No tempo em que o lôbo e o cordeiro estavam em tréguas [1]), desejava aquêle que se oferecesse ocasião para as romper. Um dia que [2]) ambos se acharam na margem de um regato, indo beber, disse o lôbo mui encolerizado contra o cordeiro:
“Por que me turbais a água que vou beber?”
Respondeu êle mansamente: f
“Senhor fulano lôbo, como posso eu turbar a vossa mercê a fonte, se ela corre de cima, e eu estou cá mais abaixo?”
Reconheceu o adversário a clareza do argumento, porém, variando de meio, instou dizendo:
“Pois se não turbastes agora, a turbastes o ano passado.” Satisfez o cordeiro, dizendo:
“Como podia eu cometer um crime haverá um ano, se eu não tenho ainda de idade mais que [3]) seis meses?”
Então o lôbo, enfadado tanto mais quanto mais convencido disse:
“Pois, se não fostes vós, foi fulano carneiro vosso pai.” E, investindo ao pobrezinho, o levou nos dentes.
Assim fazem os ímpios e maliciosos, a quem não há inocência que satisfaça nem desculpa que contente. (Manuel Bernardes).
Fonte: Seleta em Prosa e Verso dos melhores autores brasileiros e portugueses por Alfredo Clemente Pinto. (1883) 53ª edição. Livraria Selbach.
[1] Estar em tréguas — estar em paz.
[2] subentende-se a preposição em (em que).
[3] No português moderno, seguindo-se um nome numeral ou a palavra metade, dizemos: mais de, menos de em lugar de mais que, menos que; ex.: Mais da metade da vida levou êle a escrever a sita obra. Ela não tem menos de trinta anos.