do alto de um tecto, hesitou entre o desejo de salvar-lhe a vida e a santa obediência. Ordenou somente ao pedreiro que ficasse no ar até nova ordem, e correu depressa a dar parte da situação ao prior. O prior deu-lhe absolvição do pecado que havia cometido, começando a fazer um milagre sem licença, e permitiu-lhe completá-lo, uma vez que se resumisse nisso e não voltasse a praticar outro. Concordamos com os filósofos: é preciso suspeitar um pouco desta história."

Mas como ousais negar, dizem eles, a aparição de São Gervásio e São Protásio, em sonho, a Santo Ambrósio, ensi-nando-lhe o lugar onde estavam suas relíquias, e de as ter Santo Ambrósio desenterrado e com elas curado um cego? Santo Agostinho se achava, então, em Milão; é ele quem nos reporta essse milage: "Immenso populo leste", diz na sua Cidade de Deus, livro XXII. Eis um milagre dos mais provados. Os filósofos protestam não acreditar em nada; que Gervásio e Protásio não apareceram a ninguém; que pouco importa ao género humano saber onde estão os restos de suas carcassas; que não têm mais fé nesse cego do que no de Vespasiano; que se trata de um milagre inútil e Deus não faz nada de inútil; e se conservam assim firmes nos seus princípios. Meu respeito por São Gervásio e São Protásio não me permite ser da opinião dos filósofos; dou conta somente da incredulidade deles. Fazem grande mossa desta passagem de Luciano na Morte do Peregrino: "Quando um malandro hábil torna-se cristão está certo de enriquecer." Mas como Luciano é um autor profano não deve possuir nenhuma autoridade entre nós.

Tais filósofos não se resolvem a crer nos milagres ope-rados no século segundo. Testemunhas oculares houveram por bem escrever que o bispo de Esmirna, São Policarpo, tendo sido condenado à fogueira e atirado nas chamas, Ouviu-se uma voz do céu a gritar: "Coragem, Policarpo! Sois forte, mostrai-vos homem!", e então as labaredas da fogueira se afastaram do corpo e formaram um pavilhão de fogo acima da cabeça, enquanto do meio das chamas saía uma pomba. Afinal, foram obrigados a cortar a cabeça dePolicarpo. "Que prova esse milagre? — dizem os incrédulos — por que as chamas teriam perdido sua natureza e o machado do executor não perdera a sua? De onde vem que tantos mártires tenham saído sãos e salvos do óleo fervente e não pudessem resistir à lâmina do gládio?" Respon-de-se-lhes: é a vontade de Deus. Mas os filósofos desejariam ter visto tudo isso com seus próprios olhos, antes de crer. Os que fortificam o raciocínio com a ciência, vos dirão que os padres da Igreja confessavam, frequentemente, não ocorrerem mais milagres no seu tempo. São Crisóstomo diz expressamente: "Os dons extraordinários do espírito tinham sido concedidos mesmo aos indignos, porque então a Igreja necessitava de milagres; mas hoje não são dados mesmo aos dignos, porque a Igreja já não os necessita." Em seguida, confessa não haver mais pessoa que ressuscite os mortos ou cure os enfermos.

O próprio Santo Agostinho, apesar do milagre de Gervásio e Protásio, diz na Cidade de Deus: "Por que esses milagres que se faziam outrora não se fazem mais hoje?" E dá a mesma razão: "Cur, inquiunt, nunc ilia miracula quae praedicatis jacta esse non fiunt? Possem quidem dicere necessária prius fuisse quam crederet mundus: ad hoc, ut crederet mundus."

Objecta-se aos filósofos que Santo Agostinho, apesar desta confissão, fala de um velho remendão que, tendo perdido a roupa, foi orar na capela dos vinte mártires; e ao voltar encontrou um peixe, dentro do qual havia um anel de ouro e que o cozinheiro ao preparar o peixe disse ao homem "Eis o que os vinte mártires vos dão".

A isso os filósofos respondem nada existir nesta história capaz de contradizer as leis da natureza: a física não foi absolutamente atingida pelo facto de um peixe engolir um anel de ouro e de um cozinheiro dar esse anel a um remendão, e não há em tal coisa nenhum milagre.

Se fizermos lembrar a esses filósofos que, segundo São Jerónimo, na Vida do Eremita Paulo, este eremita teve várias conversas com sátiros e faunos, e um corvo lhe trouxe todos os dias, durante trinta anos, a metade de um pão para o jantar e um pão inteiro no dia em que Santo António veio vê-lo, eles poderão responder ainda tudo isso não ser absolutamente contra a física; os sátiros e faunos podem ter existido, e em todo caso se o conto não passa de uma puerilidade, isto nada tem de comum com os milagres do Salvador e dos apóstolos. Alguns bons cristãos combateram a história de São Simão Estelita, escrita por Teodureto. Muitos milagres, tidos por autênticos na Igreja grega, foram postos em dúvida por vários latinos, da mesma maneira que os milagres latinos têm sido suspeitos pela Igreja grega; e em seguida, vieram os protestantes, negando os milagres de uma e de outra Igreja.

Um sábio jesuíta, tendo pregado muito tempo nas índias, lamenta-se de que nem seus confrades nem eles conseguissem jamais fazer um milagre. Xavier lamenta-se em várias cartas de não possuir o dom de aprender línguas; diz que, entre os Japoneses, fica mudo como uma estátua. Entretanto, os jesuítas escreveram que ele havia ressuscitado oito mortos; é muito, mas devemos considerar haver Xavier feito essas ressurreições a seis mil léguas daqui. Encontramos depois pessoas pretendendo ter sido a dissolução dos jesuítas na França um milagre muito maior do que os de Xavier e de Inácio.

De qualquer forma, todos os cristãos concordando serem os milagres de Jesus Cristo e dos apóstolos de uma verdade incontestável, acham que podemos duvidar, com toda firmeza, de alguns milagres feitos nestes últimos tempos e que não tiveram uma autenticidade definitiva.

Desejar-se-ia, por exemplo, para um milagre ser bem constatado, fosse ele feito na presença da Academia das Ciências de Paris ou da Sociedade Real de Londres e da Faculdade de Medicina, assistidos por um pelotão do regimento de guardas, para conter o povo, capaz, por indiscrição, de impedir a execução do milagre.

Perguntou-se, certo dia, a um filósofo, o que ele diria se visse o Sol parar, isto é, se o movimento da Terra em torno desse astro cessasse, se todos os mortos ressuscitassem, todas as montanhas em conjunto fossem se atirar ao mar, e tudo para provar alguma verdade importante, como, por exemplo, a graça versátil. "O que eu diria?" — respondeu o filósofo. — Tornar-me-ia maniqueu, diria haver um princípio que desfaz o que outro fez.

Fonte: Voltaire, Clássicos Jackson. Trad. De Brito Broca

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