Salomé Queiroga e o plágio de Victor Hugo na poesia Brasileira, por Silvio Romero

Silvio Romero (Lagarto, 21 de abril de 1851 — 18 de junho de 1914) – História da Literatura Brasileira

Vol. III. Contribuições e estudos gerais para o exato conhecimento da literatura brasileira. Fonte: José Olympio / MEC.

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TRANSIÇÃO

POETAS DE TRANSIÇÃO ENTRE CLÁSSICOS E ROMÂNTICOS (continuação)

Antônio Augusto de Queiroga era mineiro; sua biografia é obscura. Crê-se que nascera em 1812 ou 1813. Morreu em 1855 em Diamantina, onde deixou grande fama de orador e poeta.

Marca no XIX século na poesia brasileira a erupção do nativismo local, popular e sertanejo.

Seu irmão ultrapassou-o neste sentido. A crítica vê-se reduzida a três ou quatro peças poéticas para aquilatar da inteligência de Antônio Augusto.

É impossível compreender e definir cabalmente um talento com tão diminutos elementos. A melhor das composições publicadas do poeta mineiro é uma Lira ao Sabiá; é a melhor como documento da estesia do autor. Este revela-se um lirista de índole objetivista e plácida, sem grandes efusões, sem grandes idéias e sem grandes criações.

Tem sua ponta de retórico; maneja bem o verso; é hábil e delicado:

"Tudo é silêncio no bosque!
Que solitária mansão!
Sabiá, cantando amores,
Só povoa a solidão,
Em débil ramo, saudoso
Descanta, geme e suspira…
Ah! junta, cantor plumoso,
Junta aos sons da minha lira
Teu canto melodioso…

Tua música suave
É doce como a lembrança
Que em desabrida tormenta
Forma a nota da bonança:
Dize, tu cantas zeloso?
Ou feliz amor te inspira?
Ah! junta, cantor plumoso,
Junta aos sons da minha lira
Teu canto melodioso…

Livrem-te os céus do ciúme,
Meu querido passarinho;
E que a tua amante ingrata
Te menospreze o carinho.
Mas tu não cantas queixoso,
Amor teus versos inspira.
Ah! junta, cantor plumoso,
Junta aos sons da minha lira
Teu canto melodioso…

Que acento que escuto agora!
Repete-o por piedade,
Alenta meu peito amante,
Mitiga minha saudade;
Esse nome harmonioso
De novo estes ares fira!
Ah! junta, cantor plumoso,
Junta aos sons da minha lira
Teu canto melodioso."

E neste estilo e tom prossegue a canção. Não lhe descubro grande valor estético; seu valor é psicológico; revela uma índole e indica um momento histórico. O nativismo de Antônio Augusto foi o inspirador do de João Salomé e este é um precursor de Juvenal Galeno. Essa intuição será bem compreendida no estudo do poeta mineiro último citado.

Avistemo-nos com ele.

João Salomé Queiroga nasceu em 1810 ou 1811; morreu depois de 1880. Não seguiu o exemplo de seu irmão, que não publicou um só livro; ele publicou três: — duas coleções de poesias e um romance.

São publicações serôdias e tardias; mas têm préstimo; são de 1870 e 73; porém encerram versos de 1829. O prólogo do Canhenho de Poesias Brasileiras seria o prefácio de Cromwell do romantismo brasileiro, se fosse bem escrito e publicado oportunamente. Não apareceu a tempo; é, contudo, a fiel exposição do momento literário entre nós em 1830. Salomé Queiroga foi bom mineiro, não mudou; foi sempre o mesmo; o que escreveu em 1870, podê-lo-ia ter escrito quarenta anos antes.

É indispensável mostrá-lo, manuseando as provas: "Cerca de quarenta anos estão neste volume; a descrição de um grande e continuado dia de festa, com pequenos intervalos de sofrimentos. A rosa também tem espinhos. Menino travesso a correr atrás de borboletas que nunca chega a apanhar, mas divertindo-se com isso: eis a história de minha vida poética… O desejo de metrificar despertou-se em mim em o ano de 1828 na cidade de S. Paulo. Ali se achavam reunidos, além de estudantes de diferentes pontos do Brasil, alguns e não poucos, que voltaram de Coimbra para continuar seus estudos na Academia Jurídica que se acabava de instalar. Moços entusiastas entretinham-se em palestras políticas e poéticas… Por esse tempo fundou-se uma associação literária, denominada Sociedade Filomática, da qual coube-me a honra de ser um dos instituidores.

"Foram sócios dela, além de outros, os Srs. Fernandes Torres, Carneiro de Campos e Cerqueira, então lentes beneméritos da Academia… Em 1829 o corpo acadêmico resolveu passar o dia 7 de setembro nas margens do legendário Ipiranga em festas ao aniversário do maior dia do Brasil.

"Dos três irmãos Queirogas o mais velho foi escolhido para fazer e recitar o discurso, panegírico ao grande dia. É-me impossível descrever a impressão causada por aquela patriótica locução, principalmente quando, finalizando o orador, convidou a beijarem a terra da Independência em homenagem ao inapreciável benefício que nos havia legado.

"Foi uma explosão de bravos uníssonos repetidos por mais de seiscentas bocas. Foi tal o entusiasmo que até eu animei-me a repetir perante aquele respeitável e ilustrado auditório um soneto que havia feito, minha primeira produção poética, que só por essa razão a conservo e agora dou ao prelo. Em São Paulo compus alguns versos eróticos. Nunca animei-me a publicá-los; era justo este receio, pela comparação que então fazia com os versos de outros companheiros, entre os quais sobressaíam Francisco Bernardino Ribeiro e meu irmão Antônio Augusto de Queiroga que eram comigo os três membros da comissão de crítica da Sociedade Filomática... Este século laborioso, forte e criador quer que a poesia seja religiosa, fecunda, agricultora, operária e fraternal. Passou felizmente o tempo em que os poetas punham todo o seu cuidado em metrificar, de mistura com suas paixões e sentimentos, a risonha crença dos gregos. Era chegada a época dos brasileiros abjurarem essa religião, que havíamos herdado da metrópole; ela estava sobremodo arraigada em nossos ânimos e costumes e bem têm custado os primeiros ensaios para essa feliz regeneração."9

A história consiste em compreender; busque-se a compreensão deste trecho. O poeta começa por comparar-se a uma borboleta; sua poesia é-lhe um divertimento. O nosso mineiro tem razão; é essa uma das explicações da arte. No princípio do XIX século ainda a decadência da poesia francesa não tinha espalhado pelo mundo ser a arte uma obsessão mórbida, inquieta, dolorosa. Ainda havia alguma serenidade nos espíritos e os poetas não se supunham uns condenados, uns forçados do sofrimento.

A bela explicação da arte formulada pela escola dar-winiana e spencerista, como um prazer, um desprendimento necessário e saudável da força acumulada, um jogo, um brinco do corpo e do espírito, coaduna-se perfeitamente com o pensar e sentir do velho poeta mineiro.

Passa depois, no fragmento citado, a fornecer uns dados pessoais e a indicação de seus feitos em São Paulo, terminando por dizer que já ali, em 1828 e 1829, os poetas iam deixando de parte as decrépitas ficções da mitologia grega e volvendo as vistas para as cenas do país natal.

Esta revelação tem o valor de um fato histórico. Assiste-se aos primeiros clarões do grande dia do romantismo e vê-se o modo como principiava ele a ser compreendido. Para muitos espíritos então, e ainda hoje, o romantismo foi pura e exclusivamente o abandono das ficções clássicas. É uma explicação superficial e nociva, incapaz de esclarecer a índole e os impulsos da literatura no século XIX. Discutir-se-á isto em lugar mais apropriado.

9. Do Canhenho de Poesias Brasileiras.

 

É necessário, por outro lado, e agora mesmo, dizer que se o romantismo não esteve simplesmente no esquecimento da mitologia pagã, o nacionalismo não está especialmente na escolha de um assunto pátrio. O tema pode não ser local e indígena, e sê-lo o espírito da obra.

Na grande tarefa, no trabalho secular da formação de um tipo, de um caráter nacional, quando a literatura começa a intervir neste problema biossociológico, ela parte sempre do mais simples e concreto. É natural; é impossível até começar senão por aí. O primeiro passo é partir do fato material de um assunto local; a alma virá depois.

Em Salomé Queiroga havia já um pouco dessa alma. O espírito de oposição à literatura européia, ele o teve. A despreocupação do purismo lingüístico, ele a possuiu também conscientemente.

São palavras suas: "Dizem-me que sou acusado por deturpar a linguagem portuguesa. Mais de uma vez tenho escrito que compondo para o povo de meu país faço estado, e direi garbo, de escrever em linguagem brasileira; se isto é deturpar a língua portuguesa, devo ser excomungado pelos fariseus luso-brasileiros. Escrevo em nosso idioma, que é luso-bundo-guarani……Desgraçadamente existem ainda alguns escritores brasileiros que se aferram à velha estrada portuguesa. São dignos de lástima; nós devemos olhar para diante.

"Estou persuadido de que as questões de forma já foram todas encetadas entre nós. A forma é cousa muito mais absoluta do que se pensa. É um erro crer, por exemplo, que um mesmo pensamento pode ser escrito de muitas maneiras, que uma mesma idéia pode ter muitas formas.

"Uma idéia não tem senão uma forma que lhe é própria, que é sua forma excelente, completa, rigorosa, essencial, sua forma preferida, que rompe sempre em globo com ela do cérebro do homem de gênio. Assim nos grandes poetas, nada mais inseparável, mais aderente, mais consubstancial que a idéia e a sua expressão. Matai a forma que matareis a idéia……Portanto, julgo que a arte que quiser viver deve começar por impor-se a si própria as questões de forma, de linguagem, de estilo…… Nossa linguagem que tem sido até pouco tempo só portuguesa, vai-se refazendo com os novos escritores e para o futuro ela será outra bem diversa.

"O gosto nacional é o grande acontecimento do fim deste século, ele vai se apoderando de tudo, faz erupção por toda parte e tudo inunda.

"Pintura, poesia, música, toda as artes, todos os estudos, todas as idéias vão sendo levantadas pela benéfica corrente do progresso; a língua é uma das primeiras cousas de que ela se apodera. Em um momento enche-se e transborda de neologismos. Seu velho terreno português desaparece debaixo de um montão sonoro e simpático de vocábulos composto de português, bunda e guarani. Esta língua nova é bela, ornada, agradável, copiosa e inesgotável em formas… É uma língua branda, elástica, ágil, fácil em atar e desatar à vontade todas as fantasias do período; uma língua toda chamalotada de figuras e de acidentes pitorescos, uma língua nova, sem sestro algum mau, que toma maravilhosamente a forma da idéia e que atrai pela graça de estilo. É uma língua cheia de mudanças, de propriedades elegantes, de caprichos agradáveis, cômoda e natural para a escrita; dando a todos os escritores, ainda os mais vulgares, toda sorte de expressões felizes, as quais fazem parte de seu fundo natural."10

O poeta mineiro teve a intuição da evolução literária do Brasil; a índole das raças, a ação do meio deveriam forçosamente modificar a mentalidade brasileira. Outros assuntos e outra linguagem deveriam iniciar-se em nossa literatura.

A língua, considerada incontestavelmente a primeira atividade intelectual do homem e que serve de base a todas as outras, a língua tem sido a primeira a ir-se modificando entre nós.

Salomé Queiroga não foi um grande poeta; mas é um poeta apreciável. Não passou de certa mediania; não teve a força, o calor, a lucidez dos artistas de boa seiva; porém possuiu o instinto local e popular. Esta é sua qualidade principal.

Todas as suas impressões e todas as suas produções traziam o sainete desse estado emocional. Por índole e educação, por gostos e tendências, as formas de sua fantasia eram as formas do meio sertanejo de Minas. Nesta província a vida das cidades, não tendo a rudeza e grosseria dos altos sertões do Norte, não chegaram ainda a este abastardamento do caráter nacional que se nota nas grandes cidades da costa, especialmente no Rio de Janeiro.

10. Dos Arremedos — (Lendas e Cantigas Populares).

 

Ali há cultura literária cercada por todos os lados pelo espírito popular. Queiroga é comparável a uma dessas árvores medianas da flora indígena. Não assombra pelo porte gigantesco e pelo bracejamento apoplético das ramagens; em compensação tem as formas, a seiva e os perfumes de um produto das selvas pátrias. Seu maior defeito é certo humorismo sensaborão, próprio do mineiro, que o poeta espalhava em quase todas as suas composições.

Em seus livros destacam-se quatro espécies de lirismos: pessoal, popular, lendário e satírico. O estilo geral é um só. Em tudo predomina aquela nota especial que assinalei.

No lirismo pessoal a singeleza e o tom plácido predominam.

Deste gênero podem-se citar, por exemplo, os versos — A Isabel, mulher do poeta:

"Mulher, meu anjo da guarda,
Meu tesouro, meu encanto,
Por que te amo inda agora,
Como outrora te amei tanto?
Por que meu peito cansado
E já da vida na tarde,
Por teu amor, inda anseia
Na chama d’amor em que arde", etc.11

É uma poesia extensa, onde se lêem versos de um naturalismo familiar, como este:

"Mesmo cá distante eu vejo
Teus afagos, teus carinhos,
Matar do pai a saudade
Pensando os tenros filhinhos.

Qual cordeirinho, que brinca
Com a água, que está bebendo,
Em teus braços reclinado
O Salinhos estou vendo,

11. Canhenho, pág. 126.

A desfolhar melindroso
Com os lábios, com a mãozinha
O tenro botão mimoso
De tua doce maminha.
Com simples gesto chamado
O traquino Salomé
Aprender sob teus dedos
A ciência do A B C",
etc.

No que pertence ao lirismo individual e amoroso deve-se ter muito cuidado com o velho Salomé. Grande porção de suas poesias são copiadas. Só das Contemplações de Vítor Hugo encontrei as seguintes plagiadas : La coccinelle; Vieille chanson du jeune temps; Elle était déchaussée, elle était décoiffée; Me vers fuiraient doux et frêles; Hier au soir; Nous allions au verger cueillir des bigarreaux; Je respire où tu palpites.

São sete peças líricas das mais belas do poeta francês passadas deturpadamente para a língua portuguesa.

O plagiato numa literatura deve ser notado como estudo das índoles e como prova da predileção dos autores. Não deixa, pois, de ter interesse apreciar o modo como o poeta brasileiro apoderou-se dos versos estranhos.

Não é mister transcrever as peças todas. A cópia foi completa, havendo apenas a substituição em alguns casos de nomes locais brasileiros aos nomes franceses. Aí vão os versos da Coccinelle:

"Elle me dit:
‘Quelque chose Me tourmente.’
Et j’aperçus
Son cou de neige, et,- dessus,
Un petit insecte rose.

J’aurais dû — mais, sage ou fou,
A seize ans, on est farouche
— Voir le baiser sur sa bouche
Plus que l’insecte à son
cott.

On eût dit un coquillage;
Dos rose et taché de noir.
Les fauvettes pour nous voir
Se penchaient dans le feuillage.

Sa bouche fraîche était là:
Je me courbai sur la belle,
Et je pris la coccinelle; Mais le baiser s’envola.

‘Fils, apprends comme on me nomme’,
Dit l’insecte du ciel bleu,
‘Le bêtes sont au bon Dieu;
Mais la bêtise est à l’homme.’ "

Queiroga tomou esta situação como se tendo dado com ele e escreveu assim a sua Jataí:

" ‘Ai! meu Deus!’ grita Chiquinha,
E mostra com a mãozinha
Mórbido colo a alvejar:
Era a jataí dourada,
Que pela alvura enganada,
Fora alvos jasmins libar.

Quatorze anos faziar
E sábio ou louco eu veria
Na idade em que se é cruel:
Em vez da maldita abelha
Nos lábios, como centelha
Um beijo vertendo mel.

Qual cardeal se revia,
Na bela púrpura em que ardia
Parecia dizer — sim —
Em seu raminho pousado
E de lá bem debruçado
A olhar só para mim.

Nem cardeal, e nem rosa
Na boca fresca e mimosa,
Me souberam instigar;
Tirei d’alfombra nevada
A jataí perfumada
E vi o beijo voar.

E a abelha dizer: ‘Mofino,
Meu nome é besta — eu te ensino
A lição pra outra vez.
São de Deus propriedade
As bestas, e a bestidade
É do homem, como vês.’ "

São os versos de Hugo entremeados de algumas dissonâncias mineiras. Aindamáis:

"Mes vers fuiraient, doux et frêles,
Vers votre jardin si beau,
Si mes vers avaient des ailes,
Des ailes comme l’oiseau

Ils voleraient, étincelles,
Vers votre foyer qui rit,
Si mes vers avaient des ailes,
Des ailes comme l’esprit.

Près de vous, purs et fidèles,
Ils accourraient nuit et jour,
Si mes Vers avaient des ailes,
Des ailes comme l’amour."

O mineiro tomou isto como dirigido à sua namorada e desandou-lhe a Asa do Amor:

"O meu verso fraco e doce
Fora a teu jardim, iaiá,
Se meu verso alado fosse
Como o terno sabiá.

Fora em chispas coruscantes
A teu risonho aposento,
Se tivesse asas brilhantes,
Asas como o pensamento.

Junto a ti a noite e o dia,
Puro sempre em tua casa,
Fiel meu verso estaria
Se qual amor tivesse asa."

Isto é positivo; e devemos continuar, pois o atentado é aqui perfeitamente manifesto:

"Hier, le vent du soir, dont le souffle caresse,
Nous apportait l’odeur des fleurs qui s’ouvrent tard
; La nuit tombait; l’oiseau dormait dans l’ombre épaisse,
Le printemps embaumait, moins que votre jeunesse;
Les astres rayonnaient, moins que votre regard.
Moi, je parlais tout bas.
C’est l’heure solennelle
Où l’âme à chanter son hymne le plus doux.
Voyant la nuit si pure, et vous voyant si belle,
J’ai dit aux astres d’or:
Versez le ciel sur elle!
Et j’ai dit à vos yeux:
Versez l’amour sur nous!"

Contra este esplêndido trecho da lírica européia Queiroga arranjou a Súplica, dirigida a uma certa Lalá:

"A brisa da noite ali derramava
O cheiro das flores; a lua era cheia;
De luz e de aromas
Lalá se inundava
Sozinha na horta sentada n’ar eia;

E dela transuda louçã mocidade
Um cheiro mais grato que o cheiro das flores,
Seus olhos suaves me dão claridade,
Maior que a dos astros com seus mil fulgores.

Baixinho eu falava.
Solene essa hora
Suspira a nossa alma dulcíssimo canto,
Em êxtase imenso no céu ela adora
De Deus a grandeza escrita em seu manto.

A noite é tão pura, Lalá é tão bela!
Aos astros da noite eu disse por fim:
Vertei assim puro o céu sobre ela,
Seus olhos que vertam amor sobre mim."

O poeta mineiro teve o cuidado de antedatar suas composições; o livro francês é de 1856. Súplica traz a data de 1839. Pitanga Doce vem com a data d? 1834. Esta última é assim:

"Ao quintal qu’era distante
Nós fomos colher pitangas;
laia, cansada, anelante
, Colo nu, braços sem mangas.

Alvo lírio aveludado
Desses membros era a tez,
Porém de mais brilho ornado,
Mais alvura e morbidez;

Neles meus olhos ardentes
Eu fixei absorto logo
, Ela a rir-se mostra os dentes
Entre dois lábios de fogo.

E entre esses dentes d’esmalte
Toma a fruta, e os lábios fecha,
Que presto e ávido a assalte
Com pejo e delícias deixa.

Mas quando a meus lábios veio
O sacrifício do pejo,
Ela treme com receio,
Dá-me a pitanga e o beijo.

Foi um momento divino
Cheio d’êxtaSe e de medo
,
Que me dizia — malino,
Goza bem, porém, segredo."

Agora Vítor Hugo:

"Nous allions au verger cueillir des bigarreaux.
Avec ses beaux bras blancs en marbre de Paros,
Elle montait dans l’arbre et courbait une branche;
Les feuilles frissonnaient au vent; sa gorge blanche,
O Virgile, ondoyait dans l’ombre et le soleil;
Ses petits doigts allaient chercher le fruit vermeil,
Semblable au feu qu’on voit dans les buisson, qui flambe,
Je montais derrière elle; elle montrait sa jambe,
Et disait: ‘Taisez-vous!’ à mes regards ardents;
Et chantait. Par moments, entre ses belles dents,
Pareille, aux chansons près, à Diane farouche;
Penchée, elle m’offrait la cerise à sa bouche;
Et ma bouche riait, et venait s’y poser,
Et laissait la cerise et prenait le baiser."

A influência estrangeira, especialmente francesa, é infelizmente uma grande força no caminhar de nossa literatura. E essa influência não se tem feito sentir somente na adoção das doutrinas científicas, filosóficas e literárias. Tem chegado ao triste recurso do plágio vergonhoso.

A natureza deste livro não permite levar por diante o paralelo. Apenas incluirei aqui mais um espécimen, que é um grande perigo para o historiador. A quem anda à cata de produções líricas brasileiras, de verdadeiro estilo romântico, anteriores a 1836, e se depara uma bonita poesia como a Saudade Murcha em Flor, datada de São Paulo em setembro de 1831, a descoberta parece inestimável. Além disto, a cena pintada parece tão ingênua, tão espontânea, tão real, que fica-se a formar um alto conceito do talento do lirista brasileiro. E, todavia, a data é falsa e não passa tudo de uma cópia!

Ei-la :

"Fomos passear eu e Rosa
Na mata que guard’amores,
Eu falava em muita cousa;
Sobre as árvores e flores!…

Mas de gelo parecia;
— Que contraste entre nós dois!
De Rosa o olhar ardia,
A perguntar-me — ‘Depois?’ —

Água pura ali corria
Sobre musgos de veludo,
A natureza sorria
A dormir no mato surdo.

Tirou Rosa o sapatinho
Com ar de ingênua candura,
Pôs n’água o lindo pezinho,
Eu não vi do pé a alvura. —

O orvalho pérolas dava,
Dava sombra o jatobá,
A araponga me trinava,
Rosa ouvia o sabiá.

Eu de quinze anos, severo;
Ela de vinte, a me olhar;
Sabiá dizia ‘quero’
— E araponga ‘ide ousar’.

Ela ergueu-se nos pezinhos,
Colheu um maracujá,
Que mãos! que braços alvinhos!
E nada disso eu vi lá…

Pela mata a acompanhava
Sem saber que lhe dizia;
Ela às vezes suspirava,
Outras vezes me sorria.

Eu só vi que ela era bela
Ao sair da mata virgem,
Só então!… — absorto a vê-la
Em estática vertigem!

De amargo pejo os sinais
Eu vi suas jaces de Rosa.
‘Não pensemos nisto mais’
— Balbuciou-me chorosa.

Por mais que o tempo incessante
Sobre mim venha pesar,
Esse transe a todo instante
Vem meu peito magoar."

Parece ser isto uma recordação da primeira mocidade ; julga-se que o poeta, na facilidade do viver dos sertões, esteve com uma dessas aves selvagens nas mãos, e deixou-a soltar-se por descuido… A cena era bem possível. Rosa, a jovem mineira, esvelta e sadia, embrenhada na mata, suspirava por enlanguescer na mole alfombra, à frescura deleitosa, que se evapora das ramagens das árvores colossais … Desfaz-se a ilusão ; são versos franceses e adaptados ao nosso meio:

"Je ne songeais pas à Rose;
Rose au bois vint avec moi;
Nous parlions de quelque chose,
Mais je ne sais plus de quoi.

J’étais froid comme les marbres;
Je marchais à pas distraits;
Je parlais des fleurs, des arbres;
Son oeil semblait dire: ‘Après?’

Lâ rosée offrait ses perles,
Le taillis ses parasols;
J’allais; jécoutais les merles,
Et Rose les rossignols.

Moi, seize ans, et l’air morose;
Elle vingt; ses yeux brillaient,
Les rossignols chantaient Rose,
Et les merles me sifflaient.

Rose, droite sur ses hanches,
Leva son beau bras tremblant
Pour prendre une mûre aux branches;
Je ne vis pas son bras blanc.

Une eau courait, fraîche et creuse
Sur les mousses de velours;
Et la nature amoureuse
Dormait dans les grands bois sourds.

Rose défit sa chaussure,
Et mit, d’un air ingénu,
Son petit pied dans l’eau pure;
Je ne vis pas son pied nu.
Je ne savais que lui dire;
Je la suivais dans le bois,
La voyant parfois sourire
Et soupirer quelquefois.

Je ne vis qu’elle était belle
Qu’en sortant des grands bois sourds.
Soit; n’y pensons plus!’ dit-elle.
Depuis, j’y pense toujours."

João Salomé mudou o título e a ordem das estrofes do original. Fez o mesmo ao nome dos pássaros.

Pelo que se acaba de expor não se queira desdenhar do poeta mineiro. Estas visitas a Vítor Hugo podem ser desculpadas.

No lirismo popular Queiroga teve algum mérito; até certo ponto é estimável.

Não é que se deva considerar verdadeira a solução por ele dada ao nosso nacionalismo literário.

Semelhante solução consiste em supor um dever da literatura pátria o aferrar-se ela exclusivamente à descrição de tipos e cenas das classes mais grosseiras e atrasadas do nosso povo: o caipira, o matuto, o tabaréu, o garimpeiro, o vaqueiro, o sertanejo, os tipos incultos da roça em suma. Temos tido o indianismo e o negrismo; entendeu ele que devemos ter também o matutismo.

Não há nisso inconveniente; em literatura tudo é lícito, uma vez que seja espontâneo e tenha o cunho do talento. O que se deve é não dar ao matutismo mais valor do que ele tem na realidade, isto é, o de uma poesia inferior e local, mais ou menos apreciável, segundo revela mais ou menos inspiração.

Queiroga escreveu diversas poesias desse gênero.

São preferíveis aquelas em que relatou algumas lendas e tradições. O Irmão Lourenço e o Menino-Diabo são desta espécie.

São de simples caráter popular e descritivo a Negra, o Retrato da Capixaba, a Mulata, e a Lavadeira do Lucas. Devem ser lidas ainda hoje; são anteriores às de Juvenal Galeno e no mesmo tom.

Como satírico era de uma mediocridade consumada o mineiro. Nem força, nem graça.

 

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