O CASO DO HAITI

O CASO DO HAITI

Oliveira Lima

O caso do Haiti parece-se com o de São Domingos, mas não e inteiramente semelhante. Em 1914 os governos britânico, francês e alemão tinham dado mostras evidentes de quererem proceder à cobrança dos seus empréstimos mediante a ocupação das alfândegas haitianas, uma solução em que os Estados Unidos não consentiriam, mesmo que não tivesse logo sobrevindo a guerra mundial. As dificuldades de administração levaram o Presidente Theodore ao suicídio — uma variante dos seus quatro predecessores assassinados e dos 15 depostos e exilados — e seu sucessor, Sam, inaugurou um reinado de suspeição e de terror, mandando prender como reféns e cm seguida executar, quando uma parte das tropas se revoltou, 160 ^cidadãos, dos mais conspícuos da cidade.

Depois deste gesto à Danton, cujos massacres de setembro êle provavelmente lera no liceu de Port au Prince, Sam refugiou-se na legação de França, mas o povo da Capital, que também fala oficialmente francês, se bem que o não entenda, escrito ou falado, sendo de fato a sua língua um patois informe, igualmente ajudou a recordar a grande Revolução, arrancando o Presidente do seu asilo, cortando-o em pedacinhos, que foram distribuídos como sou-venirs, e passando sua cabeça pelas ruas, espetada num pau.

O novo Presidente eleito, que obedece ao pomposo nome de General d’Artignenave, que soa um tanto como d’Artagnan, lirmou um convênio para durar 10 anos e 10 mais se os primeiros não bastarem, estabelecendo a ocupação americana das alfândegas; a nomeação de um curador financeiro americano; a organização de uma polícia (gendarmerie) nacional com oficiais americanos e a administração do Tesouro por funcionários americanos, os quais pagam os juros e a amortização da dívida pública e satisfazem as despesas do Estado, entregando o saldo eventual ao Governo haitiano. Este obrigou-se a não ceder território nacional a país algum, a não ser aos Estados Unidos, e durante a ocupação prevalece a lei marcial, não sendo permitido aos haitianos possuírem e transportarem armas.

Haiti entrou assim no número dos protetorados exercidos pelos Estados Unidos, figurando como o único de raça negra. Porto Rico entre as Antilhas é a que oferece maior proporção de brancos; Cuba tem uma população dois terços branca e um terço negra, com gradações entre as cores; a de Panamá é muito misturada, com uma classe dominante de sangue espanhol; em Nicarágua o povo é composto de índios, mas os influentes políticos são mestiços quase brancos; São Domingos é uma República de mulatos. Haiti é porém uma República de pretos, onde até 1899 era vedado aos brancos terem bens de raiz ou tornarem-se sequer cidadãos, privilégio de que bem poucos se aproveitaram uma vez que lhes foi concedido.

Diz um escritor americano que existe no Haiti mais preconceito contra os brancos do que nos Estados Unidos contra os negros.

Na verdade, seria preciso mais do que o superlativo — atrasadíssimo, empregado com relação a São Domingos, para qualificar o Haiti. A população c muito mais densa, 200 em vez de 40 habitantes por milha quadrada, parecendo em alguns pontos um formigueiro humano, e ainda subsiste, mau grado mesmo a ocupação americana, a cerimônia horrível do vudu, a que nenhum branco pôde-jamais assistir e que c uma verdadeira missa negra, com sacrifício de uma criança cujo coração é arrancado c cujo sangue é bebido pelos assistentes. ♦

Existe uma pequena classe de gente educada, mas o grande número é bárbaro ou tende à barbaria, apesar de representar o Haiti na América a cultura francesa, pelo que há que chamar América Latina o que de outro modo se denominaria Hispânica ou mais propriamente Ibérica. Em São Domingos, pelo contrário, prevalece o pendor para uma cultura européia, cm vez de africana, até acentuadamente espanhola, não sendo de desprezar-se sua contribuição intelectual, sobre a qual se exerceu a influência salutar de Hostos, natural de Porto Rico mas que viveu durante 20 anos em São Domingos, entregue à sua missão pedagógica.

Hostos era, pode bem dizer-se, um gênio. Distinguiu-se como constitucionalista, como crítico literário, como publicista político. Educado na Espanha, viajou toda a América Espanhola e em toda ela deixou traços da sua fecunda iniciativa. No Chile fêz com que o Governo abrisse às mulheres os cursos de Medicina e de Direito; na Argentina mostrou a importância da construção do transandino; no Peru pugnou em favor dos chins desprotegidos e foi em toda a parte um defensor acérrimo da independência cubana. Sendo êle próprio um homem de letras e um cultor das belas-artes, seu espírito tinha entretanto uma feição prática e não subscrevia sem reservas a influência da poesia e da ficção sobre a imaginação e o caráter dos latino-americanos.

Minha opinião é, dizia êle, que um povo de tanta imaginação como o nosso e sociedades de tão pouca firmeza de caráter como as nossas, com a quase exclusiva educação poética e literária que recebem, perdem em raciocínio o que ganham em fantasia e dissipam em substância o que ganham em forma. Esta é a razão pela qual até o presente nem a poesia nem a literatura educou o pendor para as letras e a delicadeza de sensibilidade que, convenientes muito embora e até excelentes, quando servem como complemento de uma educação bem equilibrada, constituem obstáculos quando o cultivo da forma toma precedência sobre tudo mais.

A intelectualidade dominicana é uma realidade, devida decerto cm grande parte à existência desde 1538 da Universidade de São Tomás, hoje não obstante reduzida a modestíssimas proporções, ao passo que a intelectualidade haitiana é um mito, pelo menos consi-siderada num conjunto. Em São Domingos tornaram-se notáveis romancistas como Manuel de Jesus Galvan e Federico Garcia Godoy e entre seus autores poéticos — sem esquecer que o grande Heredia, nascido em Cuba, era filho de pais dominicanos — avulta uma senhora, Dona Salomé Urefia, sobre quem foi direta a influência mental de Hostos e que fundou a primeira escola de moças de São Domingos e não teve outros ideais senão os de paz e progresso.
Washington, outubro de 1920

Fonte: Oliveira Lima – Obra Seleta – Conselho Federal de Cultura, 1971.

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