ORDO COGNOSCENDI E ORDO ESSENDI – COMENTÁRIOS ACERCA DAS REFLEXÕES DE PAUL RICOEUR ÀS MEDITAÇÕES DE RENÉ DESCARTES

ORDO COGNOSCENDI E ORDO ESSENDI: COMENTÁRIOS ACERCA DAS REFLEXÕES DE PAUL RICOEUR ÀS MEDITAÇÕES DE RENEE DESCARTES

Josiane Magalhães[1]

Ricoeur(1991) em seus comentários sobre as “Meditações” tece uma longa compreensão acerca das três primeiras reflexões de Descartes (1983). Isto porque localiza nessas primeiras linhas uma cisão entre duas fundamentações diferentes para a verdade primeira que serviriam de base para derivação da verdade sobre todas as coisas a saber: a ordo cognoscendi e a ordo essendi. Nas palavras do próprio Ricoeur:

“Quase não é possível lançar mais longe a fusão entre a idéia de mim mesmo e a de Deus. Mas que resulta daí para a ordem das razões? Isso que se apresenta não como uma cadeia linear mas como uma fivela; dessa projeção ao contrário do ponto de chegada sobre o ponto de partida.Descartes só percebe o benefício , a saber, a eliminação da hipótese insidiosa do Deus mentiroso que alimentaria a dúvida mais hiperbólica; a imagem fabulosa do grande enganador encontra-se vencida em mim, visto que o Outro existindo verdadeiramente e inteiramente verídico ocupou o lugar dela. Mas, para nós como para os primeiros contraditores de Descartes, a questão é saber se, dando a ordem das razões a forma do círculo, Descartes não fez do procedimento que desvia o Cogito, portanto, o “eu” em sua solidão inicial um gigantesco circulo vicioso. Uma alternativa parece então se abrir ou o Cogito tem valor de fundamento mas é uma verdade estéril à qual não pode ser dada uma seqüência sem ruptura da ordem das razões, ou é a idéia do perfeito que o fundamenta na sua condição de ser finito e a primeira verdade perde a auréola do primeiro fundamento.” (RICOEUR, 1991:p.21)

rené descartes ilustração

Para a compreensão da argumentação de Ricoeur retomemos as idéias cartesianas postas nas meditações:

“Há já algum tempo eu me apercebi de que, desde meus primeiros anos, recebera muitas falsas opiniões como verdadeiras e de que aquilo que depois eu fundei em princípios tão mal assegurados não podia ser senão mui duvidoso e incerto; de modo que me era necessário tentar seriamente, uma vez em minha vida desfazer-me de todas as opiniões a que até então dera crédito, e começar tudo novamente desde os fundamentos, se quisesse estabelecer algo de firme e de constante nas ciências.” (DESCARTES, 1983, p.85)

Aqui temos a colocação de Descartes da necessidade de busca pela certeza e através desta buscar encontrar um caminho que assegurasse a verdade sobre as coisas. Para esse intento precisava de uma primeira certeza ou uma verdade indubitável. Sendo assim, o caminho que inicia é o da dúvida sobre todas as coisas, principalmente sobre aquilo que seus sentidos lhe permitem conhecer, pois os mesmos o enganam em seus sonhos, não sendo, portanto, confiáveis. Mesmo aquelas que lhe pareciam indubitáveis como as ciências matemáticas, por se tratarem de coisas muito simples e muito gerais, também são colocadas como incertas. Para tanto, elabora a hipótese do “gênio maligno” pois pode ocorrer que Deus tenha desejado que eu me engane todas as vezes em que faço a adição de dois mais três. (DESCARTES, 1991, 87)

Constrói uma hipótese de que existe tal gênio maligno e que este ao invés de encontrar a verdade só o faz enganar-se: Suporei, pois, que há não um verdadeiro Deus, que é a soberana fonte da verdade, mas certo gênio maligno, não menos ardiloso e enganador do que poderoso que empregou toda a sua indústria em enganar-me. (DESCARTES, 1991,p.88)

Após o exercício da dúvida extremada e exagerada, Descartes parte então para a busca da primeira verdade ou primeira certeza, chegando a conclusão de que

“ não há, pois, dúvida alguma de que sou, se ele me engana; e, por mais que me engane, não poderá jamais fazer com que eu nada seja, enquanto eu pensar ser alguma coisa. De sorte que, após ter pensado bastante nisto e de ter examinado cuidadosamente todas as coisas, cumpre enfim concluir e ter por constante que esta proposição eu sou, eu existo é necessariamente verdadeira todas as vezes que a enuncio ou que a concebo em meu espírito.” (DESCARTES, 1983, p.92)

E para finalizar sua argumentação, conclui que eu sou eu existo: isto é certo; mas por quanto tempo? A saber, por todo tempo eu que eu penso.(DESCARTES, 1983, P.94)

Neste momento Descartes instaura a ordo cognoscendi, sob a formulação deste “ser pensante”, ou seja, o Cogito. Surge o eu desprovido das indicações espaço-temporais, metafísico e exagerado, obstinado em encontrar a certeza e a verdade. O caráter do “eu” é derivativo da dúvida, sendo que da mesma decorre a existência deste eu encenado no próprio pensar. Isto porque ser enganado prova a existência e uma existência vinculada a pensar ser. Assim, “eu penso, eu existo”. Por mais que o “gênio maligno” o engane, o processo do pensamento continua. Isto coloca para Descartes a conclusão de que

só concebemos os corpos pela faculdade de entender em nós existente e não pela imaginação nem pelos sentidos, e que não os conhecemos pelo fato de os ver ou de tocá-los, mas somente por os conceber pelo pensamento, reconheço com evidência que nada há que me seja mais fácil de conhecer do que meu espírito (DESCARTES, 1983, p.98)

Propondo-se a análise de seu espírito, o autor retoma suas primeiras argumentações e percebe que não há algo que lhe assegure a verdade ou a falsidade sobre suas concepções, pois poderia colocar a proposição que todas as coisas que concebemos mui clara e mui distintamente são todas verdadeiras. No entanto, percebe o que é que eu percebia clara e distintamente nelas? Certamente nada mais exceto que as idéias ou os pensamentos dessas coisas se apresentavam a meu espírito.Assim, ainda que dois e três juntos façam mais ou menos do que cinco, ou coisas semelhantes, que vejo claramente não poderem ser de outra maneira senão como as concebo.(DESCARTES,1983, p.100)

O que se segue é a consideração de que

“por certo, posto que não tenho nenhuma razão de acreditar que haja algum Deus que seja enganador, e mesmo que não tenha ainda considerado aquelas que provam que há um Deus, a razão de duvidar que depende somente desta opinião é bem frágil e, por assim dizer, metafísica.Mas, a fim de poder afastá-la inteiramente, devo examinar se há um Deus, tão logo a ocasião se apresente; e, se achar que existe um, devo também examinar se ele pode ser enganador: pois sem o conhecimento dessas duas verdades, não vejo como possa jamais estar certo de coisa alguma”. (DESCARTES,1983,p.100)

Neste momento Descartes recoloca a dúvida, agora sobre a própria hipótese do “gênio maligno” que o enganaria. Sua certeza passa a ser sobre a concepção de um pensamento ou idéia, mesmo que não consiga distinguir se são verdadeiros ou falsos. Assim, retorna a dúvidas sobre todas as coisas, agora pela falha na sua capacidade de diferenciar o falso do verdadeiro. Mesmo a concepção do “gênio maligno” torna-se frágil e duvidosa. Ele necessita então recomeçar seu exercício de construção da verdade e o questionamento inicia-se a partir da existência ou não de um Deus, para depois, se ele seria ou não enganador. Instaura-se nesse momento a ordo essendi.

Para estabelecer o fio condutor daqui por diante, Descartes divide todos os seus pensamentos em certos gêneros para reconhecer nestes a verdade ou não neles contida.

“Entre meus pensamentos, alguns são como as imagens das coisas; e só aqueles convém propriamente o nome de idéia: como no momento em que eu represento um homem ou uma quimera, ou o céu, ou um ano, ou mesmo Deus. Outros, além disso, tem algumas outras formas: como, no momento em que eu quero, que eu temo, que eu afirmo ou que eu nego, então concebo efetivamente uma coisa como o sujeito da ação de meu espírito, mas acrescento também alguma outra coisa por esta ação à idéia que tenho daquela coisa; e deste gênero de pensamentos, uns são chamados vontades ou afecções, e outros juízos.Agora, no que concerne às idéias, se as consideramos somente nelas mesmas e não as relacionamos a alguma outra coisa, elas não podem , propriamente falando, ser falsas; pois, quer eu imagine uma cabra ou uma quimera, não é menos verdadeiro que eu imagino tanto uma quanto a outra. Não é preciso temer também que se possa encontrar falsidade nas afecções ou vontades; pois, ainda que possa desejar coisas más, ou mesmo que jamais existiram, não é por isso, todavia, menos verdade que as desejo. Assim, restam tão somente os juízos, em relação aos quais eu devo acautelar-me para não me enganar. Ora, o principal erro e o mais comum que se pode encontrar consiste em que eu julgue que as idéias que estão em mim são semelhantes ou conformes às coisas que estão fora de mim; pois, certamente, se eu considerasse as idéias apenas como certos modos ou formas de meu pensamento, sem querer relacioná-las a algo exterior, mal poderiam elas dar-me ocasião de falhar.” (DESCARTES, 1983,p.101)

Aqui , o autor nos demonstra que a idéia ou pensamento apresentado ao espírito em si, não seria falso. A falseabilidade estaria na sua correspondência à exterioridade do ser. Coloca-se então, a questão da origem dessas idéias ou pensamentos. Ora, destas idéias, umas me parecem ter nascido comigo, outras ser estranhas e vir de fora, e as outras ser feitas e inventadas por mim mesmo. (DESCARTES,1983,101) Partindo deste pressuposto sobre a origem das idéias e dos pensamentos, e sua relação com a exterioridade do ser, a solução encontrada pelo autor foi a elaboração do pressuposto de uma graduação da existência de uma realidade objetiva nas idéias concebidas, ou de uma maior ou menor perfeição. Assim, Descartes prova a existência de Deus, uma vez que a idéia de perfeição somente poderia realizar-se através Dele.

Pois, com efeito, aquelas que me representam substancias são, sem duvida, algo mais e contém em si (por assim falar) mais realidade objetiva, isto é, participam, por representação, num maior número de graus de ser ou não de perfeição do que aquelas que representam apenas modos ou acidentes. Além do mais aquela pela qual eu concebo um Deus soberano, eterno, infinito, imutável, onisciente, onipresente ecriador universal de todas as coisas que estão fora dele; aquela, digo, tem certamente em si mais realidade objetiva do que aquelas pelas quais as substâncias finitas me são apresentadas. (DESCARTES, 1983, 103)

Desta maneira, Descartes coloca o cogito subordinado à verdade divina posto que o infinito (Deus) contém o finito (Cógito). Deus seria então a essência da razão bem como do conhecimento do “eu”, este último imperfeito, condenado a duvidar para conhecer a verdade, cuja certeza seria contingente.Segundo Ricueur este exercício deraciocínio proposto por Descartes, partindo da primeira meditação, construindo através da dúvida hiperbólicxa a certeza do cógito, ao chegar à terceira meditação provando a existência de Deus, destrói a ordem da descoberta, ou ordo cognoscendi.(RICOEUR, 1991,p.19) Isto porque o cogito deveria conduzir do ego a Deus, depois às essências matemáticas, depois às coisas sensíveis e aos corpos. No entanto, coloca a certeza do cogito em posição subordinada no que concerne à verdade divina, a qual é primeira conforme a “verdade da coisa”. (RICOEUR, 1991, p.19)

Por conta dessa diferenciação na fundamentação da verdade primeira, segundo Ricoeur, abre-se um dilema para a posteridade de Descartes.

“de um lado Malebranche, e mais ainda Spinosa, tirando as conseqüências da destruição operada pela Terceira meditação, só viram no Cogito uma verdade abstrata, truncada, despojada de todo prestígio (…)Por outro lado, para toda a corrente do idealismo, através de Kant, Fichte e Husserl (pelo menos o das Meditações cartesianas), a única leitura coerente do Cogito é aquela pela qual a certeza alegada da existência de Deus é marcada pelo mesmo cunbho de subjetividade que a certeza de minha própria existência; a garantia da garantia que constitui a verdade divina constitui então somente um anexo da primeira certeza. Se assim é, o Cogito é não uma primeira verdade que uma segunda, uma terceira seguiriam, etc, mas o fundamento que se baseia nele próprio, incomensurável a todas as proposições, não somente empíricas mas também transcendentais.” (RICOEUR, 19991,p.22)

Desta forma, Descartes teria deixado como legado à Modernidade essa dupla interpretação para a fundamentação primeira da verdade sobre as coisas, ou seja, a alternativa que se abre entre a ordo essendi e a ordo cognoscendi,Deus ou o Cogito.

Ou Descartes teria deixado implícita uma sugestão: se a certeza é a de que penso e as coisas existem porque as concebo em meu pensamento, Deus existe em meu pensamento. Da mesma forma, a idéia de um Deus bom, verdadeiro e infinito concebida por mim se torna válida e verdadeira como todo o resto (meu corpo, as coisas a minha volta). Se for assim, o pensamento seria a medida da verdade. O pensamento dá ao individuo a verdade e é a partir dessa verdade que se fundará a sua existência. E talvez sob essa ótica a ordo essendi se reconciliaria com a ordo cognoscendi.

Referências Bibliográficas:

DESCARTES, R. Meditações. Trad. J Guinsburg e Bento Prado Jr. 3ª ed.São Paulo: Abril Cultural, 1983.

RICOEUR, P. O si mesmo como um outro. Trad. Lucy Moreira César. Campinas/SP: Papirus, 1991.

Notas


[1] Socióloga, Dra em Educação, professora de Sociologia da Universidade do Estado de Mato Grosso UNEMAT.

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