O LUGAR DE SPINOZA NA HISTÓRIA DA FILOSOFIA, O MODELO INTERPRETATIVO DE JOAQUIM DE CARVALHO

O LUGAR DE SPINOZA NA HISTÓRIA DA FILOSOFIA, O MODELO INTERPRETATIVO DE JOAQUIM DE CARVALHO

José Mauricio de Carvalho**

Danilo Santos Dornas***


RESUMO

Joaquim de Carvalho desenvolveu uma abordagem crítica da História da Filosofia e do seu papel no desenvolvimento da própria filosofia. Além disso, introduziu a discussão de uma História da Filosofia Portuguesa apontando para as singularidades e a existência de filosofias nacionais caracterizadas pela preferência de certos problemas filosóficos, abrindo espaço para a investigação da cultura e do seu papel na criação intelectual. Nossa tarefa neste artigo foi comparar diversas interpretações de Spinoza e mostrar no que o método de Joaquim de Carvalho se distancia dos demais. Indicamos, adicionalmente, que ele inicia o estudo das filosofias nacionais, problema privilegiado pelos principais culturalistas brasileiros contemporâneos.

PALAVRAS-CHAVE: História da Filosofia – Spinozismo – Filosofia Nacional

Considerações Iniciais

A elaboração da História da Filosofia é uma das mais importantes tarefas dos filósofos. Essa história não é um culto do já acabado, mas o entendimento de que o passado, de algum modo, permanece conosco e é a base que temos para construir o futuro. A capacidade de aproveitar o que foi legado pelos antepassados é um aspecto que nos distingue dos animais e tipifica a nossa existência.

A possibilidade de reintepretar o que foi pensado em outros tempos nos permite compreender melhor as grandes trilhas da cultura ocidental. No entanto, essa não é a única vantagem que a tarefa nos permite. A História da Filosofia nos ajuda a assimilar o que os filósofos construíram, fornece uma interpretação sintética dos problemas e sistemas filosóficos que formam grande tradição na cultura ocidental.

A elaboração da História da Filosofia tornou-se um trabalho valorizado depois das considerações de Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) e, em nosso tempo, com o entendimento do caráter histórico da vida humana, a tarefa ganha ainda maior significado. As Histórias da Filosofia elaboradas pelos diferentes filósofos não são despossuídas de um nexo interpretativo. Esse nexo é a forma pela qual o presente dialoga com o passado.

Um dos principais historiadores da filosofia na península ibérica, o português Joaquim de Carvalho (1892-1958), entendeu que devíamos considerar as tradições culturais dos diversos países quando tratássemos das grandes filosofias do ocidente. Não se trata de negar a existência de uma tradição comum, no ocidente, ou de menosprezar o diálogo entre os autores, mas de reconhecer que o eixo básico que a constitui comporta organizações particulares segundo as tradições nacionais. Essa chave interpretativa também usada por José Ortega y Gasset (1883-1955) foi desenvolvida por filósofos brasileiros que ganharam reconhecimento internacional: Miguel Reale (nasc. 1910), Introdução à Filosofia (1989); Antônio Paim (nasc. 1927), História das Idéias filosóficas no Brasil (1997); e Leonardo Prota (nasc. 1930), As filosofias nacionais e a questão da universalidade da filosofia (2000)1. Esses exemplos nos indicam que o problema das filosofias nacionais é uma das questões mais estudadas pela atual geração de filósofos brasileiros.

Como forma de verificar as fecundas possibilidades hermenêuticas que o nexo interpretativo de Joaquim de Carvalho faculta, tomamos um autor bastante estudado pelos principais historiadores da filosofia, Baruch de Spinoza (1632-1677). Inicialmente, destacamos as interpretações de Umberto Padovani (1894-1968), Julián Marías (nasc. 1914), Émile Bréhier (1876-1952), e Johannes Hirschberger, apresentando o que eles destacam do pensamento do sábio de Amsterdã. Depois, apresentamos a interpretação de Joaquim de Carvalho e a comparamos com a dos outros historiadores.

O esquema interpretativo de Joaquim de Carvalho nos permitirá entender não só a linha argumentativa de Spinoza, mas o destino histórico do spinozismo e, indiretamente, do cartesianismo. Tudo indica que o spinozismo mereceu tratamento distinto nas diversas tradições nacionais do ocidente. Ao examinar o lugar da filosofia de Spinoza na historiografia filosófica, nos deparamos com uma das mais criativas interpretações do passado filosófico.

As idéias de Spinoza mereceram estudos em Portugal no século XIX quando se colocou para aquela sociedade o problema da tolerância religiosa e a valorização dos assuntos humanos. A serenidade moral do filósofo também contribuiu para a consolidação da paz social e o seu racionalismo está na base das discussões lusitanas sobre Deus. Joaquim de Carvalho nos mostrou aquilo que estava latente nos historiadores da filosofia, cada tempo e cada povo estabelece um diálogo próprio com os grandes temas e sistemas de filosofia.

1.      A interpretação do pensamento de Spinoza pelos historiadores da filosofia

1.1. Umberto Padovani (1894-1968)

As considerações de Umberto Padovani sobre Spinoza encontradas em sua História da Filosofia destacam aspectos da filosofia spinozista. Trata do desenvolvimento do racionalismo cartesiano, num sentido monista e panteísta e da utilização do paralelismo psicofísico, denominado por Padovani de pampsiquismo, isto é, o intuito de unir a matéria e o espírito. Eis como o explica:

“O problema, pois, das relações entre o espírito e a matéria é resolvido por Spinoza, fazendo da matéria e do espírito dois atributos da única substância divina. Une os dois na mesma substância segundo um paralelismo psicofísico, uma animação universal, uma forma de pampsiquismo” (Padovani, História da Filosofia, 1974, p. 295).

A ênfase nesses dois aspectos decorre de ele privilegiar os temas dos livros III e IV da Ética – demonstrada à maneira dos Geômetras, de Spinoza. Nesses livros, Spinoza examina as paixões humanas como resultantes das modificações da alma. Por isso, Spinoza explica que entendendo as modificações da alma compreende-se os problemas nascidos nas ações humanas.

Essa influência recíproca da alma e do corpo é o que Padovani chama de fenômeno psicofísico ou pampsiquismo. Essa interpretação se justifica para Spinoza, os movimentos do espírito e da matéria coincidem e nelas estão implícitos o ser fundante (psiqué) e o seres causados (pam). Padovani interpreta a doutrina do paralelismo psicofísico como regente natural de todas as coisas, primitivas ou derivadas. Nas palavras do autor, isso se explica da seguinte forma:

“Cada corpo tem uma alma, como cada alma tem um corpo; este corpo constituiria o conteúdo fundamental do conhecimento da alma, a saber: a cada modo de ser e de operar na extensão corresponde um modo de ser e de operar no pensamento. Nenhuma ação é possível entre a alma e o corpo” (idem, p. 297).

Padovani explica que o racionalismo cartesiano inspirou Spinoza a construir um sistema de forma lógica e matemática. Porém, o historiador italiano entende que não se pode penetrar nas teses spinozistas sem recorrer aos conceitos neoplatônicos.

A teologia de Spinoza é panteísta, explica Padovani. Isso significa que existe uma substância única, infinita, eterna, que é Deus; porém, essa substância encontra-se na própria natureza. O homem não é uma substância. Padovani afirma que, para Spinoza, o homem é uma reunião de corpo e espírito e por isso é um fenômeno psicofísico.

Spinoza usa essas idéias antropológicas para solucionar o problema moral de sua época. Por isso, ele trata o mecanicismo das paixões como um mecanicismo físico-matemático. Essa relação entre os mecanicismos corresponde ao uso do racionalismo para rejeitar as ações que prejudicam o convívio social e perseguir as ações que a razão dita ser a melhor forma de conduzir-se na sociedade. Desse modo, o sábio é aquele que se liberta das paixões e alcança racionalmente a felicidade. Padovani entende que, chegando ao conhecimento racional, o sábio vive na eternidade da qual Spinoza tem uma idéia genuína das coisas do mundo.

Trabalhando com tais pressupostos, Padovani entende que Spinoza demonstra que a Igreja e o Estado são meios para a realização temporal de um projeto eterno. Padovani explica que o sucesso dessas instituições depende do temor e da esperança, que, para Spinoza, são paixões irracionais. “Elas servem para a tranqüilidade do sábio e para o treinamento do homem vulgar”(idem, 1974, p. 300).

A filosofia de Spinoza impele os homens a se organizarem socialmente em Estados Nacionais. Contudo, na interpretação de Padovani, o Estado não é o fim último para a vida dos homens. O fim supremo dos homens é conhecer Deus racionalmente.

A religião, assim como a vida em sociedade, deverá se pautar nos ditames da razão. Isso impediria buscar o conhecimento divino através de revelações míticas. A filosofia que, para Spinoza, é a ciência que soluciona o problema da vida, traz ao homem a idéia de um Deus filósofo diverso do sugerido pelas profecias bíblicas. Essa rejeição do Deus profético não significa a exclusão da mensagem bíblica. Ao contrário, Spinoza procurou resgatar o sentido metafísico das mensagens bíblicas, a saber: inserir à submissão a Deus e o amor ao próximo na unificação final de tudo e de todos em Deus.

1.2.  Julián Marías (nasc. 1914)

Para o espanhol Julián Marías, a filosofia de Spinoza é influenciada não só pelo cartesianismo, mas também pelos escolásticos, sobretudo o escotismo e o ockamismo. Além disso também se aproxima do estoicismo e dos filósofos judeus medievais. O pensamento spinozista revela um caráter peculiar da metafísica do século XVII, traduz o amor intelectual a Deus.

As elaborações metafísicas de Spinoza são elementos para a edificação da ética, que é o objeto de sua principal obra filosófica. Para Julían Marías, Spinoza não intenta opor ao homem natural o espírito, porque admite a diferença que existe entre essas duas instâncias. Na verdade, Marías entende que o intento de Spinoza é tratar as diferenças entre essas duas realidades sem estabelecer uma oposição entre ambas, identificando um paralelo entre corpo e extensão:

“E como há uma exata correspondência entre as idéias e as coisas, há um estrito paralelismo entre a alma e o corpo. Tudo o que acontece ao homem, e concretamente as suas paixões, é natural e segue o curso necessário da natureza” (Marías, História da Filosofia, s.d., p. 235).

Com essa explicação, Julían Marías considera correto afirmar que a filosofia de Spinoza é panteísta, porque todas as suas instâncias, corpóreas e espirituais, existem na natureza. O paralelismo só ocorre no plano natural.

Outro aspecto destacado pelo historiador espanhol foi que liberdade e felicidade ajudam a conhecer a substância e as coisas que a circunda, tratando-as como atributos e modos. Através desse procedimento, pode-se mencionar um amor intelectual a Deus. Esse processo consolida o conceito de filosofia como conhecimento adquirido da substância por vias racionais.

Na interpretação de Marías, o que constitui o ser das coisas é o esforço. Esforço entendido como empenho. Então, ser para Spinoza significa querer ser sempre. Em outras palavras, significa ter apetite de eternidade ou, pelo menos, de perduração ou continuidade.

1.3.  Émile Bréhier (1876-1952)

O historiador da filosofia de origem francesa, Émile Bréhier, explica que Spinoza conheceu a Cabala através de pensadores judeus, sobretudo Chasdaï Crescas, citado em uma de suas Cartas. Crescas ensina que a perfeição de Deus consiste não no conhecimento, mas no amor, e que a perfeição da criatura depende da participação nesse amor. Para Bréhier, essa doutrina se explicita na Ética.

Quando Spinoza se refere à coincidência entre Deus e as coisas, está sendo inspirado por Maimônides ou algum outro comentarista do Zohar, porque os antigos hebreus entendiam que Deus, seu pensamento e o objeto eram idênticos. Toda essa explicação de Spinoza é influenciada pelo plotinismo, segundo o qual a identidade do pensamento, do sujeito pensante e do objeto pensado, são unificados em um único plano.

As influências cristãs de Spinoza vieram de um Cristianismo Prático. Esse cristianismo deixa campo livre às especulações religiosas que se livram da teologia dogmática. Para Bréhier, o historiador Felipe de Limbourg, em seu De viritate religions christianae (1687) diferencia a salvação eterna dos cristãos, dos judeus e a dos denominados ateus.

Bréhier explica que Limbourg confunde naturalismo e as especulações sobre a salvação eterna. Essa forma de pensar é também a de Spinoza. Este, como outros pensadores de sua época, afirma a unidade radical dos três problemas – filosófico, teológico e político:

“Sua filosofia, na Ética, contém uma teoria da sociedade e termina numa teoria da salvação pelo conhecimento filosófico. Seu Tratado Teológico-Político indica os caminhos da salvação reservados aos homens que não vão além da obediência às prescrições das religiões positivas. O Tratado Político, finalmente, descreve uma organização do Estado que deixa a cada um a liberdade de pensar” (Bréhier, História da Filosofia, 1977, p. 146).

Bréhier considera as explicações de Spinoza sobre Deus como exposição positiva da noção de substância. Ele explica que é positiva porque se trata de uma substância diferente da aristotélica, que significa um fundo oculto das coisas. A substância spinozista é o que une o corpo, que é limitado e a alma, que é a inteligibilidade. A positividade, para Brehiér, negada por René Descartes, é o que tipifica a meditação de Spinoza:

“Descartes nega duas vezes a positividade da idéia de substância, ao crer, de começo, que a distinção real entre dois atributos, como a extensão e o pensamento, de que cada um é concebido por si, nos obriga a aceitar duas substâncias distintas, a alma e o corpo: limitar uma substância a um atributo é limitar a realidade. Deus, ser absolutamente infinito, terá, portanto, uma infinidade de atributos, cada um dos quais exprime sua finitude” (idem, p.153).

Para Bréhier, o conceito de alma de Spinoza se explicita na fórmula: “a alma é a idéia do corpo. Mas a idéia, em Spinoza, não é uma imagem muda pintada num quadro” (idem, p.157). A idéia é um modo do atributo divino que afirma a existência do objeto e não anula sua inteligibilidade. Isso é positividade, da idéia de substância, porque não existe contraposição nem confronto entre matéria e corpo, não existe nenhuma negação.

O historiador francês entendeu que Spinoza promove uma religião positiva cujos dogmas e crença estariam separados. Daí nasce uma religião que prescreve o amor e a piedade e exclui, no plano temporal, a inveja, a cólera e todas as paixões rejeitadas pela razão. Para Bréhier, o Tratado Teológico-Político vai ainda mais longe, pois declara a salvação possível pela simples atitude prática da obediência. Em suma, o Tratado Teológico-Político consiste em separar o que há de positivo na experiência, em crer no amor intelectual a Deus. Por causa disso, Bréhier entende que o spinozismo é, antes de tudo, experiência religiosa.

1.4. Johannes Hirschberger

Para Johannes Hirschberger, Spinoza partiu da experiência do mundo para fundar sua metafísica, como fizeram os empiristas ingleses. No entanto, esclarece que Spinoza entende a experiência de modo singular. Trata-se de uma filosofia da identidade. Ele assim a expõe:

“Spinoza interpreta o existir em como pura identidade o que não se dá na filosofia cristã. Para Spinoza todas as coisas estão em Deus e emanam dele com a mesma necessidade” (Hirschberger, História da Filosofia, 1960, p. 138).

Desse modo, desaparece a antiga dualidade Deus-Mundo e surge um novo panteísmo. Porém, Hirschberger explica que esse panteísmo aos olhos dos cristãos é uma forma de ateísmo. A identificação de Deus e o mundo resultou da união entre o corpo e a alma, a matéria e o espírito. A solução do problema dessa forma decorre do cartesianismo, Spinoza relaciona o corpo e a alma num plano divino; porém, considerando um paralelismo dos atributos do corpo, que são as ações humanas, e os atributos da alma, que são as paixões.

Hirschberger diz que Spinoza não deveria comparar o homem a triângulos e nem tentar justificar a Ética à moda dos geômetras. Para ele, Spinoza ao escrever de maneira geométrica não estaria fazendo uma Ética, mas uma Física das paixões humanas. Essa pretensão de Spinoza se converte em contradição. Para Hirschberger, essa contradição não se manifesta no método, surge no eixo metafísico do sistema. Para indicar tal contradição, Hirschberger indaga:

“Pois como poderíamos penetrar, para corrigir, no curso das coisas, se tudo acontece estritamente como deve acontecer? E se tudo emana da substância universal com necessidade geométrica, como pode haver algo que o homem deva corrigir?” (idem, p. 145).

Hirschberger afirma que Spinoza não esclarece bem de que modo o que é aceito pela razão é o verdadeiro. Para ele, Spinoza ao tentar explicar tal posição se deparou com dificuldades e formulou respostas obscuras. O historiador alemão acredita que Spinoza teve dificuldades em explicar a existência do mal e da doença através de sua filosofia e que esse é um problema das exposições panteístas.

Nas teses políticas de Spinoza, a interdição ética também não é considerada como devia. Eis o que afirma:

“Na sua doutrina sobre o Estado, o momento ético recua de novo, e o campo é dominado pelas idéias do desejo e do poder” (idem, p. 146).

Essas idéias de desejo e poder são influências de Nicolau Maquiavel (1458-1527) e Thomas Hobbes (1588-1674). Para Heischberger, a influência de Maquiavel já se comprova nas primeiras linhas do Tratado Político, onde Spinoza afirma que não intenta trabalhar o homem imaginário, mas como ele se apresenta no convívio social. E de Hobbes, ele tira a doutrina do direito natural e do contratualismo político. Desse modo, Hischberger encontra motivos para concluir que, em Spinoza, direito natural e poder coincidem. E, então, já não faz nenhuma diferença entre desejos nascidos da razão e os oriundos de outras fontes. O que prevalece é o individualismo em sua forma mais estridente. Hischberger considera o individualismo de Spinoza mais amplo que o de Hobbes.

Hischberger conclui que as explicações de Spinoza são dadas com tanta simplicidade e segurança que consideram explicáveis pelo método geométrico as variadas formas do mundo. Essa forma de ver as coisas não teria mais sentido depois do criticismo kantiano e das ontologias regionais propostos pela fenomenologia.

2.      Joaquim de Carvalho, a interpretação de Spinoza à luz das tradições culturais

As interpretações interiores da obra de Spinoza são muito formais. Elas não tiram todas as possibilidades que o entendimento histórico-cultural nos permite. É esse o caminho aberto por Joaquim de Carvalho, isto é, a interpretação de Spinoza se amplia e renova se considerarmos suas idéias em relação às circunstâncias concretas em que foram pensadas. As tradições culturais também ajudam a esclarecer o legado de Spinoza. Vejamos o que pretende Joaquim de Carvalho e como ele interpreta a filosofia de Spinoza.

Carvalho investigou, do filósofo holandês, suas origens, os problemas da época na qual viveu, as teses fundamentais de sua filosofia e identificou aspectos essenciais das teses de Spinoza. Destacou a concepção metafísica e a defesa de liberdade de consciência que Spinoza promulgou ao longo de suas obras principais. Ele explicou que essa ênfase será diversa segundo a ótica das tradições nacionais.

O spinozismo, para Carvalho, significou uma filosofia da salvação que, em tempos de instabilidade política e participação dos teólogos nas decisões do Estado, serviu para aliviar a vida social e promover a liberdade de pensar. Entretanto, a filosofia de Spinoza foi enfrentada por teólogos e pelo próprio vulgo da época como um tormento para a paz.

“Me deparam os abismos doutrinais, que alguns críticos encontram, nem descubro em Spinoza o gênio diabólico que ataviasse de serafim para ludibriar almas cândidas e espíritos de boa-fé” (Carvalho, Oróbio de Castro e o espinosismo, p. 55).

A obra que primeiro gerou esse conflito foi o Tratado Teológico-Político publicada anonimamente em 1670 nas oficinas de São Conrado, em Amsterdã. Ela foi escrita após a condenação de um amigo de Spinoza, o médico Adriaan Koobagh, que foi ao tribunal de Amsterdã acusado de ofender a teologia oficial. O médico foi condenado a 10 anos de reclusão, mas morreu 15 meses após sua prisão. Carvalho admite que a condenação de Koobagh foi um aviso a Spinoza para que ele não prosseguisse com suas reflexões sobre os dogmas religiosos.

Em carta ao Secretário da Sociedade de Londres, Spinoza expõe que os objetivos do Tratado são: romper os obstáculos postos pelos teólogos para impedir as pessoas de filosofarem livremente; esclarecer ao vulgo que ele não era ateu; desejar e defender a liberdade de pensamento e de palavra, pois sentia-se ameaçado pelo excesso de autoridade dos poderosos da Holanda. Portanto, o Tratado enfrenta questões cruciais em seu tempo, só quando se tem isso em vista ele pode ser bem entendido. Nas palavras de Carvalho, o Tratado toca:

“Em coisas para alguns vantajosos, para muitos sacrossantos, para todos respeitáveis. O seu autor escrevera-o com mão delicada e ânimo puro, mas entregara-se a pensamentos que a credulidade dos religionários e o saber dos teólogos, a fé dos humildes e o orgulho dos zelotes, consideravam atentado sacrílega” (idem, p. 58).

O conteúdo do Tratado é fruto de detida reflexão. O filósofo interpreta as Sagradas Escrituras demonstrando que elas nascem da imaginação dos profetas com intuito de controlar o povo hebreu. E completa explicando que a liberdade de pensar é a via eficaz para a paz comum. Segundo Carvalho, Spinoza tenta convencer os teólogos e sacerdotes a se retirarem do poder temporal. Isso porque, nas Escrituras, não existe nenhuma passagem que autorize tal presença. Spinoza se deixa conduzir pela razão e critica certos textos bíblicos, sobretudo o Pentateuco.

Para Carvalho, Spinoza é autor de um manifesto de paz, mas as interpretações que se seguem a esse manifesto o tornam uma declaração de guerra:

“Obra de paz, seria acolhida ao som de guerra; políticos reacionários, teólogos, pastores e predicantes, por profundas que fossem as trincheiras doutrinais donde guerreavam, todos se consertariam no combate ao adversário comum, que, compreendo todas as divergências, não dava razão nenhuma” (idem, p. 56).

Carvalho entende que a polêmica gerada em torno do Tratado foi causada pela união entre duas disciplinas diversas: a Teologia e a Política. Spinoza considera essas disciplinas ramificações de um único problema, o da liberdade de pensamento. O método utilizado por Spinoza para escrever sua obra, segundo Carvalho, possui duas espécies de investigação: a primeira é de estrutura histórico-filológica acerca da profecia, dos profetas, da vocação do povo eleito, da lei divina, da instituição do culto e dos milagres; a segunda, exegética, que diz respeito à autoria, composição, sentido autêntico das exposições contidas na Bíblia. Com todo esse rigor, Spinoza obteve resultados inovadores. Ele concluiu que o Deus expresso na Bíblia possui feições humanas, bem como características físicas e paixões humanas. Sendo assim, não poderia ser a sua verdadeira face, porque o Deus verdadeiro deveria ser ao contrário deste. Entretanto, Carvalho esclarece o humanismo subjacente na obra:

“Sei que sou homem, e posso ter errado; empreguei, porém, toda a diligência em evitar o erro e, sobretudo, em não escrever alguma coisa que brigasse com as leis do país, a liberdade e os bons costumes” (Spinoza, Tratado Teológico-Político, p. 374).

Ao Tratado Teológico-Político veio somar a Ética – demonstrada á maneira dos geômetras. Para Carvalho, é a principal obra do filósofo porque apresenta os conceitos cruciais de seu sistema filosófico. A Ética foi escrita em Haia, no momento solitário de Spinoza, após sua excomunhão da comunidade judaica de Amsterdã. A exposição de seu texto obedece uma ordem racional por hipóteses, teses, explicações e definições. Esse emprego da razão teve origem no método cartesiano, que também foi utilizado por outros pensadores modernos. Spinoza encontrou no racionalismo a melhor via para compreensão do mundo e a norma exclusiva de uma ação. Para Carvalho, o racionalismo define-se pelo pressuposto que tudo o que existe, existe e ocorre necessariamente como ordenação imanente às próprias idéias, seres e eventos.

O método racional consiste em tornar clara e evidente a explicação do mundo. Trata-se da busca de uma certificação epistemológica. Para isso, estabelecem-se fundamentos lógicos e científicos que permitam comprovar a explicação dada. Spinoza recorreu ao método geométrico, com o qual tornou clara e evidente suas explicações sobre o universo. Para Carvalho, Spinoza só aceita por verdadeiro aquilo que sua compreensão pode assimilar racionalmente.

Carvalho ainda explica que a forma geométrica empregada por Spinoza para escrever a Ética significa a primeira aplicação do método euclidiano a uma concepção sistemática da realidade do mundo, da existência humana e do fundamento da vida espiritual. Essa ordem substitui explicações sobre o universo que partam dos seres causados, e não da verdadeira substância fundante.

“O filósofo sistematizou a sua concepção de mundo e da vida, parte de uma noção de Deus, e obedece ao ritmo interno de um como que movimento de processão de Deus para a alma humana em Deus, por forma que uma especulação metafísica se remata em reintegração, ou talvez mais propriamente, em redenção moral” (Carvalho, Introdução à Ética de Spinoza, p. 228).

Na Filosofia, o conceito substância é empregado por vários pensadores com diversos significados. Na Escolástica, por exemplo, substância designa o que permanece nas coisas através das sucessivas alterações delas, sendo a essência um suporte do ser. Para Spinoza, substância possui sentido diverso. Ela é caracterizada por ser infinita, porque nega a duração temporal, constituindo a essência das coisas; única, porque não podem existir duas substâncias sem se contradizerem, porque se assim fosse elas se anulariam; necessária, porque é própria da Natureza que exista; e iniciada, porque é causa de si mesma, impossibilitando ser criada por outra coisa.

Carvalho chama a atenção para o fato de o termo causa de si aparecer primeiro que o termo substância. Isso acontece por causa de a substância aparecer antes de mais nada causada ou originada. Então, entende-se que Spinoza compreendia o início como sendo a Substância, ou Deus, que possui a causa em si mesmo e é a causa de todas as coisas, conforme se observa no texto que se segue:

"Ser absoluto, infinito é a substância constituída por infinitos atributos dos quais procedem todas as determinações concretas das coisas e eventos, a razão de ser e a unidade de tudo que existe, a única realidade ontologicamente absoluta, na qual se identificam a essência, a existência e a atividade criadora" (idem, p. 231).

Todos os fenômenos e eventos do universo são necessários. E essa necessidade é própria da substância. Carvalho compreende essa idéia de Spinoza como um paralelo com as concepções anteriores em que o dualismo predominava como tentativas de separar o conceito da matéria. Em Spinoza, o conceito e a matéria coincidem, o que sugere uma interpretação monista da realidade, na qual a identidade de Deus e da Natureza implicam em uma unidade ontológica.

"Implica a identidade de Deus e da Natureza enquanto esta é entendida como unidade ontológica e razão de ser lógica de tudo o que existe" (idem, p. 234).

Spinoza, ao admitir a existência de uma única substância e ao identificá-la com Deus e inseri-la na Natureza, aplica sua ontologia a uma concepção panteísta do Universo. O panteísmo de Spinoza consiste em apreender a existência de um ser metafísico e em dar-se nele o parecer físico do mundo natural. Nesse sentido, para Spinoza, Deus aparece como Natureza Naturante, que significa a equivalência entre a Substância, Deus e a Natureza.

"Deus é a condição da pensabilidade e da explicabilidade ontológica e lógica do Universo, e não o ser real infundido nas coisas e subjacente ao acontecer físico" (idem, p. 296).

Carvalho observa que essa união sugerida por Spinoza entre a Substância, Deus e a Natureza seria uma tentativa de explicar a relação existente entre os pensamentos metafísicos e a vida prática. Então, Carvalho identifica duas realidades presentes: uma substancialista, que é una, eterna, infinita e imutável; e outra modal, que é a realidade que está, diversa, temporal, finita e mutável. Essa distinção seria a seqüência necessária da produtividade divina. Portanto, Carvalho observa que essa é uma metafísica do concreto, cujos seres gozam da existência, mas não são a existência.

A gnosiologia de Spinoza sugere que o pensamento e a extensão são dois atributos divinos capazes de serem compreendidos pelo intelecto humano. Por atributos, entende o que o intelecto identifica na substância; é onde se estabelece a sua essência. Essência, aqui, significa a parte de cada ser como determinante de algo que é único e que determina uma aproximação à Substância. Então, é pelos atributos que o poder da substância se manifesta por um sentido ativo, porque é causa da Natureza e nela está contida. O pensamento é o aspecto ou a expressão da maneira como a mente considera substância. Desse modo, é a atividade de abstrair pelo intelecto as coisas que se mostram, porém assumindo que todas essas coisas possuem uma substância fundante, que é divina. Já a extensão é tudo aquilo que tem como modo o corpo. A extensão são as coisas do mundo que se identificam com a existência e obedecem os eventos da Natureza. A união entre o pensamento e a extensão acontece quando Spinoza admite que ambos atributos são divinos. Carvalho interpreta essa união entre o pensamento e a extensão como um processo cognitivo apreendido pela concepção monista do Universo:

"A substância sendo em si, por si e de infinitos atributos bastava-se a si mesma e explica satisfatoriamente a coexistência e o paralelismo do pensamento e a extensão, considerados como atributos de uma só substância e não como substâncias independentes" (idem, p. 263).

Isso significa que, para Carvalho, Spinoza procurou explicar o mundo através do conhecimento da causa de tudo e, depois, empenhou-se em explicar o mundo físico. No entanto, não separou os atributos em realidades distintas, porque se o fizesse admitiria duas substâncias.

Dessa concepção do mundo de Spinoza decorrem duas conseqüências, observa Joaquim de Carvalho. A primeira é o Racionalismo, que utiliza a Razão para declarar uma explicação certa e indubitável do real. A segunda é o Eticismo, que parte da certeza racional e determina como o homem deve proceder no Universo, de modo que aja conhecendo as causas das coisas e assim age livremente. Para Carvalho, consiste numa passagem da racionalidade para a metafísica e justifica a ação do homem objetivando a busca da felicidade. A felicidade para Spinoza seria a perseguição ao bem-estar e à liberdade de consciência.

Todo o esforço da Ética se dirige para romper a relação tradicional entre a liberdade e a vontade. A liberdade é definida por Spinoza como decorrente da essência do homem. Então, o homem se define como ente livre. Spinoza dizia ser a liberdade como agir da consciência na medida em que se conhece a causa e o efeito das coisas da Natureza. E, por isso, esforça-se em obter uma explicação racional do Universo que justifique a ação livre. Seja na política, seja na teologia, o homem deve sentir-se livre por causa de sua natureza. De modo diverso, a vontade nasce das paixões. As paixões resultam das idéias inadequadas e confusas que possuímos da Natureza. Sendo assim, o homem se guia pela vontade e não conhece a causa e os conceitos das coisas, não age livremente.

Ao reconhecer tal procedimento, Spinoza revela uma idéia clara e distinta do Universo e situa-se na trilha do cartesianismo, mas dando-lhe conseqüências novas.

Joaquim de Carvalho examina cuidadosamente o legado de Spinoza. Compreendê-lo significa compreender o que o filósofo deixou de mais inovador. Ele também indica que, no século XVIII, os Países Baixos foram considerados asilos para aqueles que se refugiavam das perseguições religiosas. Joaquim de Carvalho entende que essa proteção que os Países Baixos mantinham vinha da exaltação da liberdade de consciência e de tolerância religiosa:

"Todas as religiões tem neste país inteira liberdade de celebrar os seus mistérios e servir Deus como lhes agrada" (Carvalho, Oróbio de Castro e o Espinosismo, p. 35).

A Holanda era uma República onde os cidadãos gozavam inteira liberdade. Spinoza compreendia que a liberdade se conquista com esforço e sua vigência é precária; uma vez perdida, a reconquista é mais difícil por ser mais lenta. Então, Spinoza dedicou-se a tratar a questão da experiência de modo a preservar a liberdade.

Os cidadãos da Holanda prezavam o desprendimento material e a serenidade moral. Diversa de outros países europeus que assumiram a tradição romana, na qual o favor substitui o direito, a licença substitui a liberdade, e a paz civil se firma à custa de humilhações, a Holanda do século XVIII foi solo fértil de inquietações, dissidências e controvérsias religiosas. Essa diversidade de religiões provocou a ilusão de uma religião holandesa. Carvalho lembra que:

"Toda a gente, letrados, burgueses e mesteirais, no íntimo sempre burgueses, discutia questões teológicas; cada qual tinha opinião acerca da predestinação e da graça, ou interpretava a seu modo as Escrituras e a Revelação" (idem, p. 35).

Carvalho conta que, após a morte do filósofo em 1677, a bibliografia anti-spinozista cresceu, atingindo assombroso vulto. Um dos críticos mais duros de Spinoza foi Oróbio de Castro (1620-1687), natural de Portugal, que estudou na Espanha e na França e viveu na Holanda. Oróbio assumiu o judaísmo na Holanda, mudando o nome para Isaac. Essa conversão o transformou em adversário cruel da religião cristã que antes professara.

Carvalho conta que Oróbio foi reeducado nas sinagogas aliando-se a uma visão ortodoxa do judaísmo e combatendo diversas interpretações religiosas que surgiam. Para atingir o spinozismo, Oróbio refere-se a um divulgador das idéias do filósofo, uma vez que estava interditado de lê-lo. Passados sete anos da morte de Spinoza, Oróbio publicou Certamen Philosophicum, dirigindo-o ao spinozista Joham Brandenburgo (?-1691).

Brandenburgo era membro da burguesia holandesa, para quem os problemas teológicos e filosóficos assumiram importância vital. Carvalho destaca que a obra de Spinoza despertou Brandenburgo e o incitou a refletir sobre o panteísmo. Carvalho diz que:

"Opera-se no espírito de Brandenburgo a subversão das antigas idéias metafísicas; ao dualismo transcendente e irredutível de Deus e da Natureza sucedia agora a concepção monista da existência absolutamente necessária de um ser Deus sive natura imanente e causa de todas as coisas, agindo por necessidade intrínseca e inevitável" (idem, p. 97).

Entretanto, suas idéias afloraram acerca das metafísicas antigas: o dualismo e a irredução de Deus e da Natureza e uma concepção monista da existência necessária de um ser permanente e causa de tudo, agindo por necessidade. Portanto, Carvalho observa que Brandenburgo não era ateu, embora seus intérpretes o consideram assim.

Oróbio, ao dirigir-se a Brandenburgo, tinha o objetivo de impor na mente do spinozista a conciliação entre a Fé e a Razão. A obra de Oróbio, Certamen Philosophicum, tratava essa questão e significou um relato sobre os rumos do spinozismo como construtor de uma teologia polêmica.

Os spinozistas intentavam separar a Fé e a Razão para justificar a liberdade de cada cidadão. O spinozismo é:

"Estruturalmente uma maneira de conceber a vida e de fruir a sensação de eternidade pela inefável identificação com Deus" (idem, p. 103).

3.      Balanço das interpretações

O exame da interpretação de Padovani mostra que ele considera essencial o método que Spinoza utiliza para pensar. Esse método fornece certeza epistemológica para explicar as coisas existentes no mundo. Outro ponto destacado por Padovani é a solução ética dada por Spinoza para os problemas do convívio social.

Padovani e Carvalho situam Spinoza entre os herdeiros diretos do racionalismo cartesiano, destacando que as substâncias de Descartes constituíam dois atributos de uma mesma substância divina. No entanto, as consequências dessa posição metafísica foram interpretadas de modo diverso.

Padovani entende que Spinoza trata a Ética como instrumento de controle das ações irracionais ou paixões. O resultado é a separação do homem em estado natural e do que vive na sociedade civil. O homem natural não é regido por leis e não é moral, isto é, capaz de viver em sociedade. No estado natural, disputas impedem a socialização. Em contraposição, o homem que vive nas sociedades civis é capaz de bom convívio com seus semelhantes e esse relacionamento é a razão do bom desempenho do Estado. Padovani entende que Spinoza desejou demonstrar que a racionalidade é a melhor prevenção para as ações irracionais encontradas na vida diária. De modo diverso, Carvalho valoriza a relação entre a liberdade e a vontade. Para ele, a liberdade spinozista nasce da essência do homem. Então, o homem é um ente essencialmente livre. Carvalho completa que a liberdade para Spinoza é o agir da consciência na medida em que se conhece a causa e o efeito das coisas naturais. Assim, buscar uma explicação para as coisas racionalmente é a ação de uma consciência livre. Sua interpretação destaca que o homem se guia pela vontade e quando não conhece a causa e os conceitos das coisas não pode agir livremente.

Para Carvalho, o significado da meditação de Spinoza somente pode ser bem auferido se tivermos em conta que ele procura resolver os problemas da comunidade judaica portuguesa. Esse fato se comprova na leitura das suas obras, pois suas idéias retratam os problemas efetivamente vividos pela comunidade judaica.

Tanto para Marías quanto para Carvalho, o intento de Spinoza é chegar ao conhecimento de Deus por vias racionais e justificar a liberdade dos homens. Entretanto, para Marías, esse entendimento significa que alcançar a liberdade é viver a plenitude. Spinoza buscou se livrar dos males que o acompanharam neste mundo e, por isso, desejou conhecer a origem das coisas (substância), os atributos e os modos dessa substância pela racionalidade, que o transportaram para fora do mundo. Carvalho interpreta de modo diverso o motivo que o levou a edificar o seu plano metafísico. Para ele, a busca da paz serviu para solucionar os problemas sociais nas sociedades com pluralidade de credos. Esses problemas sociais seriam solucionados se os homens pudessem interpretar racionalmente a Bíblia Sagrada. Essa conclusão somente é possível se atentarmos para as circunstâncias que envolveram sua meditação e os castigos a que a livre interpretação levava em Portugal e na comunidade judaica.

Para Bréhier, a filosofia de Spinoza não tem outro significado senão estabelecer uma religião nos limites da razão. Isto é, o esforço de Spinoza só pode ser entendido como uma proposta religiosa. Essa religião racional é a forma que Spinoza encontrou para unir as coisas do mundo com as do alto. Bréhier entende essa religião, inaugurada pelo filósofo, como uma inovação no modo de tratar os assuntos teológicos, pois ela encontra um Deus na natureza e não num plano superior. É por isso que prescinde, em último caso, da tradição e da revelação. A compreensão de Carvalho sobre esse ponto é diferente. Para Carvalho, Spinoza busca um Deus intelectual que não se esgote nas interpretações das inteligências limitadas. O historiador português compreende que defender a liberdade de expressão foi um dos principais objetivos de Spinoza e, por isso, ele não nutre o desejo de fundar uma nova religião. No entanto esse aspecto só fica claro se pensarmos a filosofia de Spinoza sob a ótica das tradições nacionais.

Hirschberger constrói uma crítica ao dogmatismo, que seria a marca da filosofia de Spinoza. O dogmatismo racional decorre do entendimento que somente pela razão pura pode-se chegar à verdade. O historiador alemão, em virtude dessa interpretação, identifica várias contradições na filosofia de Spinoza, conforme tivemos a oportunidade de mencionar2. Ele conclui que a filosofia de Spinoza está em oposição direta ao que foi proclamado por Immanuel Kant (1724-1804) na Crítica da Razão Pura. Depois do criticismo parece a Hirschberger que a filosofia de Spinoza não responderia mais aos problemas filosóficos. Para Joaquim de Carvalho, a racionalidade do spinozismo não pode ser vista senão como exaltação da liberdade, já que os homens em sua época eram impedidos de pensar livremente; logo, Spinoza não foge do propósito moderno que iria desembocar no iluminismo e que mereceu páginas notáveis de Kant. Esse aspecto somente se clareia se temos em vista a perseguição que os judeus sofriam em Portugal, problema que deseja solucionar com sua meditação. Isso significa que a hermenêutica de um sistema não pode perder de vista a circunstância histórico-cultural, que foi a novidade que Joaquim de Carvalho propôs com seu método.

Considerações finais

O método desenvolvido por Joaquim de Carvalho aplica a fenomenologia à história das idéias, preserva o caráter histórico dos filósofos seguidos por Hegel, assume as retificações de Wilhelm Dilthey (1833-1911) ao hegelianismo e acrescenta o propósito de situar os filósofos nas sociedades concretas onde viveram. Ele chegou a esse último aspecto lembrando que o sentido da história se encontra nos fatos históricos e que estes pressupõem relações humanas concretas em sociedade.

O resultado desse procedimento foi a criação de uma forma singular de fazer a História da Filosofia, situando a meditação dos autores no seio das tradições culturais. O estudo das teses filosóficas, quando está desconectado da vida concreta dos povos, perde o sentido e freqüentemente leva a interpretações empobrecidas. Quando comparamos as interpretações tradicionais de Spinoza com a elaborada por Joaquim de Carvalho, podemos notar diferenças cruciais que valorizam e esclarecem o seu método. O estudo dos historiadores da filosofia parece comprovar a hipótese de Joaquim de Carvalho para quem devíamos falar de tradições nacionais na história da filosofia.

As diferentes interpretações dadas ao spinozismo nos parecem influenciadas por essas tradições. Assim, para Hirschberger, o spinozismo não tinha mais qualquer significado depois de Kant, Joaquim de Carvalho, ao contrário, mostra que as idéias de Spinoza foram retomadas em Portugal no século XIX. Bréhier menciona e valoriza de Spinoza o racionalismo, justo o que o vincula à tradição cartesiana e marca a filosofia francesa, enquanto Joaquim de Carvalho privilegia o racionalismo enquanto instrumento de formação da chamada religião natural. Marías julga que a busca da verdade que encontramos em Spinoza é uma tentativa de resposta aos problemas da sociedade em que vivia e que seu esforço, apesar de localizado, não se afasta do empenho pessoal de apreensão da verdade que todos os filósofos fazem em suas próprias circunstâncias. Trata-se de influência de José Ortega y Gasset. Carvalho valoriza as circunstâncias históricas pela aplicação do método fenomenológico de Edmund Husserl (1859-1938).

As diferentes filosofias deixam-se entender através do diálogo que estabeleceram com seu tempo. É no seu horizonte de inteligibilidade e de cultura que os filósofos se revelam. O estudo de Spinoza, levado adiante por Joaquim de Carvalho, demonstrava as possibilidades do seu método. Para além das interpretações tradicionais, o historiador português mostra que é possível aprofundar o influxo do cartesianismo nas teses de Spinoza se o meditarmos no seio da tradição nacional ou do que denomina de filosofia portuguesa. Carvalho entende que a filosofia de Spinoza não se desprende do modo de Spinoza estar no mundo e de dialogar com algo que nele já encontrou e que se lhe afigura um desafio. É dessa forma que descobre o realce à liberdade subjacente ao seu racionalismo, que identifica o seu papel de precursor do iluminismo o que torna profeta da tolerância social e política. A força das tradições nacionais também pode ser observada aqui. Enquanto para os ingleses a questão da tolerância social e política é obra de John Locke (1632-1704), Carvalho dá maior destaque a Spinoza. De Locke menciona as meditações sobre Deus poucas abordadas em outras partes da Europa. Esses aspectos do pensamento de Spinoza tiveram influência no desenvolvimento da filosofia portuguesa porquanto surpreendiam as dificuldades específicas daquele povo.

O método de Joaquim de Carvalho acabou valorizando as tradições nacionais, embora fosse empregado na elaboração da filosofia portuguesa. Mesmo sem aderir ao neokantismo ou ao culturalismo, Joaquim de Carvalho chega às mesmas conclusões dos representantes dessas correntes. Como filosofias nacionais é um dos problemas mais estudados pela atual geração de culturalistas brasileiros, não podemos deixar de lado a contribuição de Joaquim de Carvalho para o aprofundamento dessa questão.

Notas

1.       Para o entendimento da contribuição de Miguel Reale, Antônio Paim e Leonardo Prota ao problema das filosofias nacionais, leia o último item do capítulo 3 de Contribuição contemporânea à história da filosofia brasileira, 3. ed. EDUEL.

2.       Cf. o item 1.4.

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*Artigo que serviu de base para o relatório final entregue à Divisão de Ensino, Pesquisa e Pós-Graduação da FUNREI como resultado do PIBIC/CNPq, anos 2000/2001.

** Professor Titular do Departamento das Filosofias e Métodos – UFSJ.

***Graduado em Filosofia. Pós-Graduando em Filosofia Contemporânea – Ética.

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