UM MAU CONSELHEIRO – busca da riqueza nos matezais em Iguatemi

UM MAU CONSELHEIRO

A vida bruta dos ervais, com suas ilusões e desenganos, exercera sempre em si uma força estranha. Onde se erguia uma ranchada, êle aí estava. Guapo, arrojado, machado em punho. Conheci-o um dia num trabalhado na Empresa Mate Laranjeira, em pleno sertão. Chamava-se Villalba, Juan Agustin Villalba. Paraguaio de nascença. Natural de Capilla Horqueta.

Deitado numa tarimba, no fundo de um rancho sem luz e sem higiene, mãos cruzadas sobre o peito, ardia em febre. Perguntei-Íhe o que desejava.

Respondeu-me a custo, arfando o peito ossudo:

— Um poquito de quinino, patrónsito…

E um tremor forte percorreu-lhe a espinha.

Saí. Muni-me de um trado, e embrenhei-me na mata. Quando o último mineiro regressava, com seu raído, pelo pique já serenado, eu voltava também com algumas raízes e uma garrafa de vinho de jatobá.

Era noitinha e os macucos piavam aqui e ali. Preparei um chá terrivelmente amargo, e obriguei-o a beber, animando-o com o meu pobre espanhol:

— Tiene que beber, Don Villalba, y mañana usted estará fuerte… guapo otra vez.

Êle ingeriu a longos tragos o bálsamo milagroso, produto clandestino do meu laboratório de curandeiro bem intencionado. No outro dia, muito tarde, despertei. Já as valentes e pacienciosas arrias haviam voltado do Porto. Chuviscava. Uma chuvinha fina, persistente. Atirei um pitã às costas e saí.

Empurrei de leve a porta de couro e entrei:

— Que tal, Don Villalba?

A resposta veio lá do fundo, confiante e agradecida:

— Muy bien, mi amigo.. . muy bien.

E contou-me que, com o suador, fora obrigado a trocar durante a noite, cinco camisas. Essa já se foi, pensei com os meus botões! De fato, uma semana após, êle reiniciava o sapeco, como exímio barbaquazeiro que era. Nunca mais nos separamos. Naquela figura de homem grosseiro e rude, tive daí por diante um amigo leal e sincero. Lembro-me de que, de uma feita, uma mula troncha pes-pegou-me de surpresa um tremendo coice na perna. Villalba, numa das suas periódicas viagens ao Porto, castigou-a tanto e tão impiedosamente, que a deixou inutilizada por um mês. Vingança de arrieiro!

Uma tarde, por ser quaresma, não havia trabalho. A peonada, alegre, chasqueava. Dois violões, dedilhados por mãos hábeis, iam executando provocantes melodias de música guarani. De quando em quando, alguns disparos de revólver, seguidos de fortes gritos de entusiasmo, cortavam o espaço, indo morrer na mata, num eco longínquo. Só, Villalba, num canto, estava calado. Cabisbaixo, riscava com o dedão do pé o chão esturricado.

— Triste, Don Villalba? perguntei-lhe. E êle dando de ombros, respondeu-me:

— Cosas de la vida, patrónsito…

E calou-se. Arrastou um caixão de gasolina e ofereceu-me :

— Eguapina.

Sentei-me. E ouvi, comovido, em silêncio, as suas amargas queixas: Estava ficando velho, doente. Vinte anos de luta nos ervais, enfrentando toda sorte de perigos, sem nada conseguir. Velara de uma só vez, num dia es-plendente de sol equatorial, o corpo da mulher e do filho, vítimas da sezão traiçoeira.

Já estivera bem, um tempo, mas veio-lhe a impiedosa ruína com a queda brusca do mate. A sorte era-lhe adversa. Precisava iniciar vida nova. Mostrou-me depois um mapa sujo e estraçalhado:

— Pancho, mi hijo que está en el Paraguai ha solicitado dei gobierno… e foi com o dedo grosso e trêmulo, descrevendo o seu perímetro.

— Aqui el Iguatemi… De otro lado, una vieja carretera… queda de aqui muy cerquita Guaíra. Poca verba, pero buenas tierras para el cultivo. Estaria bien tambien en este tacuapisal una linda casita.

E o indicador fechou o vértice do triângulo daquela minúscula gleba de terras, encravada, como um musgo daninho, no coração da jungle de Mato Grosso.

Foco, talvez, dos terribilíssimos carapanãs, furnas das suçuaranas manhosas, onde um homem descrente, desejava erguer morada, para começo de vida nova.

Janeiro de 1936 ia em meio. Amadurara no cérebro de Villalba a idéia de reunir a nova companheira e um filho, e mudar-se para o Iguatemi. Ia explorar criação de suínos. Tinha prática. O preço era bom.

E não seria difícil colocar a banha nas ranchadas, em grande número, espalhadas pela vasta região ervateira. Reuniu tudo um dia, e a pé com a mulher e o filho, cabresteando dois pobres cargueiros, pelo areal quente de Sacaron, rumou em direção ao Eldorado. Ia, talvez, satisfeito, com a cabeça povoada de sonhos.

Eu saí também nesse Ínterim. Fui assistir, em Ponta-Porã, aos festejos carnavalescos. E em meados de abril, quando voltei, já o meu velho amigo não estava. Curti, no princípio, grande saudade, por que não dizer: pois tinha pelo barbaquàzeiro imensa afeição. Fim do mundo, de lá nunca vinha notícias.

Quem nessa ocasião cortasse aquela região, havia de ouvir de todas as bocas esta terrível exclamação:

— Mas que horror! Onde já se viu isto: milho a Crf 6,00 a mão! Barbaridade! Era impressionante, mas verdadeiro. Foi esse um período difícil para a Empresa Mate. Comprando aos pouquinhos, pôde, em parte, suprir suas grandes necessidades. Cargueiros varavam léguas e léguas pelo sertão bruto, a fim de se vender a preciosa mercadoria. E como a safra paulista fora também minguada, a "Zeia’ mais teria de subir, até se tornar um flagelo. E subiu. Alcançou, em certas zonas, o preço de Cr$ 10,00. Diante desta situação, pensei escrever a Villalba. E escrevi uma carta longa, minuciosa. Expus-lhe tudo com clareza: deixasse os Polanchins e plantasse milho… milho… muito milho.

A própria Mate havia de ir a Iguatemi comprar, a peso de ouro, esse produto. Tocasse fogo no taquapizal e lançasse, dia e noite, na terra úbere e nutriz, as sementes de ouro. E fiz-lhe uma rápida demonstração do resultado promissor: tantos alqueires, fora os rastoíhos, tantos carros, vendidos éste a preço de Cr$ 86.000,00. Abatidas as despesas, sobrariam líquidos Cr$ 59.000,00. Uma fortuna! Estava incontestavelmente riquíssimo o meu velho amigo Villalba. Remeti-lhe a carta.

Tempos depois, por um índio que de lá fugira, coberto de chagas, tive notícias de Villalba. Seguira à risca os meus conselhos. Iguatemi era agora uma grande colmeia. Aquela alma penada, olhos fitos em Deus, ia lançando na terra prodigiosa, dia e noite, os grãozinhos de ouro. Fiquei satisfeito. Eu prestara um grande serviço, um relevantíssimo serviço, ao heróico capilosquetano.

Mas aconteceu uma grande desgraça, que a minha imaginação de moço visionário não previra.

Foi um golpe de morte. Quis fugir, mas pensei que, onde quer que fosse, o remorso, fantasma negro e hediondo, havia de me acompanhar. E esperei; vi desfilar, ante meus olhos, a catástrofe imprevista.

A safra platina de milho subira a todas as expectativas. O mercado interno era insuficiente para a evasão da produção exorbitante. E houve a solução esperada: o milho argentino, bom e selecionado, veio para Mato Grosso, via Guaíra. Milhares de sacas chegavam a Campanário. Em Ponta Porã, o seu custo chegou a Cr$ 9,00 por saco de 50 quilos. Estupidificante! E o nosso produto, de cultivo dispendioso, com sua produção insignificante, não pode competir com o dos nossos vizinhos do Prata. E não teve mercado!

Juan Agustin Villalba quase endoideceu. Andou muito tempo desorientado, sem vontade e sem energia, tal qual um autômato. Envelhecera de todo. Numa noite de lua, a mulher e o filho, já alta madrugada, foram encontrá-lo, no meio dos espectros apavorantes da paulama seca, com uma tocha, tentando, no delírio da inconsciência, atear fogo ao milharal seco. A razão começara a fugir-lhe! Contou então à mulher e ao filho, companheiros abnegados de infortúnios, a sua resolução: ia voltar para o Paraguai. E voltou. Foi para Capilla Horqueta seu berço natal, onde morreu, meses depois, pobre, miseravelmente pobre.

Para o seu enterro, vizinhos piedosos, fizeram uma subscrição.

Ao exalar o último suspiro, talvez se tenha lembrado de mim; e penso que me perdoou o mau conselho que eu lhe dera.

Um dia a Providência há-de fazer com que eu vá até Capilla Horqueta e lá hei-de visitar o túmulo de Villalba e depositar nele a coroa sincera da minha saudade!

Helio Serejo.

Fonte: Estórias e Lendas de Goiás e Mato Grosso. Seleção de Regina Lacerda. Desenhos de J. Lanzelotti. Ed. Literat. 1962

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