O Pensamento Vivo de Michel de Montaigne, por André Gide

MONTAIGNE
Por André   Gide.

Tradução de Sérgio
Milliet

Fonte: Biblioteca do Pensamento Vivo


Montaigne é autor de um só livro: Ensaios. Mas
nesse livro único, escrito sem estrutura preestabelecida, sem
método, ao acaso dos acontecimentos e das leituras, procura
entregar-se por inteiro aos seus leitores. Publica quatro edições
sucessivas dos Ensaios. Ia dizer quatro moagens: a
primeira, com 47 anos, em 1580. Volta ao texto, corrige-o, remata-o
e, ao morrer (em 1592) deixa um exemplar da obra sobrecarregado de
variantes e de acréscimos, que as edições
posteriores tem que tomar em consideração. Entrementes
Montaigne viaja pela Alemanha do Sul e pela Itália (1580-81) e
desempenha, de 1581 a 1585, as importantes funções de
Maire (1) de Bordéus. Essa experiencia da vida pública,
nesses tempos assaz perturbados pelas guerras religiosas, essas
observações colhidas nos países estrangeiros,
Montaigne as comunicará a seus leitores para que delas se
beneficiem.


(1)    Cargo equivalente ao de Prefeito em nossa
organização administrativa (N. do T.).


Mas desde então, desviando o espírito dos negócios
públicos para ocupar-se tao somente consigo mesmo (quero dizer
com seu pensamento próprio), vai fechar-se em sua "livraria"
(2). E até a morte não mais deixará o castelo de
Périgord, onde nasceu. Escreve novos capítulos, que
formarão o terceiro livro dos Ensaios; revê os
dois primeiros, corrige-os, melhora-os, junta-lhes seiscentos
acréscimos. Acontece-lhe também, tornando-o mais
pesado, atravancar o texto original com montes de citações
colhidas em suas constantes leituras, pois Montaigne continua
persuadido de que tudo foi dito, e preocupado com mostrar que o
espírito do homem em toda parte e em todos os tempos permanece
igual em sua essência Essa abundância de citações,
que tornam certos capítulos dos Ensaios um bolo
compacto de autores gregos e latinos, nos induziria a duvidar da
originalidade de Montaigne, não fosse ela viva a ponto de
sobrepujar a mixórdia.


O exibicionismo erudito não era peculiar a Montaigne, nessa
época em que a cultura grega e romana ainda subia a cabeça.
Observa Gibbon, muito judiciosamente, que o estudo das letras
antigas, bem anterior ao início do renascimento, antes
retardou do que fez progredir o desenvolvimento intelectual dos povos
do Ocidente. É que em tal estudo se procurava, então,
menos uma inspiração e um trampolim do que modelos. A
erudição no tempo de Bocácio e Rabelais pesava
sobre as inteligencias, e longe de ajudá-las a se libertarem
as sufocava. A autoridade dos antigos, e em particular de
Aristóteles, atolava a cultura numa rodeira, e durante o
século XVI a Universidade de Paris quase que só formou
pedantes e parlapatões


(2) Entre aspas no texto original. Livraria no francês do
século XVI tinha o sentido de biblioteca. Em inglês é
ainda o vocábulo usado "library" (N. do T.).


Não chega Montaigne a rebelar-se contra essa erudição
livresca, mas soube tao bem assimilá-la, faze-la sua, que em
nada ela lhe perturba o pensamento. E nisso se diferencia dos demais.
Quando muito, atendendo a moda do dia, atopeta seus escritos de
citações Mas observa: "De que nos vale ter o
ventre cheio de viandas se não se digerem, se não se
transformam em nós mesmos, se não nos engordam e
fortalecem?" (Livro I, cap. 25). Também, e gostosamente,
se compara as abelhas que "rapinam aqui e acolá as flores
mas, em seguida, com seu furto fabricam o mel, que é
exclusivamente seu".


O êxito dos Ensaios seria inexplicável sem a
extraordinária personalidade do autor. Que novidade trazia ao
mundo? O conhecimento de si mesmo; e qualquer outro conhecimento lhe
parece incerto; mas o ser humano que descobre, e que nos revela, é
tao autentico, tao verdadeiro, que nele todos os leitores dos Ensaios
se reconhecem.


Em cada época da história uma imagem convencional da
humanidade tenta cobrir esse ser real. Montaigne afastará a
fantasia para alcançar o essencial; se o consegue, fá-lo
por um esforço assíduo de singular perspicácia:
opondo a convenção, as crenças aceitas, aos
conformismos, um espírito crítico sempre alerta, a um
tempo flexível e tenso. Malabansta, com tudo divertido,
sorridente, indulgente mas sem  complacência, 
procura  conhecer,  porem não moralizar.


Para Montaigne o corpo importa tanto quanto o espírito; não
separa um do outro e evita cuidadosamente apresentar-nos seu
pensamento de um modo abstrato. É portanto muito importante
vê-lo antes de ouvi-lo, Alias ele próprio nos fornece
todos os elementos de seu retrato de corpo inteiro.   
Observemo-lo.


De estatura um pouco pequena, tem o rosto cheio sem ser gordo. Usa
a barba toda, segundo a moda da época, mas não muito
longa. Todos os sentidos são nele "inteiros , quase
perfeitos. Embora tenha abusado, licenciosamente, de uma saúde
robusta, esta se mantém garbosa, apenas de leve alterada pela
pedra aos 47 anos.    Seu andar é firme; seus
gestos arrebatados; sua voz alta e sonora. Fala de bom grado, sempre
com veemência, agitando-se muito. Come de tudo e com tal
voracidade que lhe ocorre morder os dedos, pois nessa época
ainda não se usavam garfos. Monta a cavalo seguidamente e
mesmo em sua velhice as mais longas cavalgadas não o fadigam.
Dormir, diz-nos, toma grande parte de sua vida.


A importância de um autor decorre não somente de seu
valor próprio mas ainda, e em ‘boa parte, da oportunidade de
sua mensagem. Alguns  há  cuja mensagem tem 
hoje   apenas uma importância histórica e já
não repercute mais; em tempos idos terá acordado
consciências,  alimentado  entusiasmo, provocado 
revoluções; não nos diz mais respeito.  
Os grandes autores são aqueles que não satisfazem
somente as necessidades de um país e de uma época mas
fornecem um alimento suscetível de saciar as fomes diversas de
nacionalidades diferentes e de gerações sucessivas. 
"Um leitor capaz descobre   muitas  vezes 
nos   escritos   de   outrem qualidades
diversas das que o autor neles pôs ou percebeu; e empresta-lhes
assim sentidos e aspectos mais ricos", diz Montaigne 
(Livro I, cap. 25).    Será ele próprio
"capaz" e poderá responder as novas perguntas que
podem ter em vista  fazer-lhe  os   "leitores  
capazes"   da jovem América?   Quero
crer que sim.


Em nossa época, em qualquer país, os espíritos
construtores são particularmente apreciados; aquilo por que
mais se felicita um autor é o fato de propor-nos um sistema
bem ordenado, um método para a solução dos
angustiosos problemas políticos, sociais e morais que
atormentam, mais ou menos, todos os povos e cada um de nós em
particular. Em verdade Montaigne não nos traz nenhum método
(de resto um método útil em sua época seria
praticável hoje em dia), nenhum sistema filosófico ou
social. Nada menos ordenado que seu pensamento; deixa-o brincar ao
acaso, vagabundear ao léu. E mesmo a sua dúvida
perpétua, que levou Emerson a considerá-lo o mais
perfeito representante do cepticismo (i. e. do anti-dogmatismo, do
espírito de pesquisa e investigação),
compara-se, já o disseram, a esses remédios purgativos
que o paciente expele juntamente com as matérias por eles
varridas. Porém assim como muitos viram em seu "Que
sais-je" a última palavra de sua sabedoria e do seu
ensinamento, a mim tal conclusão não satisfaz. Não
é o ceticismo o que me agrada nos Ensaios, nem é
essa a lição que neles vou buscar. Um "leitor
capaz" saberá encontrar em Montaigne mais e melhor do que
dúvidas e interrogações


Quer parecer-me que ante a pergunta atroz de Pilatos, cujo eco
repercute através dos tempos::  "Que é a
verdade?", Montaigne encampa, ainda que de um modo totalmente
humano e profano, e em sentido muito diferente, a de uma resposta de
Cristo;   "Eu sou a verdade". Montaigne 
estima   (é  o  que isso  quer 
dizer) nada   me   ser   possível  
conhecer   realmente senão ele próprio.  
E é o que o induz a tanto falar de si; pois o conhecimento 
próprio lhe torna mais importante do que qualquer outro. "É
preciso, escreve, tirar a máscara tanto das coisas como das
pessoas".    (Livro 1, cap. 20). E para
desmascarar-se ele se retrata.   E como máscara é
mais do país e da época que do homem, sobretudo pela
máscara é que as pesoas diferem;  de maneira 
que  no  indivíduo verdadeiramente desmascarado
poderemos reconhecer com facilidade nosso semelhante.


Montaigne chega mesmo a pensar que o retrato que apresenta de si
pode tornar-se de interesse tanto mais geral quanto mais particular
se revelar; e é em razão dessa verdade profunda que
tamanho interesse devotamos a seu retrato, pois "todo homem traz
em si a forma total da condição humana" (Livro
III, cap. 2). Há mais: Montaigne está convencido de que
"o ser verdadeiro é o princípio de uma grande
virtude" (Livro II, cap. 18), como diria Píndaro; e essas
palavras admiráveis que Montaigne toma de Plutarco, o qual as
tirou de Findado, eu as faço minhas; desejaria inscreve-las no
frontispício dos Ensaios, pois o que se exprime
sobretudo nelas é que constitui o ensinamento que colho em
toda a obra.


Entretanto não parece que Montaigne tenha desde logo
percebido, ele próprio,  o  alcance e a ousadia
dessa resolução tomada de só aceitar a si mesmo
verdadeiro e só se retratar com fidelidade.   
Daí essa hesitação inicial de seu traço,
esse abrigo que procura nos densos matagais  da história,
esse amontoado de citações e de exemplos (ia dizer de
"autorizações"), esse titubear infindável.  
Interessa-se por si a princípio confusamente, sem saber com
exatidão o que mais importa e apreensivo quanto ao que merece
maior atenção, pois talvez seja o que mais omissível
se apresenta e o  que mais  comumente  se 
despreza.     Tudo, nele próprio,
permanece curioso a seus olhos, divertido e surpreendente.  
"Não vi no mundo monstro ou milagre mais manifesto do que
eu mesmo; fazemo-nos ao estranho, qualquer que seja, pelo  uso 
e pelo  tempo,  porém  quanta mais me frequento
e me conheço mais a minha deformidade me espanta, menos
entendo o que vai em mim".    Bem divertido é
ouvi-lo falar assim de sua deformidade, quando-o que nele amamos 
é  precisamente   o  que  nos  
permite identificá-lo como igual a nós, homem
simplesmente, homem comum.


É somente a partir do terceiro e último livro dos
Ensaios (que não figura nas primeiras ediç~pes)
que, em plena posse, não de si mesmo (não o estará
nunca, nem ninguém o poderá estar jamais) mas de
seu assunto, Montaigne não mais titubeia; sabe então o
que quer dizer, o que importa dizer, e di-lo excelentemente, com uma
graça na maneira, uma jovialidade, uma felicidade de expressao
e uma sutileza incomparáveis.


"Os outros formam o homem (os moralistas), eu o relato",
escreve (Livro III, cap. 2); e logo adiante mais sutilmente: "Não
pinto o ser, pinto-lhe a passagem" (os alemães diriam o
"werden"). Com efeito, Montaigne mostra-se sempre
preocupado com o perpétuo fluxo de todas as coisas e, com tais
palavras aponta a instabilidade da personalidade humana, que nunca é
e apenas toma consciência de si mesma num fugidio "devenir".
Pelo menos, em meio ao desmoronamento de todas as outras, cresce essa
certeza de que acerca do assunto se mesmo, ele, Montaigne, é
"o mais sábio homem vivo"; e de que "jamais
nenhum outro chegou com maior precisao e amplitude ao fim proposto a
sua tarefa", para a qual somente uma virtude se exige, "a
fidelidade". E Montaigne acha que pode advertir: "esta aí
se encontra, a mais sincera e a mais pura".


*    *    *


Creio provir o grande prazer que nos proporcionam os Ensaios do
grande prazer que Montaigne experimentou ao escreve-los e que
sentimos, por assim dizer, em cada frase. De todos os capítulos
que compoem os três livros dos Ensaios um só é
francamente fastidioso; é o maior de todos, o único
escrito com aplicaçaoaplicação, seqüência
e. cuidado na composição: o da "Apologia de
Raymond de Sebonde", filósofo espanhol do século
XV, que ensinou medicina na Universidade de Toulouse e de quem
Montaigne traduzira penosamente a "Theologia Naturalis" a
pedido de seu pai. "Foi uma UEFA bem estranha e nova para mim;
mas gozando então a felicidade de uns lazeres e não
podendo nada recusar as ordens do melhor dos pais, levei-a a cabo
como pude" (Livro II, cap. 12). Esse capítulo que se
colocou entre os do segundo livro dos Ensaios foi entretanto o
primeiro que Montaigne escreveu. É dos mais célebres e
mais amiúde citado, pois figura entre aqueles em que o
pensamento de Montaigne, tao desordenado e naturalmente erradio, se
esforça mais seriamente por desenvolver uma espécie de
doutrina e por dar uma aparente consistência a seu
inconsistente ceticismo. Mas, exatamente porque o refreia sem cessar,
seu pensamento perde aqui toda a sua graça, todo o encanto
delicioso de sua despreocupada ociosidade; sentimos que o dirige para
um objetivo e seu pensamento nos agradará sobretudo quando,
mais tarde, ele o deixar colher, ao acaso dos encontros, todas as
flores dos atalhos inesperados pelos quais se aventura hesitante, sem
traçado preconcebido. Compraz-me observar aqui que as obras
mais felizes, mais belas, são também aquelas que o
autor leve maior alegria e maior prazer em escrever, aquelas em que
menos se sentem o esforço e o controle. Em matéria de
arte de nada serve a "seriedade"; o prazer é o
melhor dos guias. Em todos, ou em quase todos os outros escritos dos
Ensaios, o pensamento de Montaigne permanece por assim dizer
no estado fluido; tao hesitante, tao cambiante e mesmo contraditório,
que com o correr dos tempos todas as interpretações lhe
puderam ser dadas. Alguns, como por exemplo Pascal e Kant, procuram
descobrir um cristao em Montaigne; outros, como Emerson, vêem
nele um protótipo do célico; outros um precursor de
Voltaire. Sainte-Beuve chega a julgar os Ensaios uma espécie
do preparação, de antecâmara, para a Ética
de Spinoza. Porém Sainte-Beuve parece-me Mais perto da
verdade quando escreve: "A pretexto de se particularizar, de se
enfeixar cm suas manias singulares, atingiu um recanto de todos. E
nesse seu retrato (no retrato que de si mesmo traçou com
displicencia, sem pressa, retocando-o sem cessar) foi, na medida
mesmo em que se pormenorizou a si próprio, o melhor pintor, e
o mais hábil, da maioria dos homens". "Ondulante e
diverso" diria Montaigne de si mesmo. E também "Todos
trazem o seu bem em si" (Port-Royal; III, cap. 2).


Julgo que o fato de ter aceito as inconsequeneias e as
contradições de seu próprio eu constitui uma
grande força em Montaigne. Logo no início do segundo
livro dos Ensaios a frase seguinte a um tempo nos desperta e
nos alerta: "Os que se dedicam ao controle das ações
humanas encontram o maior obstáculo em juntá-las e
dar-lhes igual lustre, pois elas se contradizem comumente de tao
estranha maneira que parece impossível terem saído da
mesma fonte" (Livro I, cap. 1). Essa inconsequencia do ser
humano nenhum dos grandes especialistas do coração,
Shakespeare, Cervantes ou Racine, deixou de percebe-la até
certo ponto. Mas sem dúvida alguma o estabelecimento
provisório de uma psicologia algo sumária, de grandes
linhas determinadas e fixas, se fazia necessário de início
a construção de uma arte clássica. Era preciso
que houvesse amorosos totalmente amorosos, avaros totalmente avaros,
ciumentos inteiramente ciumentos, e não homens que fossem a um
tempo um pouco tudo isso. Montaigne refere-se a esses "bons
autores" (e o que diz se aplica aos que


vieram depois, mas ainda do que aos que já conhecia) que
"escolhem um caráter universal, e de acordo com a imagem,
vão acertando e interpretando as ações do
personagem; e se não conseguem torce-las suficientemente
apelam para a dissimulação" (Livro II, cap. 1). E
acrescenta: "Augusto lhes escapou" assim como
Saint-Evremont dirá mais tarde: "Há refolhos e
meandros em nossa alma que lhe escaparam (a Plutarco)… julgou os
homens grosseiramente e não percebeu a que ponto são
contraditórios em si mesmos… O que lhe parecia inconsequente
ele o atribuía a causas estranhas… que Montaigne compreendeu
muito melhor". Sou de opinião que Montaigne soube ver
muito mais do que apenas "a inconstância" como
Saint-Evremont. Creio que debaixo dessa palavra se esconde em verdade
o problema essencial, que só muito mais tarde será
ventilado por Dostoiewsky, e em seguida por Proust. O que levará
alguns a observarem: "O que aqui se coloca em debate é a
própria noção do homem sobre a qual vivemos",
noção que Freud e outros, na atualidade, procuram
destruir. É, talvez, pelas súbitas luzes jogadas
inopinadaiiiciíle, e como que involuntariamente, sobre as
fronteiras da personalidade e sobre a instabilidade do eu, que
Montaigne me parece mais surpreendente. É por elas que nos
toca mais diretamente.


Sem dúvida os contemporâneos de Montaigne
menosprezaram esses trechos que mais nos comovem hoje; não
souberam vê-los ou, pelo menos, avaliar-lhes a importância.
E talvez o próprio Montaigne, compartilhando dessa indiferença
assim como compartilhava da curiosidade de sua época pelo que
já agora não nos interessa, dissesse volvendo a terra
hoje em dia: "Se me houvesse passado pela cabeça que isso
vos preocuparia diria muito mais!" Porque não o fizestes?
Pois não nos importa que agradásseis a vossos
contemporâneos, mas sim a nós mesmos. É as mais
das vezes pelo que lhe censurou o desdenhou a sua época que um
escritor consegue alcançar-nos através dos tempos.
Faz-se mister uma perspicácia singular para discernir entre as
preocupações do dia aquilo que poderá atrair o
interesse das gerações porvindouras.


Antes a volúpia do que o amor parece ter desempenhado papel
importante na vida de Montaigne. Casou, ao que se presume, sem grande
entusiasmo, e se ainda assim foi bom marido não deixou de
escrever já no fim da vida: "Será talvez mais
fácil privar-se por completo das relações
sexuais que permanecer sempre estritamente fiel ao dever em companhia
de uma esposa" (Livro II, cap. 33), o que não comprova em
absoluto que o tenha feito. Tinha um triste conceito das mulheres, e,
passado o prazer que lhe davam, relegava-as aos cuidados do lar.
Anotei, nos Ensaios, os trechos em que Montaigne a elas se
refere; não há um só que não seja
injurioso. Quanto aos filhos que teve, informa-nos sumariamente de
que "morreram todos na primeira infância" (Livro II,
cap. 8). Uma única filha escapa a tal infortúnio, e
essas desgraças sucessivas não parecem te-lo afeado
demasiado.


Entretanto Montaigne não é incapaz de simpatia. Em
especial pelos pequenos e humildes. "Dedico-me de bom grado aos
pequenos, por uma natural compaixão que muito pode sobre mim"
(Livro III, cap. 13). Mas para equilíbrio de sua razão
é necessário que reaja imediatamente; "Compadeço-me
ternamente das aflições alheias e choraria facilmente
em companhia de outrem se soubesse chorar". (Livro II, cap. 11).
La Rochefoucauld dirá anos mais tarde, antecipando-se ao
famoso "sejamos duros" de Nietzsche: "Sou pouco
sensível a piedade e desejara não o ser em absoluto".
Mas tais declaracões me comovem particularmente quando provem
daqueles que, como Montaigne ou Nietzsche, tem a alma naturalmente
terna.


Da vida sentimental de Montaigne somente a amizade encontra oco em
sua obra. A que consagrou a Etienne de la Boétie, de três
anos mais velho do que ele, e autor de uma única brochura
Discours sur la servitude volontaire, parece ter tido em seu
coração e em seu espírito um lugar considerável.
Esse pequeno opúsculo não nos permite considerar La
Boétie "o maior homem do século", como
afirmava Montaigne, porém nos leva a compreender a natureza
desse afeto do autor de Ensaios por uma alma
extraordinariamente generosa e nobre.


Outra amizade ocupou também lugar especial na vida de
Montaigne: a que dedicou a Maria de Gournay a quem chamava sua "filha
por afinidade" "por certo querida muito mais que
paternalmente, e conservada, no meu retiro e na minha solidão,
como uma das melhores partes de meu próprio ser".   
É o que nos diz na velhice. E até acrescenta: 
"Somente a ela contemplo ainda neste mundo".   
Tinha ela apenas vinte anos, e Montaigne cinquenta e quatro, quando
sentiu pelo autor dos Ensaios essa admiração e
esse afeto "mais que excessivos".    Seria
indesculpável não nos referirmos a essa ligação
puramente espiritual, porquanto foi graças aos cuidados de
Mlle. de Gournay que pudemos ter a terceira e mais importante edição
dos Ensaios (1595), publicada três anos após a
morte de Montaigne.   E a sua devoção
devemos   a  conservação  
dos  manuscritos   que serviram mais tarde para
estabelecer as mais completas edições


 


Por mais bela que tenha sido sua amizade por La Boétie,
é-nos permitido pensar que tal vez tivesse constrangido até
certo ponto Montaigne.   Podemos imaginar o que teria sido
esse voluptuoso se não houvesse encontrado o amigo.   
E principalmente cabe-nos meditar sobre o que seria de seus Ensaios
se La Boétie não morresse tao jovem (com 33 anos) e
se tivesse continuado a exercer seu domínio sobre o espirito
do amigo.   Sainte-Beuve cita a propósito uma frase
magnífica de Plínio, o Moço:  "Perdi a
testemunha de minha vida,.. temo viver doravante mais
displicentemente".   Mas essa displicência é
o  que mais admiramos em Mon taigne.   Diante de Lá
Boétie fantasiava-se um pouco a moda antiga.  É
sincero, como sempre, pois   está  
apaixonado   de  heroísmo,  mas  não
aprecia, e dia a dia o apreciará menos que o homem
se mostre afetado.    E cada vez mais há de
temer também que lhe seja necessário diminuir-se para
subir.                                            


Em uns versos latinos que lhe envia, La Boétie escreve a
Montaigne: "A ti, amigo, que Babemos inclinado tanto para os
vícios como para as virtudes rutilantes, cabe combater com
mais afinco". Tanto por tendencia natural como por filosofia,
uma vez desaparecido La Boétie, Montaigne procurará
"combater" cada vez menos a si próprio. Nada repugna
mais a Montaigne  do  que uma personalidade   (ia
dizer impersonalidade) fictícia laboriosamente alcançada
e controlada de acordo com a decência, a moral, os costumes e
quaisquer vestígios de preconceitos. Dir-se-ia que o ser
verdadeiro, que tudo isso molesta, falseia ou desvirtua, tem para ele
um valor místico, e que dele espera uma qualquer revelação
Bem compreendo quão fácil se torna aqui jogar com as
palavras, ver. apenas do ensinamento de Montaigne o conselho de
entregar-se a gente a natureza, de seguir cegamente os instintos e
mesmo dar preferencia aos mais vis que sempre hão de parecer
os mais sinceros, isto é, os mais naturais, aqueles que pela
sua própria densidade se depositarao fielmente no fundo do
recipiente, mesmo depois que os mais nobres transportes o hajam
sacudido…


Acredito porém que seria mal compreender Montaigne, o qual
embora conceda a tais instintos que temos em comum com os animais uma
parte porventura demasiado bela, sabe alçar seu vôo e
não consente jamais em se tornar escravo ou vítima
deles.


É natural que, com tais idéias, Montaigne se sinta
pouco disposto ao arrependimento a contrição.
"Envelheci de oito anos desde minhas primeiras publicações",
escreve em 1588, "mas duvido de que me tenha corrigido em
qualquer sentido" (Livro III, cap. 9). Mais ainda:  "Minhas
desordens nesse ponto (o desregramento dos costumes) desgostaram-me
Como deviam; eis tudo". (Livro II, cap. 11). Declarações
dessa ordem abundam na última parte dos Ensaios.
Posteriormente acrescenta ainda para maior indignação
de muitos: "Se tivesse que reviver, tornaria a viver como vivi;
nem lamento o passado nem temo o futuro" (Livro III, cap. 2). Em
verdade essas declaracões são nada menos que cristas.
Sempre que Montaigne alude ao cristianismo, fá-lo com a mais
estranha, senão maliciosa impertinencia. Ocupa-se amiúde
com a religião, jamais com Cristo. Nem uma só vez
cita-lhe a palavra. Nem uma só vez cita-lhe a palavra. É
de se duvidar que jamais haja lido os Evangelhos, ou melhor, é
certo que nunca os leu seriamente. Quanto as suas reverencias ante o
catolicismo, exprimem elas, é evidente, muita prudencia. Não
se deve esquecer as instruções dadas em 1572 por
Catarina de Medícis e Carlos IX e que provocaram o massacre
dos protestantes em toda a França. O exemplo de Erasmo
(falecido em 1536) o poe de sobreaviso. Compreende-se que não
desejasse ser constrangido a escrever retratações Bem
sei que Erasmo não escreveu, finalmente, as suas, mas teve que
prometer a Igreja fazê-lo. E essa simples promessa já
não deixa de ser incomodativa. É preferível a
astúcia. No capítulo intitulado Das preces,
Montaigne multiplica os acréscimos conciliatórios
nas edições de 1582 e 1595.    Por
ocasião de sua viagem, em 1581,  presenteara o  Papa
Gregório XIII   (fundador do calendário 
ainda em uso hoje) com um exemplar de seu livro. O Papa o felicita,
porém com algumas restrições que o autor levará
em consideração posteriormente.   
Montaigne insisto por demais, e através de inúmeras
repetições, sobre sua perfeita ortodoxia e sua
submissão a Igreja.   Esta mostrava-se então
assaz conciliatória.   Pactuara com o desabrochar
cultural do Renascimento.   Erasmo, a despeito da acusação
de ateísmo que fizera com que lhe condenassem os livros em
Paris, fora indicado para o cardinalato; as obras de Maquiavel, tao
profundamente irreligiosas, haviam sido impressas em Roma por ordem
de Clemente VII.


A tolerância e o relaxamento instigavam os grandes líderes
da Reforma a uma intransigência ainda maior. Com o catolicismo
Montaigne podia ajeitar-se; com o protestantismo não Ele
aceitava a religião com a condição de se
contentar ela com a fachada. O que escrevia acerca dos "príncipes
mais capazes" ele o pensava também das autoridades
eclesiásticas: "Todo respeito e toda submissão
lhes são devidos, exceto os da inteligencia; não cabe a
minha razão curvar-se e dobrar-se mas sim a meus joelhos".   
(Livro III, cap. 8).


Para melhor proteger seu livro sente a necessidade de ainda
acrescentar algumas linhas tranquilizadoras, em que mal o
reconhecemos, aqueles capítulos de seus Ensaios que
mais se revelam suscetíveis de alertar os corações
sinceramente cristaos. "Esse único fim de outra vida,
felizmente imortal, merece que lealmente abandonemos comodidades e
prazeres". Esse trecho, que aliás permanece manuscrito e
que só conhecemos depois de sua morte (Livro I, cap. 39), bem
como outros semelhantes, parece colocar-se em sua obra a guiza de
pára-raio, ou melhor, como esses rótulos de xarope ou
limonada que, em épocas de "regime seco" se grudam
nas garrafas de whisky. Pois não lemos com efeito algumas
linhas adiante que: "De unhas e dentes devemos agarrar-nos a
esses prazeres da vida que os anos nos arrancam das mãos uns
após outros". (Livro I, cap. 39). Esse trecho da primeira
edição, mal mascarado pelas linhas acrescentadas,
mostra-nos o verdadeiro Montaigne, o "inimigo jurado de qualquer
falsificação" (Livro I, cap. 40). Tao cautelosa
palinódia me indignaria se não pensasse ter ela sido
imprescindível para que chegasse até nós a sua
mercadoria. "Pode ter parecido excelente católico,
escreve Sainte-Beuve, salvo por se ter mostrado muito pouco cristão".
E assim com justeza se diria de Montaigne o que ele mesmo 
disse  do  imperador Julião:  "Em matéria
de religião era só trapaça; apelidaram-no o
Apóstata por haver abandonado a nossa; creio mais verosímil
entretanto não a ter tido jamais no coração e
sim a ter aceito por obediência as leis". E ajunta,
citando Ammien Marcellin: "há muito alimentava com
ternura o paganismo em seu coração, mas não
ousava abrir-se porque todo o seu exército era cristão".
Por isso mesmo Julião o atrai tao fortemente.


O que Montaigne admira no catolicismo, o que lhe agrada e o que o
leva a propugná-lo, é a ordem, a antiguidade. "Nesse
debate em virtude do qual a França se vê jogada na
guerra civil, o melhor e mais sábio partido é sem
dúvida aquele que leva a manter a religião e a ordem
antiga do país". (Livro II, cap. 19). Pois "todas as
grandes mutações abalam o Estado e o desmantelam".
E ainda "o mal antigo e mais conhecido é sempre mais
suportável do que o mal recente e não experimentado
ainda" (Livro III, cap. 9). Além de sua ignorância
dos Evangelhos não há onde procurar, outras razoes para
explicar seu ódio aos reformadores protestantes. Montaigne
deseja conservar tal qual é a religião da Igreja, a
religião francesa; e não por acreditá-la a única
boa, mas por considerar perigoso mudar.


Pelos mesmos motivos sentimos em toda a vida de Montaigne, através
de todos os seus escritos, um constante amor a ordem e a medida, a
preocupação do bem público e a resistência
a deixar que, contra o interesse geral, Prevaleça seu
interesse particular. A retidao de seu julgamento e a defesa dessa
retidão atilem mais do que tudo a seus olhos, e lhe parece
dever se sobreporem a quaisquer considerações:
"…antes romper com os negócios a sujeitar-lhes minha fé
e minha consciência". Prefiro tomá-lo aqui ao pé
da letra sem indagar se não se gaba demasiado; pois c
necessário em nossos dias que tais palavras sejam ouvidas,
como era necessário nos tempos agi-lados de Montaigne que
algumas consciências íntegras mantivessem sua
independência e sua autonomia acima das submissões
gregárias e das covardes concordâncias. "Todas as
generalizações são covardes e perigosas"
(Livro III, Cap. 8) e mais ainda: "não há trem de
vida mais estúpido e frágil do que aquele que se pauta
pelas ordenações e disciplinas" (Livro III, cap.
13). Os trechos desse gênero abundam nos Ensaios e como
me parecem da mais elegi importância, sobretudo hoje, citarei
ainda este: "O público exige que se traia e que se minta
(ainda terá de acrescentar mais tarde e que se massacre);
abdiquemos dessa incumbência em favor de outros mais obedientes
e acomodatícios" (Livro III, cap. 1). Decididamente
Montaigne se adaptava mal a política. Tampouco se mostraria
hábil na direção dos negócios, e quando
renunciou as suas funções de magistrado, ou mais tarde,
ao deixar a "marie" de Bordéus, para ocupar-se
exclusivamente de si mesmo, julgou com muito bom senso que assim é
que melhor serviria o Estado. A humanidade inteira, ajunto eu, pois é
preciso observar que a ideia de humanidade se coloca, em Montaigne,
muito acima da idéia de Pátria. Depois de um
extraordinário elogio a França, ou pelo menos a Paris
"glória da França e um dos mais nobres ornamentos
do mundo" que ele "ama de ternura até em suas
verrugas e suas manchas" (Livro III, cap. 9), toma o cuidado de
declarar a amizade mais alta ainda que dedica ao gênero humano:
"considero todos os homens meus compatriotas e tanto abraço
a um polonês como a um francês, pospondo os laços
nacionais aos universais e comuns" (idem). E diz mais: "As
amizades puras que adquirimos sobreexcedem as que as ligações
de clima e de sangue nos outorgam. A natureza colocou-nos livres no
mundo. Nós é que nos prendemos a certos lugares tal
qual os reis da Pérsia que se comprometiam a somente beber a
água do rio Choaspez, abdicando assim nesciamente do direito
de usar todas as demais águas e secando, para seus olhos, todo
o resto do mundo". (idem).


Permanecemos sempre em débito para com Montaigne; como fala
de tudo sem ordem nem método, cada qual respiga nele o que
mais lhe apetece e que não raro é o que outro
menosprezou. Nenhum autor será mais facilmente invocado sem
perigo de traição, pois ele pró-)rio dá o
exemplo e sem cessar se contradiz e se trai a si próprio. "Em
verdade, não temo confessá-lo", diz ele, "em
caso de necessidade acenderia facilmente uma vela a S. Miguel e Ultra
a serpente" (Livro III, cap. 1). E por E por certo é isso
coisa que há de agradar mais a serpente do que a S. Miguel.
Eis porque Montaigne não foi nada apreciado pelos partidários
a quem não apreciava tampouco. Daí não ter ter
sido muito acatado, depois de sua morte, pelo menos na França
asperamente dividida pelos partidos. De 1595 (lembremos que faleceu
em 1592) a 1635 houve apenas três ou quatro novas edições
dos Ensaios. Foi no estrangeiro, na Itália, na
Espanha, e sobretudo na Inglaterra, que Montaigne se tornou logo
popular, durante esse período de desfavor, ou de indiferença,
era França. Encontramos na obra de Bacon e na de Shakespeare
vestígios indiscutíveis da influencia dos Ensaios,


Afastando-se do cristianismo é de Goethe que se aproxima
por antecipação "Amo, pois, vida e a cultivo tal
qual apeteceu a Deus outorgar-ma. A natureza é um guia amável,
mas não menos prudente e justo-". Essas frases, que   
figuram   entre   as   últimas  
dos  Ensaios, Goethe, mais tarde, as assinara de bom
grado sem dúvida. Assim remata a sabedoria de Montaigne.
Nenhuma palavra inútil; e Montaigne muito cuidadosamente
acresce a idéia de prudencia, de justiça e de cultura a
sua declaração de amor a vida.


O que principalmente Montaigne nos ensina é aquilo a que se
deu muito depois o nome de liberalismo. E parece-me que hoje
em dia, em uma época que as convicçoes políticas
ou religiosas dividem horrivelmente os homens e os jogam uns contra
os outros, essa é a mais sábias das lições
"Nas dissenções atuais deste Estado", diz,
"meu interesse não me leva a ignorar as qualidades
louváveis de meus adversários nem as censuráveis
daqueles que "segui" (Livro III, cap. 10). Acrescenta pouco
mais tarde: "Uma boa obra não perde seus encantos por
demandar contra mim" (idem). E mais adiante, no último
momento: "Querem que nossa persuasão e nossos juízos
sirvam não a verdade, porém os projetos de nosso
desejo. Eu me inclinaria antes para a outra extremidade, tao grande é
o medo que tenho de ser subornado pelo meu desejo. Tanto mais quanto
desconfio um pouco sentimentalmente das coisas que desejo"
(idem). Tais qualidades de espírito e de alma nunca foram tao
desejáveis, e jamais prestariam maiores serviços, do
que nestes tempos em que tanto se desprezam.


Essa rara e extraordinária propensão, de que  nos
entretém amiúde, para ouvir e aceitar a opinião
de outrem, a ponto de deixá-la prevalecer contra a sua
própria, o impediu de se aventurar mais avante no caminho que
seria mais tarde o de Nietzsche. Retém-no também uma
prudencia natural, que, para sua salvação, nunca
abandona de bom grado. Teme BR regiões desérticas e
aquelas em que o ar se rarefaz demasiado. Mas uma irrequieta
curio-sida lhe anda ao encalço, e, no campo das Idéias,
comporta-se sempre como nas suas viagens. O secretário que o
acompanhou então anotou em seu diário: "Nunca o vi
(a Montaigne) menos cansado, nem menos queixoso do suas dores (sofria
de pedras, o que não o Impedia de permanecer a cavalo longas
horas); por caminhos e pousadas mantinha o espírito atento a
tudo o que encontrava e procurava sempre entreter-se com os
estrangeiros, o que, creio eu, lhe atenuava os padecimentos".
Declarava não ter outro projeto em vista senão o de
passear por regiões desconhecidas. O mesmo diarista
acrescenta: "Tao grande era – seu prazer de viajar que detestava
as vizinhanças dos lugares de pouso obrigatório".
E tinha por hábito afirmar que "após uma noite
agitada, ao lembrar-se pela manha que devia visitar tal nova cidade,
ou região, se levantava cheio de alegria". O próprio
Montaigne escreve nos Ensaios: "Bem sei que tomado ao pé
da letra esse prazer de viajar revela inquietude e irresoluçao;
em verdade são estas as minhas qualidades dominantes. Confesso
que somente no sonho e no desejo encontro algo que me prenda; só
o desejo de variedade me satisfaz; e assim também a posse da
diversidade".    (Livro III, cap. 9).


Montaigne tinha cerca de cinqüenta anos ao empreender a
primeira e única grande viagem de sua vida: a viagem a
Alemanha do Sul e a Itália. Durou ela dezassete meses; e
talvez durasse mais ainda, dado o extremo prazer que sentia, se a sua
eleição imprevista para a "Mairie" de Bordéus
não o houvesse inesperadamente chamado a França. Desde
então é para as idéias que transfere essa viva
curiosidade que o empurrava para as estradas.


É muito edificante acompanhar, através das edições
sucessivas dos Ensaios, a modificação de sua
atitude ante a idéia da morte. Intitula um dos primeiros
capítulos de seu livro: "De como filosofar é
aprender a morrer". E aí lemos : " Com nada me
entretive mais do que com imaginar a morte, mesmo na minha idade mais
licenciosa". Tratar-se-ia de atenuar o horror dessas idéias
domesticando-as. E na última edição de seus
Ensaios, chega afinal a escrever: "Graças a Deus,
posso ir-me quando Lhe aprouver, sem saudade de coisa alguma.
Desprendo-me de tudo; logo me despedirei de todos, .menos de mim.
Nunca um homem se preparou mais pura e plenamente para deixar o
mundo, nem se desprendeu dele mais completamente do que eu espero
faze-lo…" "e a vinda da morte não me trará
nenhuma novidade" (Livro I, cap. 20). Essa morte ele quase chega
a amá-la, como ama todas as coisas naturais.


Montaigne teve um fim muito cristão, é-nos relatado.
Convenhamos em que não tomara esse caminho. É verdade
que sua mulher e sua filha o assistiam em seus últimos
instantes e sem dúvida o incitaram, por simpatia, como ocorre
não raro, a morrer não dessa morte "quieta,
solitária e recolhida, bem minha, adequada a minha vida
retirada" (Livro III, cap. 9), que lhe "satisfizera",
porém mais devotamente do que espontaneamente o tivera feito.
Terá sido o pressentimento desse fim que o levou a escrever:
"Se, entretanto, me coubesse escolher (a morte) eu preferiria,
creio, o cavalo ao leito, e morrer fora de minha casa e longe dos
meus" (idem).


Se me censurarem haver por demais acerado as ideias de Montaigne,
eu responderei que inúmeros comentadores se preocupam com
aparar-lhes as arestas.   Nada mais fiz do que retirar os
botoes das pontas, desembrulhá-las da estopa que entulha um
pouco os Ensaios e por vezes impede que os golpes nos atinjam.
Mas a grande preocupação dos pedagogos, para com os
autores audazes, mesmo quando já clássicos, é de
torná-los inofensivos; ora, eu admiro a que ponto o trabalho
dos anos já se encarrega naturalmente disso. Ao fim de muito
pouco tempo o gume das mais novas idéias se gasta; por outro
lado uma espécie de adaptação permite manejá-las
sem perigo de ferir-se.


Montaigne em sua viagem a Itália admira-se de encontrar os
mais altivos monumentos da antiga Roma não raro
semi-enterrados entre escombros. É pelo cimo que eles pouco a
pouco se esboroam. Mas seus próprios escombros erguem mais
alto o solo em que marchamos. E se, de nossos dias, tal ou qual
campanário nos parece menos alto é porque o
contemplamos de menos baixo.

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