Sêneca – Biografia e Pensamentos

SÊNECA- ESTUDO
INTRODUTIVO
G. D. Leoni

Fonte: Edições de Ouro

I — A vida
de Sêneca

 É ainda
hoje opinião comum ver em Sêneca um grande escritor e um homem corrupto; e os
poucos que defendem o estudioso ainda estão propensos a separar sua vida de sua
obra, não achando possível uma conciliação entre o modo de vida e a moral
pregada nos tratados. Na verdade, parece-me que, além de ser vítima de uma
injustiça histórica, Sêneca seja também vítima de uma mentira convencional,
derivada do servilismo crítico, que repete opiniões seculares. A opinião comum,
portanto, faz dele o modelo de todas as baixezas; nem eu pretendo neste breve
ensaio torná-lo o modelo de todas as virtudes, refutando uma por uma as muitas
acusações: desejo unicamente apresentá-lo tal como sai da documentação
histórica e, mais ainda, de sua obra, não dando importância à triste lenda, que
os séculos cada vez mais aumentaram e que os críticos acolheram com alguma
reserva, mas sem tirar o véu da condenação, decretada pela tradição. Estou
longe da apologia; contudo, repugna-me aceitar de olhos fechados uma acusação,
somente porque não existe uma defesa. O destino foi em parte malvado para com
Sêneca: fez chegar até nós as acusações e destruiu as defesas. Por sorte,
existe grande parte da obra literária; e da leitura atenta dessas páginas pode
surgir um juízo sincero, que as reticências dos historiadores ou dos estudiosos
procuram ofuscar. Oportunamente veremos as razões.

Para
examinarmos breve e claramente a vida de Sêneca, é necessário dividi-la em
quatro períodos: a mocidade, o exílio na Córsega, o preceptor e o conselheiro
de Nero, e a velhice. No primeiro século de Cristo, a Espanha dá a Roma os
quatro vultos mais eminentes do mundo intelectual: Sêneca, Luciano, Quintiliano
e Marcial. Sêneca surge de uma família que tinha por tradição a atividade
intelectual: o pai viveu em Roma entre os mais afamados retóricos da época,
reunindo numa espécie de antologia ("Oratorum et Rhetorum Sententiae Divisiones
Colores") a própria experiência de estudioso; sua mãe Hélvia foi mulher de
mentalidade vivaz e severa: a ela o filho erigirá um monumento imortal na
célebre "Consolatio". Intelecto vivo, de saber profundo, na vida e
nos estudos, o jovem manifesta variedade de atitudes: a poesia e a eloquência o
atraem, a filosofia e as ciências o seduzem. Nasce em Córdova no fim da idade
antiga (os críticos discutem acerca do ano de nascimento, oscilando entre 4
a.C. e os primeiros anos da era cristã: parece-me muito aceitável a data do
primeiro ano antes de Cristo); de constituição fraca, vive, por motivos de
saúde, no Egito, onde tinha parentes; e lá estuda as condições e os usos da
região. Voltando para Roma, dedica-se ao exercício do foro, especialmente no
Senado, onde continuava, após o admirável equilíbrio das reformas de Augusto, o
ideal republicano, combatido pelos novos imperadores absolutistas. Entre o foro
e o ambiente mundano, sobe pouco a pouco para tornar-se objeto de uma admiração
que lhe dá glória, mas lhe suscita também inveja: em particular, a inveja do
Imperador Calígula, que pensa em desfazer-se dele, e depois consente em
deixá-lo viver, porque lhe asseguram que em breve o jovem tísico morreria de
morte natural. Como se vê, o ambiente mudou: era de ontem o próvido mecenismo,
que abria as portas aos poetas e criava a atmosfera, da renascente literatura;
agora a inteligência põe em suspeita os príncipes tiranos, e a obra cultural
suscita ciúmes, inveja, terrores.

Muito
diferentes de Augusto foram os sucessores. Tibério não teve a doçura e a
astúcia, que formaram a característica pessoal do primeiro imperador: era
laborioso, estudioso, amante de seu povo, mas altivo; rijo na observação de
seus deveres de príncipe, tinha continuamente medo que outros ameaçassem seus
direitos e sua vida. Tais suspeitas não eram infundadas, porque entre os nobres
romanos não eram poucos os que desejavam o restabelecimento da antiga
república; e, como as instituições do império eram quase iguais às da
república, uma
revolução
podia, abolindo somente o cargo de príncipe, fazer voltar o regime precedente.
A natureza suspeitosa de Tibério tornou-se ainda mais desconfiada pela malvadez
das pessoas que o rodeavam; e o imperador perseguia os adversários e encorajava
os delatores, malvados cidadãos que por amor torpe ao dinheiro tinham a
crueldade de fazer-se acusadores dos que censuravam o governo imperial.

O Senado e
a nobreza foram tratados ainda pior pelo sucessor, Calígula: logo perceberam
não ter depositado bem sua confiança quando o escolheram como imperador.
Despótico, esbanjador, amado pelo povo e pelos soldados por causa das despesas que
fazia em festas e presentes; odiado por todos os que conheciam seu mau governo,
Calígula foi talvez um louco. Para livrarem-se dele, mataram-no; e esse foi o
primeiro exemplo das mortes violentas dos imperadores romanos, que com o correr
do tempo se tornaram tão freqüentes. A morte violenta de Calígula fez conhecer
os perigos, aos quais Roma e o império estavam expostos. O império não sendo
hereditário, era lícito ao imperador vivente escolher só um herdeiro de seu patrimônio
particular, designando-o ao Senado e ao povo para que lhe conferissem depois a
autoridade do cargo imperial. Assim, Augusto designou Tibério e este designou
Calígula. Mas Calígula não teve tempo de designar seu sucessor. Era preciso
eleger, portanto, um sucessor. Muitos senadores eram contrários a isso; e se
esse partido tivesse vencido, o império teria voltado a ser uma república
aristocrática. Mas a sorte de Roma foi, ao contrário, decidida pela vontade do
exército e especialmente dos guardas pretorianos, isto é, a guarda imperial. De
fato, os soldados, em particular os pretorianos, eram muito contrários ao
governo republicano; por isso, à morte de Calígula, proclamaram imperador
Cláudio César Germânico, tio de Calígula: e o Senado teve de aceitá-lo. Foi
esse o primeiro exemplo de eleição devida inteiramente aos soldados, exemplo
que depois foi seguido numerosas vezes, o que teve grande e funesta influência
na sorte de Roma.

O governo
de Cláudio mostrou, depois, ainda outros perigos, aos quais Roma estava exposta
durante o regime imperial. Cláudio era tímido, feio., muito erudito, mas pouco
prático em política; em compensação, era homem de honestos propósitos:
respeitou o Senado e atendeu
com cuidado
à administração, à justiça e à legislação. Seu governo, portanto, teria sido um
dos melhores, se Cláudio tão facilmente não se deixasse enredar pelas pessoas
de sua família e pelos libertos empregados em sua corte, os quais tiravam
ocasião dos cargos a eles confiados para mercadejar favores e fazer vinganças.
A primeira mulher de Cláudio, Messalina, foi condenada à morte pelo imperador;
a segunda, Agripina, mulher ambiciosa e esperta, conquistou a tal ponto a alma
de Cláudio, que o induziu a adotar por sucessor o filho de seu primeiro marido.
Quando Cláudio, arrependido, fez entender que teria revogado esse ato de adoção,
morreu, provavelmente envenenado. E assim tornou-se imperador o jovem Nero,
elevado à honra imperial pélas intrigas de uma mulher, que aspirava governar,
sob o aspecto de conselheira do filho ainda moço. A sorte do povo romano tinha
sido sacrificada aos interesses de uma família, e o governo confiado a um jovem
e a uma mulher, como se o império fosse uma verdadeira monarquia hereditária.

Este era o
tempo e o ambiente em que viveu Sêneca durante sua mocidade. Se a aparência da
instável saúde salvou-o da inveja do louco Calígula, as relações com o novo
imperador Cláudio não o salvaram de uma acusação quase certamente injusta. No
ano de 41, Messalina, invejosa da beleza de Júlia Livila (irmã de Calígula e de
Agripina) quis levá-la à ruína e encontrou um fácil pretexto no ilustre
frequentador da corte. Conforme testemunho do historiador Suetônio
("Claudius", 29), a jovem foi condenada à morte sem que fosse provada
a sua culpa ou que lhe fosse concedida a defesa; portanto, embora nada mais
conheçamos, também o castigo de Sêneca não parece merecido. Em todo caso, eis
Sêneca condenado ao desterro, na ilha de Córsega, naquele tempo habitada por
populações quase selvagens. Na terra inóspita do exílio viveu oito anos, o
melhor período da vida de um homem ativo e intelectualmente genial, qual era
Sêneca. Entre os quarenta e os cinqüenta anos, quando podia não só consolidar
mas aumentar sua glória de homem político, de literato e de estudioso, ele vive
na desventura do desterro e na solidão de um país bárbaro; contudo, parece que
a sorte tenha dado a esse homem a possibilidade de tirar vantagens inestimáveis
da dor: faz com que se dedique completamente aos estudos científicos e mais
ainda à meditação filosófica. No exílio
forma-se a
personalidade grandiosa de Sêneca: aqui e acolá, nas obras dessa época,
transparece o desespero, que pouco a pouco se acalma em resignação, em nova
coragem, em força sublime. Afirmar que a retórica tenha velado a mente do
escritor é como admitir que um pobre não possa ser feliz em sua pobreza; na
realidade, o filósofo encontrou um equilíbrio espiritual, que lhe servirá para
enfrentar novos e mais duros golpes da sorte. Lendo atentamente a
"Consolatio ad Helviam Matrem", acharemos que, embora um pouco
retórica, ela serve mais para atenuar a dor da genitora do que a do escritor;
meditando sobre o "De Brevitate Vitae", encontraremos a sabedoria do
viver espiritualmente mais do que materialmente; nas páginas do "De
Constantia Sapientis", há a imperturbabilidade do sábio. Também na
"Consolatio ad Polybium", onde os críticos quiseram ver um ato de
adulação para com o favorito de Cláudio, podemos reconhecer uma serenidade de
pensamento que vai além do fácil meio de adulação para obter o perdão.

Em 49, com
a morte trágica de Messalina, Sêneca volta para Roma graças à intercessão de
Agripina, a nova consorte de Cláudio, que lhe confia a educação do filho Nero,
o herdeiro do império. Cinco anos dura este encargo, e nesse tempo o jovem
afeiçoa-se ao sábio pedagogo. Mas em 54 o imperador morre envenenado. Voz comum
é que a autora do crime tenha sido Agripina: voz confirmada pelas solicitações
da própria mulher para que o Senado decretasse honras divinas ao marido, que
suprimira muitos familiares e muitos ilustres cidadãos. Esta vileza do Senado
excita a indignação de Sêneca, que escreve uma sátira violenta, injustamente
interpretada como póstuma vingança contra Cláudio, que o exilara: na realidade,
a sátira é de alto entendimento civil, pois não se percebe nela a imprecação
contra um morto, mas sim o grito de indignação e de angústia contra a suprema assembléia,
última esperança da liberdade romana, reduzida à baixa adulação pelo
incitamento de uma imperatriz assassina. Até Nero, que ascendera ao trono com
artes dolosas, ria da deliberação senatorial: Cláudio morrera por ter comido
cogumelos venenosos; e o jovem imperador chamava os cogumelos alimentos dos
deuses, pois também Cláudio, justamente por causa dos cogumelos, tornara-se um
deus…

Aos
dezessete anos Nero subia ao poder; e Sêneca
continuava
a seu lado, não mais como pedagogo, mas como benéfico conselheiro, ajudado por Afrânio
Burro, prefeito do Pretório. É por todos admitido, mesmo pelos historiadores e
críticos hostis, que os primeiros sete anos do governo de Nero lembram o
governo de Augusto: mérito exclusivo dos dois homens, que na realidade
governaram ao lado do jovem príncipe. A índole ruim de Nero foi mitigada,
corrigida, freada; mais tarde a malvadez teve o predomínio. Na realidade, a
maior culpa é de Agripina, que se tornara hostil por ambição, capricho e
corrupção: queria imperar e mal suportava a influência que Sêneca e Afrânio
tinham sobre o filho. Acendeu-se uma luta cerrada: muita verdade deve haver nas
páginas dos "Anais" de Tácito, sempre propenso a ver o ruim, o
misterioso, o trágico mesmo nos episódios mais comuns. Em breve, contra a raiva
de Agripina aumenta a louca vingança matricida de Nero, que não dá mais ouvidos
à palavra severa e admoestadora de Sêneca. Chega-se ao matricídio e à loucura de
Nero: para inebriar-se e esquecer, após noites de pesadelo e de terror,
apaixona-se pelos espetáculos, torna-se poeta e cantor, levando à ignomínia do
circo nobreza e Senado, cidadãos e soldados.

Nesse
ponto, depois de tentar mais uma vez salvar o império, Sêneca decide-se a um
ato de grande energia e não sem perigo (Afrânio morrera, pelo que parece,
envenenado): pede a Nero autorização para retirar-se da vida pública; e como
tinha recebido do imperador imensas riquezas, pede também autorização para devolvê-las.f1)
Nero atendeu ao primeiro pedido, não ao segundo; e Sêneca retirou-se desde
aquele momento para uma desdenhosa solidão, vivendo pobremente e dedicando-se
aos estudos prediletos. Mas a acusação de ter guardado para si tanta riqueza,
que provinha de fonte tão impura (Tácito conta que Nero, para fazer calar as
vozes de suspeita ou de, contrariedade, costumava doar quantias fabulosas),
atinge também o austero Sêneca; pois bem, contra essa acusação parece
desculpar-se o próprio Sêneca, quando, indiretamente, afirma em seu tratado
"De Beneficiis" (II, 18): "Às vezes, mesmo contra nossa vontade,
devemos aceitar um benefício: quando é dado por um tirano cruel e iracundo, que
reputaria injúria que tu desdenhasses seu presente. Não deverias aceitá-lo? Põe
no mesmo nível um assassino, um pirata e um rei que tenha alma de assassino e
de pirata. Que deverei fazer eu, en
tão? Ele porém não merece que lhe
fiques obrigado. Quando afirmo que tu deves escolher a pessoa, pela qual possas
ter gratidão, excluo o caso de força maior ou de perigo; se isso acontece, cai
qualquer escolha. Se, ao contrário, és livre, se está em teu poder querer ou
não, somente então poderás ponderar tua escolha. Mas, se és obrigado a aceitar,
sabe que a tua não é aceitação, é obediência. Ninguém tem demérito por ter
aceitado o que não lhe era lícito recusar." Portanto, o que importa não é
saber que Sêneca era rico, mas se ele se mostrou ávido de riqueza, se viveu no
fausto e na potência de tal riqueza, pois que sua doutrina é esta: é lícito ser
rico, contudo é preciso viver de tal modo que se possa em cada contingência
bastar a si próprio e renunciar a qualquer bem que a sorte pode dar, mas também
tirar ("Epistulae Morales ad Lucilium", 18). Rico, não somente pregou
a pobreza, mas viveu na pobreza.(2) Eis, em conclusão, como viveu o homem, que
foi acusado de ter enriquecido graças a subterfúgios, compromissos e
agiotagens: renuncia a tudo, reduz-se a viver longe de todos, numa liberdade
material e espiritual que aconselhara com o exemplo e com as obras. Sem dúvida,
a posteridade foi injusta, recolhendo contra esse homem só as invejosas
acusações de seus inimigos.

Mas chegou
o momento de ver quais foram esses inimigos. Todas as vozes odiosas contra
Sêneca se acham reunidas na obra de Díon Cássio, historiador grego do segundo
século depois de Cristo; e é fácil constatar que suas fontes foram Plínio o
Velho (nas histórias civis, agora perdidas) e Tácito. Todavia, foi demonstrado
que também Tácito teve por fonte principal Plínio, e que Plínio buscou suas
informações em um libelo de Públio Suílio, homem poderosíssimo durante o
principado de Cláudio. Contra esse homem, que se tornara rico caluniando as
pessoas mais ilustres de seu tempo, Sêneca insurgiu-se, golpeando-o com a
"lei Cíncia", apresentada por Marcos Cindo Alimento, tribuno da plebe
em 550 de Roma, e posta novamente em vigor por Augusto para impedir a corrupção
nos processos e o mercantilismo na administração da justiça. As acusações
contra Sêneca, derivando de um homem tão covarde, podiam ser verdadeiras?
Infelizmente, Plínio refere sem indagar; e Tácito, que vê sempre o mistério em
qualquer acontecimento, suspeita, diz, contradiz-se, mas não nega: e,
infelizmente, também ele
não
acredita nem na defesa de Sêneca, feita por Fábio Rústico, historiador do tempo
de Nero e elogiado pelo próprio Tácito, que o põe ao lado de Tito Lívio ("Agrícola",
10: recentium eloquentissimi auctores). Encontra-mo-nos, portanto, na condição
de possuir as acusações, mas não as defesas: é possível disso tirar a verdade?
Seria como se de Sócrates conhecêssemos somente a sátira de Aristófanes e não
as obras de Platão. É melhor ver Sêneca em suas obras e narrar o seu fim, que
foi verdadeiramente digno das doutrinas professadas.

Livre do
peso de aconselhar o feroz tirano, Sêneca vive os últimos três anos de sua vida
escrevendo e meditando. Do isolamento nascem as mais profundas meditações: a
moral que ele pregava, torna-se cada vez mais límpida, quanto mais se aproxima o
momento de mostrar com o exemplo a verdade sustentada. "Com alma alegre e
hílare — escreve ele ao amigo Lucílio ("Epistulae", 12,9) — devemos
encerrar nosso dia, dizendo: vivi, cumpri meu curso vital. O amanhã é ganho, se
deus no-lo conceder." Em muitas páginas ("Epist.", 70, 14 e 16;
"De Ira", III, 15) ele dirige seu pensamento à almejada liberdade do
além-túmulo: "Procuras qual seja o meio para chegar à liberdade? — pergunta
ao querido Lucílio. — Uma veia qualquer de teu corpo." E uma veia, de
fato, abriu-lhe o capítulo desejado.

O ódio de
Nero contra o velho preceptor não procurava senão um pretexto. Em 65 foi
descoberta uma conjuração contra o imperador: era chefe o nobre Calpúrnio
Pisão, rodeado por altas personalidades civis e militares. Não há confirmação
de que Sêneca fizesse parte da conjuração ;f3) mas Nero colheu a ocasião que
procurava. Tácito conta numa dramática página ("Annales", XV, 60-51 o
fim do filósofo. O núncio imperial foi pela tarde à "vila" suburbana
de Sêneca, enquanto este jantava com a esposa e dois amigos. Introduzido, o
núncio expõe a acusação de ter Sêneca participado da conjuração. O velho nega
energicamente e pede ao tribuno que lembre a Nero como ele não tinha espírito
dado à mentira, quer por adulação quer por servilismo. Volta daí a pouco o
tribuno com a ordem fatal. Sêneca não se abala e pede as tábuas do testamento;
sendo-lhe respondido que isso lhe é vedado, dirige-se aos amigos: "Se não
me é dado atestar-vos de outra forma meu reconhecimento, deixo-vos o que posso:
a imagem de minha vida virtuosa." E consolando os amigos desesperados,
abraça a esposa, Pompéia Paulina: esta pede a graça de morrer com ele. Um mesmo
golpe corta as veias de seus braços. Mas do corpo do velho exausto lentamente
saía o sangue: outras veias são cortadas para apressar a morte; e ele mesmo
continua a falar, ditando palavras que, no dizer de Tácito, se tornaram
populares. À esposa, no entanto, transportada para outro quarto, por ordem do
imperador lhe foi impedida a morte. Sêneca, vendo que as muitas feridas não
bastavam, bebe uma porção de veneno; em seguida, toma um banho de água quente,
depois um banho de vapores quentes: faltam-lhe as forças e adormece, placidamente,
no sono da morte.

Não lembra
a morte de Sêneca as páginas de Platão onde é narrado o estóico fim de
Sócrates? Teve razão um anônimo escultor, quando deixou uma herma bifronte, que
reproduz(4) de um lado a imagem do filósofo grego e do outro a máscula figura
de Sêneca, o único retrato talvez do filósofo romano: se Sêneca deve muitas das
suas teorias a Sócrates, também como ele soube morrer.

II — A obra
de Sêneca

Se a
tradição foi injusta para com Sêneca, a sorte que, como escritor, ele teve na
Idade Média fez chegar até nós muitas das suas obras. O códice da Biblioteca Ambrosiana
de Milão reúne com o título de "Dialogorum Li-bri XII" a coletânea,
que após a morte do filósofo foi feita das suas obras mais breves, de assunto
moral. Realmente, o título de "diálogos" não é exato: não se trata de
verdadeiros diálogos, do tipo dos de Platão ou de Cícero, mas de solilóquios,
durante os quais um interlocutor faz alguma objeção, breve, sem vivacidade de polêmica.
A Sêneca basta uma frase, atirada lá, quase de improviso, para passar a uma
elucidação, a um exemplo, a uma conclusão. A personagem, ideal desses diálogos
é, pode-se dizer, a própria consciência de Sêneca, que amiúde oscila nas
lógicas antinomias do pensamento cotidiano. Estamos bem longe da dramaticidade
dos diálogos platônicos ou da esperta eloqüência das páginas ciceronianas;
todavia, Sêneca, embora refletindo a infiltração retórica, que anuncia a
decadência do período áureo da literatura
latina,
consegue obter um estilo novo: parece quase que, em Sêneca, o latim se renova,
passa da clássica austeridade de Cícero à eloqüência de uma prosa menos âulica,
mais humana. A prosa adere ao pensamento, uniformiza-se, adapta-se a ele; e
muitas vezes um subentendido produz um jogo de luzes e de sombras cheio de
profunda beleza, amiúde a frase breve produz inesperadas imagens pictóricas,
outras vezes antíteses ou anedotas enriquecem as sentenças austeras, a argúcia
atenua a trágica solenidade do assunto. Bem se compreende como o juízo dos
críticos latinos seja desfavorável: enquanto vivo Sêneca, Calígula compara-o
com harena sine calce (Suetônio, "Calig.", 53); e Áulo Gélio lhe é
hostil ("Noctes Atticae", XII, 2,1) ainda mais que Quintiliano, o
qual se preocupava por ser Sêneca o único autor lido pelos jovens ("instituto
Oratória", X, 1, 125), explicando que "sua eloqüência é geralmente
defeituosa e tanto mais perniciosa, quanto é rica de vícios atraentes"
(idem, 129). Mas, justamente porque abundans dulcibus vitiis, a prosa de Sêneca
é vivaz, variada, alegre, moderna, própria para um pensamento moderno, que não
podia ser mais compreendido por quem procurava o arcaísmo republicano de Catão,
a psicologia histórica de Sálústio, o classicismo liberal de Cícero: a prosa de
Sêneca criava o estilo do período em que já se vivia perigosamente. Ainda um
passo, e teremos o laconismo de Tácito.

Os doze
livros dos diálogos contém dez tratados (o "De Ira" é dividido em
três livros), que variam de assunto, embora a moral seja única. De fato,
"Ad Lucílium de Providentia" trata quare aliqua mcommoda bonis viris
accidant, cum providentia sit, procurando mostrar que as desventuras, pelas
quais passam os bons, devem ser consideradas como provas, para melhor pôr em
evidência suas virtudes: porque amiúde os bons são infelizes, enquanto os
malvados gozam de todas as satisfações. Os deuses põem à prova a virtude e
exercitam a força de espírito dos bons, que devem seguir seu destino
preestabelecido: o sábio por isso nunca será infeliz. O sábio ("Ad Serenum
de Constantia Sapientis"), que possui um único bem ~ a virtude — não pode
sofrer ofensa alguma: como o mais fraco não pode atingir o mais forte, assim a
fraca covardia não atinge a forte virtude. No "Ad Novatum de Ira Ubri
III" (dedicado ao irmão), o primeiro livro faz o diagnóstico geral desta
morbosa paixão; o segundo procura a origem da mesma, discutindo utrum indicium
an ímpetu íncipiat; o terceiro ensina a dominá-la ou pelo menos moderá-la: a
ira, que invade os homens e não os animais, não é uma paixão conforme a
natureza. Natural pode ser somente o primeiro sentimento; mas o homem deve
deixar-se guiar pela razão, considerando a ira como danosa para si. Não há
acordo entre sabedoria e ira: a alma nunca deve perder sua serenidade, embora
qualquer ruína sobrevenha ao corpo. Sendo a ira uma paixão danosa, é
conveniente premunir-se contra ela. O princípio fundamental da doutrina estóica
— o sumo bem está na prática da virtude e não do prazer — é moderado no
"Ad Gallionem de Vita Beata", pois são admitidos outros bens (a saúde
e a riqueza) como coeficientes da felicidade humana: é necessário praticar o
bem, uniformizando a prática à teoria; e mal pensam os que, enquanto com
palavras desprezam a riqueza, com os fatos ao contrário a procuram. O "Ad
Serenum de Otio" visa justificar a vida retirada e dedicada aos estudos,
conciliando-a com os deveres da vida pública: o homem, que deve viver conforme
a natureza, pode dedicar-se à meditação (otium), pois também com isso pode
fazer coisa útil a todos. O homem, se pode, deve ser útil a muitos; se não, a
poucos; se nem a esses, aos mais próximos ou então a si mesmo; e terá feito
também assim obra boa. Ê difícil para o homem (e também para o sábio) manter
sua serenidade perante o espetáculo da injustiça e da baixeza, do qual todos os
dias é testemunha ("Ad Serenum de Tranquillitate Ani-mi"i; mas o
sábio não pode odiar os maus, porque em todas as idades as condições morais são
mais ou menos as mesmas. Se o mal é uma necessidade da vida, à qual os homens
não se podem subtrair, por que devemos odiá-los e não antes, por isso mesmo,
aprender a amá-los? O sábio deve conservar-se afastado dos desejos sem limites
e insaciáveis, armar-se contra as desgraças, manter-se calmo mesmo perante as
injustiças, que vê em seu redor. A vida é breve ("Ad Paulinum de Brevitate
Vitae") para quem, perdendo seu tempo em frivolidades, não visa ao próprio
aperfeiçoamento moral; é longa para quem, como o sábio, sabe fazer bom uso do
tempo.

As três consolationes
são talvez a obra mais conhecida e decerto mais interessante de Sêneca. A
forma, se não é originalíssima, é ao menos pessoal: o escritor aproxima-se cada
vez mais da humanidade, falando com
três
pessoas afligidas pela dor. O interlocutor ideal não é mais a consciência do
filósofo, mas uma criatura viva que sofre. Todavia, a idéia fundamental
continua: na "Ad Mareiam de Consolatione" conforta Mareia, filha do
historiador Cremado Cordo (vítima do despotismo imperial), pela perda de seus
queridos; e o conforto baseia-se nos conceitos da dor universal, à qual ninguém
pode subtrair-se, na necessidade da morte e nas virtudes dos entes perdidos. Na
"Ad Polibium de Consolatione" conforta o poderoso liberto do
Imperador Cláudio pela perda do irmão: escrita durante o desterro na Córsega,
parece uma adulação para que Políbio interceda junto a Cláudio em favor de
Sêneca. A sombra da desaprovação dos críticos, que quiseram ver nessas páginas
uma grave contradição entre as teorias sustentadas pelo filósofo e a prática
degradação do homem que especula sobre a dor para dela tirar vantagens, deve
ser afastada, considerando a constante unidade da idéia de Sêneca, que também
aqui continua a demonstrar como a morte é uma necessidade, à qual ninguém pode
fugir; pelo que nada vale a queixa: que nem os mortos recebem de bom grado.
Grande conforto é o estudo. Se essa obra pode ser criticada como um momento de
fraqueza de um homem, que há anos vivia na inóspita ilha do exílio, a figura de
Sêneca aparece límpida na terceira consolatio, também escrita durante a sua estada
na Córsega ("Ad Helviam Matrem de Consolatione") e dirigida à mãe:
nobres páginas, nas quais o elemento moral (o desterro não é mais que uma
mudança de habitação para o sábio, o qual não pode ser infeliz) une-se
admiravelmente ao elemento humano, quando incita a mãe a suportar com coragem
as desgraças da vida.

De Sêneca,
além dos dez diálogos, temos ainda quatro obras, diferentes pela estrutura e
quanto à importância, que o tempo fez chegar até nós mais ou menos completas. (5)
Escrito nos primeiros anos do principado de Nero (em 55 ou 56 d.C.) e dedicado
ao imperador é o "Ad Neronem Cães arem de Clementia": em forma
simples e agradável o autor expõe a utilidade, melhor ainda, a necessidade da
clemência num príncipe, propondo Augusto como modelo de generosidade. É
evidente a intenção do ensinamento; e, 7ios primeiros anos, Nero ouviu
benevolamente os conselhos do antigo preceptor. Mais tarde a obra de Sêneca não
teve efeito algum sobre o tirano sanguinário, do qual o filósofo se afastou:
desse tempo deve ser o tratado "De Beneficiis Libri VII", pois nele
achamos manifestadas idéias práticas sobre os benefícios e a gratidão. São
muitos os ingratos, mas nem por isso os bons devem desistir de fazer o bem.
Muitos são os benefícios, diferentes os modos de concedê-los, diferentes os
modos de aceitá-los: a gratidão é um dever, mas muitos por diversas razões são
ingratos. Notáveis são os exemplos lembrados nessa obra, onde predomina o
sentimento de humanidade social e onde é tratado um moderno conceito sobre os
deveres que o homem tem para com a sociedade, da qual faz parte; e notável é
também a demonstração de que o sábio não se deve sentir obrigado perante o
tirano, do qual recebeu benefícios: o tirano doa conforme seu capricho, sem
critério, e o sábio, com os seus conselhos, retribui em maior medida qualquer
beneficio recebido. Os críticos pouco benévolos para com Sêneca quiseram
demonstrar que ele escreveu essas páginas para desculpar-se de suas imensas
riquezas; de qualquer maneira, a tese é geral e o assunto é demonstrado com
intenções nobres.

Ao último
período da vida de Sêneca pertencem os "Naturalium Quaestionum Libri VII",
dedicados a Lucílio, governador da Sicília, e as "Epistulae Morales",
dedicadas ao mesmo jovem amigo. A primeira obra nos apre-senta Sêneca
cientista: como estóico, admite que, para conhecer a virtude e a divindade, é
mister estudar antes a natureza em suas diferentes manifestações e em seus
fenômenos físicos. Também ele, como Lucílio (que escreveu um poema sobre o
Etna, falsamente atribuído a Virgílio pela tradição), é um entusiasta da
ciência em geral e do Física em particular, que indica como base da moral:
repreende, portanto, os que perdem seu tempo e gastam o intelecto, narrando
migalhas da História, em lugar de voltar a mente para os estudos de Geografia,
Meteorolologia e Astronomia. Esta obra, derivada talvez de Posidônio, teve
grande sucesso durante a Idade Média como livro de texto: para os modernos
contém erros graves; mas tem notável importância para a história da ciência
antiga Para o conhecimento da evolução do pensamento de
Senêca, são
muito interessantes as digressões de caráter moral, que visam atingir a
corrupção dos contemporâneos.

 

A Última obra
de Sêneca são as "Epistulae Morales ad Lucilium", que constituem um
curso completo de ética, desenvolvido em vinte livros;(6) são 124 cartas,
escritas num estilo simples, mas profundas no conteúdo moral, quase sempre
prático. O escritor publicou os três primeiros livros, o que significa que a
forma epistolar era um pretexto, pois ele não se dirige ao amigo Lucílio, mas
sim a toda a humanidade contemporânea e futura.

Com a
atividade filosófica e científica Sêneca alternou durante a vida uma atividade
poética, que pareceria contradizer, à primeira vista, a índole de sua alma
meditativa; mas também os epigramas compostos no desterro e as tragédias não
nos afastam do seu mundo moral. A tragédia, teatralmente morta com Lúcio Ácio
no início do século precedente, era o gênero preferido pela classe
aristocrática: escritas para a leitura, nos círculos literários, as tragédias
serviam para debater concepções filosóficas ou políticas. Assim, Sêneca compôs
nove tragédias: "Hércules Furens". "Troades",
"Phoenissae", "Me-dea", "Phedra",
"Oedipus", "Agamemnon", "Thyestes",
"Hercules Oetaeus" (furioso). Só observando os títulos, vemos a
imitação de assuntos gregos já desenvolvidos pelos poetas do período arcaico
latino; e o modelo é certamente Eurípedes, o mais filósofo dos trágicos helênicos.
Ricas de fatos, de psicologia, de inspirações morais, essas tragédias têm um
defeito fundamental: falta-lhes a teatralidade. Sêneca quer levar ao palco não o
drama de Hércules, de Tiestes, de Agamenon, de Édipo, mas o drama da sua alma:
da atmosfera das grandes paixões heróicas saem as meditações a respeito do
destino, do mistério do universo, do trabalho espiritual do homem. As
personagens pensam, não agem; falam, não lutam; são interessantes, mas não
comovem; e são todas iguais, todas filósofos, que falam como estóicos e como
estóicos devem morrer: até morrem estoicamente sobre o palco, contra o costume
grego e o preceito horaciano, que negam verossimilhança a esse expediente
dramático. A inovação de Sêneca é moderna e servirá de exemplo a todos os
autores de tragédias, desde Shakespeare até Corneille, desde Schiller até
Alfieri; mas è uma inovação retórica, que leva a humanidade à ação. Sêneca,
embora conheça e saiba examinar o coração humano, nessas tragédias ê um
filósofo que não sabe encontrar uma forma que se adapte a seus tratados.C)

Não estaria
completo o quadro das obras de Sêneca sem um breve aceno a uma sátira, que os
críticos modernos, depois de longa hesitação, estão agora concordes em atribuir
ao escritor romano. Trata-se de uma "sátira me-nipéia", mista de
verso e prosa: os códices lhe dão o título de "Divi Claudii Apotheosis
Annaei Senecae per Saturam"; mas Díon Cássio dá-lhe o título de "Divi
Claudii Apokolokyntosis",^) isto é, "apoteose daquela abóbora de
Cláudio". Ê uma sátira mordaz contra o Imperador Cláudio, ou melhor,
contra o Senado que decretou honras divinas ao príncipe. Começa com a descrição
da morte de Cláudio, que, como Augusto, Tibério e Calígula, se apresenta no
concílio dos deuses para pedir a apoteose. Após longa discussão, na qual tomam
parte as principais divindades, Cláudio é rejeitado pela celeste reunião e
mandado ao inferno, para onde é levado por Mercúrio, não antes porém de ser
obrigado a passar sobre a Terra e assistir em Roma ao seu próprio enterro; no
inferno é acolhido pela fileira numerosa de suas vítimas, que o acusam das
culpas pelas quais se manchara em vida. Cláudio quer defender-se e procura um advogado; mas Eaco, juiz infernal, não quer ouvi-lo (imitando o próprio Cláudio
que em vida costumava ouvir somente o acusador) e o condena a brincar com dados
num copo sem fundo, de modo que os dados lhe fogem, sem que ele compreenda
nada. Chega Calígula, que quer Cláudio como escravo: chicoteado e esbofeteado,
acaba sendo escriturário forense. A sátira, que talvez nos chegou incompleta,
não é, artisticamente, uma obra importante: Sêneca não tinha alma de escritor
satírico; todavia, sente-se amiúde em alguns episódios a genialidade de um
intelecto que, também num gênero pouco adaptável à própria sensibilidade,
demonstra a força da indignação contra um tirano e contra uma assembleia
corrupta e por isso imoral.

III — A
moral de Sêneca

A magnífica
intuição dos poetas define de maneira perfeita aquilo que o crítico se esforça
por esclarecer e amiúde ofusca. É opinião comum que Sêneca seja um filósofo;
Dante, ao contrário, dá-lhe o apelativo de moralista ("Inferno", IV, 141):
no limbo, o poeta italiano vê, entre sumos escritores e heróis antigos —
Sócrates, Platão, Demócrito, Diógenes, Anaxágora, Tales, Empédocles, Heraclito,
Zenão, Dioscórides, Orfeu, Cícero, Lino e "Sêneca morale".

Provavelmente,
no apelativo "morale" Dante considerava implícito o substantivo
"filósofo"; mas para Dante poesia e filosofia identificavam-se. Nesse
sentido também nós podemos aceitar a definição, pois uma atenta leitura das
obras faz compreender que o filósofo Sêneca é bem diferente de um verdadeiro
filósofo: ele é um entusiasta da filosofia, um estudioso apaixonado e informado
de todas as correntes de idéias de seu tempo, mas é demasiadamente contrário a
encerrar-se num sistema ou numa fórmula. Ele é filósofo, tanto quanto o é cada
homem; mas é também e principalmente poeta, pois o elemento preponderante em
suas obras são os sentimentos, mais do que as ideias. Na história do pensamento
não contribuiu em nada; nem com uma ideia: contudo, ninguém nunca foi tão
compenetrado do sentimento da nobreza do espírito humano e ninguém soube tão poderosamente
transmitir esse sentimento em suas palavras.

O que mais
causa admiração e entusiasmo nas obras de Sêneca é a simplicidade com a qual
este mostra nossas paixões, examina-as de perto, vivisseciona-as, exalta-as ou abate-as,
sem nunca sair do campo prático da vida. Mesmo quando retórico, ele é humano,
porque sua retórica nasce do entusiasmo da pesquisa ou da demonstração. Não
afirma categoricamente senão depois que recolheu abundantes exemplos,
circunstâncias, acontecimentos, comparações; e os exemplos, as circunstâncias,
os acontecimentos, as comparações são tirados da vida de todos os dias, do
quadro natural desta. As idéias abstratas são uma riqueza que não tem valor,
uma moeda que não tem curso. Para Sêneca, o homem vive no meio dos outros
homens, não separado do mundo.

Enquanto a
doutrina de Epicuro encontrara terreno favorável na Roma das guerras civis e
depois morrera na renascença de Augusto, o estoicismo renascia nos tempos do
império não somente como meio para combater a tirania dos sanguinários
imperadores, mas sobretudo como concepção política. De fato, fazendo uma
relação historicamente paradoxal, poderíamos reconhecer que em política o
epicurismo levado a suas mais afastadas consequências não pode concluir senão
com o liberalismo, que é a concepção mais contrastante com o universalismo do
direito romano. O estoicismo, ao contrário, embora não podendo encontrar na
alma romana a resignação perante a necessidade do destino, podia encontrar
em Roma uma
grande adesão, graças à proclamada necessidade de fortalecer o caráter perante
a dor física e moral, assim como já era na tradição da primeira república. O
fato de que os costumes dos cidadãos romanos tivessem perdido a rigidez dos
antigos podia até levar a ver na moral estóica uma útil função educativa. O
estoicismo romano — o de Sêneca, de Epíteto, de Marco Aurélio, não o estoicismo
eclético de Cícero — apresenta justamente a característica de acentuar a
finalidade ética: não é só a maior aderência aos problemas da vida da sociedade
romana, que afasta decididamente os conceitos físico-teóricos; mas também a
exigência da reforma moral de toda a humanidade, reforma auspiciada pelo
Cristianismo entre os homens que ainda não podiam ser cristãos por muitas
razões e que ao mesmo tempo não estavam mais satisfeitos com uma moral que não
reconhecia a eficácia de muitos dentre os mais delicados sentimentos. O
estoicismo nascera das exigências éticas; e ética devia ser sua função em Roma,
no tempo de Sêneca e depois de seu período, quando o conceito doutrinário
físico-teórico não interessava mais a ninguém; mas concorria, com as outras
doutrinas menores e sobretudo com outras tendências religiosas, para preparar o
terreno onde a palavra de Jesus pudesse dar uma nova consciência moral. Entre a
moral de Sêneca e a evangélica há um abismo: para Sêneca, o homem pode remir a
si mesmo com a força da razão, para São Paulo só pode ser remido por Deus no
abandono da fé; no Cristianismo, Deus é salvador dos homens, na ideia de
Sêneca, o homem é o salvador de si mesmo; na visão evangélica, o milagre desce
do céu para a humanidade, na de Sêneca sobe da alma humana para o céu. Todavia,
tanto São Paulo como Sêneca observavam o homem em sua terrena passagem através
das paixões, das dores, do martírio espiritual e material; e ambos queriam
remi-lo. Não pode ser considerado Sêneca como o poeta da energia da vida moral?

Por isso
Sêneca aparece-nos, a quase dois mil anos de distância, como um moderno: é um
homem que vive a nossa vida e se agita em nossas lutas. Mas a modernidade de
Sêneca é um dos tantos preconceitos com os quais queremos descobrir verdades
fundamentais: os grandes pensadores e os grandes escritores, na realidade, são
de todos os tempos, pois eles descobrem um trecho da verdade eterna. Quando os
lemos, neles encontramos parte de nosso pensamento, de nossa consciência; e os
chamamos modernos. Não são modernos: são grandes, sabem dizer aquilo que nós
sentimos e não sabemos manifestar por meio da palavra escrita ou oral. E por
isso Sêneca é grande: vive, observa, entusiasma-se, escreve; e suas palavras
simples e claras nos chocam. Todos nós estamos convencidos de que a humanidade
é uma só grande família; e Sêneca o demonstra com imagens de persuasiva
eficácia ("Epist.", 95, 52): "Nós somos como membros de um só
corpo, a natureza nos fez unidos, nos fez nascer dos mesmos princípios e para o
mesmo fim. A natureza nos deu o instinto do recíproco amor e da vida social.
Ela é a base da equidade e da justiça. Ela nos faz sentir que é muito melhor
receber o mal que fazê-lo. Ela nos impõe estender as mãos socorredoras para
quem precisa… A sociedade é como uma abóbada, que se desfaria toda, se uma
pedra não sustentasse a outra." E com esses princípios é natural que ele
reconheça como crime as guerras ("Epist.", 95, 30) e que a propósito
dos espetáculos sanguinários exclame melancolicamente ("Epist.", 35,
33): "O homem deveria ser sagrado para o homem, e agora ao contrário é
matado por brincadeira e deleite. Deveria ser crime ensinar o homem a dar e
receber feridas, e ao contrário ele é apresentado nu e inerme, fazendo-se
espetáculo de sua morte."

A moral de
Sêneca baseia-se no amor humano; e em todas as suas páginas vemos desfilar um
grande sentimento de piedade. A respeito de uma desonra social — a instituição
da escravidão — ele tem palavras de sentida veemência ("Epist.", 47):
"São servos, mas homens; servos, mas nossos companheiros; servos, mas
nossos humildes amigos; servos, mas unidos à nossa servidão, somente se
considerarmos um instante qual poder tem a sorte sobre nós e sobre eles."
Ele reconhece sempre e abertamente o direito humano dos servos e a iniquidade
jurídica e moral da escravidão, que não existe na natureza humana, assim como
não existe a nobreza: essas duas condições são devidas à injustiça ou à sorte,
e são igualmente acidentais, pois de um lado constituem um privilégio, de outro
uma injúria. A sociedade quis legalizar o privilégio da nobreza e a injúria da
escravidão; mas a consciência moral recusa reconhecer o que impôs a violência
legal. O direito positivo negava ao escravo a pessoa jurídica; Sêneca lha
devolvia inteira sobre a base
do direito
natural: "Quem não exclui que o escravo pode ser benfeitor de homens
livres, não conhece o jus humano." ( "De Beneficiis", III, 18.)
Assim Sêneca, que afirmava contra o direito constituído a imutável existência
de um direito de humanidade, dava o exemplo moral à doutrina jurídica, que
cinco séculos mais tarde era solenemente codificada nas "Instituições
Justinianas". O princípio jurídico que reconhecia a servidão "como
constituição do direito dos povos contrária ao direito da natureza"
("Inst.", I, 1, 3) nascia do princípio moral da doutrina estóica de
Sêneca, mais talvez que do pensamento cristão de São Paulo, que aceitava a
instituição da servidão como jurídica e socialmente válida, e de S. Agostinho,
que reconhecia a servidão como elemento providencial da ordem constituída por
Deus.

A doutrina
moral de Sêneca nasce do amor; e também da dor. É uma contínua tentativa para
fortalecer a alma contra as injúrias da sorte e da iniquidade humana; é uma
preparação do homem aos combates extremos: deve-se viver entre os próprios
bens, entre as coisas mais queridas, como se a todo momento essas pudessem
deixar-nos, como se a todo momento a vida mesma viesse a faltar-nos. Ele repete
a frase de Demétrio, filósofo cínico: "O ser mais infeliz da Terra é
aquele que nunca sofreu adversidades." A maior felicidade está em não
precisar de felicidade, está em achar em si mesmo o próprio bem, sem
dependência alguma dos casos e das injúrias da sorte e dos homens: assim,
somente o sábio, na imobilidade de sua consciência intangível porque interior,
incorruptível porque isolada, supera qualquer relação de forças externas, que
agem a seu redor, e torna-se e é sempre o único dono e libertador de si mesmo.
É preciso sermos sábios, não eruditos: a sabedoria ensina o homem a gozar de
seu tempo, a erudição ensina a perdê-lo; a primeira ensina a viver bem e
frutuosamente, a outra a viver mal e vadiamente. A cultura pode e deve ser um
aviamento para a sabedoria, não um fim. Finalidade da vida humana não é ter
tantas noções que não servem para nada: é ter a força de resistir ao mal, de
superar as asperezas da existência e de receber a dor como um tesouro do
espírito. Nessa contínua elevação moral está toda a humanidade de Sêneca: ele
ensina porque tem experiência de ter conquistado a virtude com o drama da
própria vida; e pode dizer as palavras necessárias a quem sente a necessidade
de não esquecer, nas transações cotídianas, a pureza de sua origem e de sua
natureza. Sêneca pode ensinar porque conquistou a virtude dia a dia, momento a
momento, e conhece assim as alegrias das vitórias e o abatimento das derrotas.
Nas páginas de Sêneca encontramos o homem em colóquio contínuo consigo mesmo: o
expediente do fictício contraditor (tão comum na literatura filosófica
helenística) é justificado aqui pela íntima necessidade de dirigir uma palavra
também às fraquezas humanas. A indivisibilidade desses dois aspectos explica a
aparente anomalia, pela qual Sêneca, que geralmente prega a rígida moral
estóica, nos aparece moralista não intolerante, até conhecedor de quanto são freqüentes
e naturais as lentidões, as demoras, até os passos atrás no caminho da virtude.
Pode-se assim não somente explicar mas justificar as contradições, que a
aversão dos acusadores ou a míope crítica quiseram ver sempre em Sêneca. Que grande filósofo, mas que péssimo homem, gritam a todo instante; e não se vê que
justamente o moralista justificava o homem, assim como o homem procurava
salvação no moralista.

Um exemplo
prático dessa aparente contradição está na "Consolação a Minha Mãe
Hélvia". A ordem exterior é a mesma de todas as obras do gênero: analisar
antes a desventura, que atingiu o autor, e demonstrar que ela não o pode abater
espiritualmente; mostrar em seguida ao atingido os recursos que ele tem em si
ou deve encontrar fora de si para suportar a dor. Mas Sêneca escreve à sua mãe;
e a ternura arrebata-o: demonstra que não está sozinho no exílio, e gostaria de
estar perto de sua mãe; aconselha a própria mãe a suportar a dor, e lembra a
vida familiar com uma saudade que diz claramente quão longe estavam de parecer
convincentes os assuntos escolhidos para consolar. Afinal, o consolo nasce de
um sentimento sublime, que diz em poucas palavras somente isto: "Querida
mãe, nada no mundo me fez esquecer o bem que te quero, mesmo se estou longe de
ti, mesmo se estou aflito, mesmo se não posso mudar a sorte; único conforto é o
bem que nos une hoje e sempre." Essa é a parte humana da obra; a parte
moral está na orgulhosa afirmação de que nenhum golpe externo podia abalar a
firmeza de sua alma, pois os perigos estavam todos e somente dentro de si
mesmo.

As
aparentes contradições desaparecem completamente, quando Sêneca (que prega a
virtude, o sacrifício
do
indivíduo em vantagem dos próprios iguais; que tem grande indulgência e amor
para com aqueles que falharam; que combate todas as paixões que entristecem o
homem) penetra nas trevas do além-túmulo com celestiais esperanças,
extasiando-se no pensamento da verdade eterna, que teria conhecido, da divina e
pura luz de onde teria vindo a alegria para a nova consciência. O homem e o
moralista chegaram ao equilíbrio completo. Ao amigo Lucílio escrevia
("Epist.", 102): "Desvendar-se-ão para ti os arcanos da
natureza, dissipar-se-á essa neblina que agora te circunda: serás ferido por
uma luz claríssima. Imagina como deve ser vívido o fulgurar de tantas estrelas,
que juntas confundem sua luz. Nenhuma sombra perturbará aquela limpidez: de
todos os lados resplandecerá igualmente o céu; noite e dia são somente
acontecimentos dessa nossa baixa atmosfera. Então reconhecerás ter vivido nas
trevas, quando com todo teu ser verás inteira a luz, que agora pelos angustos
meatos dos olhos obscuramente entrevês, e assim mesmo admiras de longe. Que te
parecerá aquela divina luz, quando a vires lá, no céu?" A moral romana
ainda não conhecia um equilíbrio tão perfeito; e esse equilíbrio nascia num
homem que sofrera e lutara, que tirara experiência do pensador e do homem de
Estado, sujeito a todas as exigências e conveniências da política; e que todavia
soubera elevar-se acima da ruína causada por sanguinários tiranos ou por
literatos aduladores. No diálogo "De Providentia" (VI, 3-5) uma
suposta voz de Deus assim admoesta os mortais: Ferte fortiter: hoc est, quo
deum antecedatis; ille extra patientiam malorum est, vos supra patientiam.
Contemnite paupertatem: nemo tam pauper vivit quam natus est, Contemnite
dolorem: aut solvetur aut solvet. Contemnite fortunam: nullum illi telum, quo
feriret ani-mura, dedi. Contemnite mortem: quae vos aut finiit aut transferi (Suportai
com força qualquer coisa: nisso sereis superiores ao próprio Deus; Deus ignora
o sofrimento, Boa podeis vencê-lo. Despregai a pobreza: ninguém viveu tão pobre
como quando nasceu; desprezai a dor: ou acaba ela ou acabareis vós; desprezai a
sorte: não deis a ela arma alguma para ferir as almas; desprezai a morte, fim
ou mudança da existência.) Ainda um passo, e a pregação do verbo de Cristo
iluminará de uma luz divina as almas, livres da dor humana.

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