Oliveira Lima
UM SERÃO EM PALÁCIO
Houve do século XV para o século XVI um rei de Portugal de nome D. Manuel. A história não é da carochinha: por sinal que esse rei ficou conhecido na História do seu país pelo cognome de Venturoso. Um cognome nem sempre exprime a verdade: Dom Afonso VI foi cognominado o Vitorioso pelas batalhas ganhas pelos seus generais, porque êle pessoalmente nunca manejou senão a moca em combates de garotos, pelos quais se pelava. Dom Manuel foi, porém, de fato um felizardo: os venturosos jieste mundo são quase sempre os que desfrutam o trabalho alheio.
O monarca em questão apanhou o tempo das vacas gordas, que na história portuguesa só se repetiu com o ouro dos Brasis em tempo de Dom João V. Êle foi, porém, ingrato com aqueles que melhor o serviram, Duarte Pacheco e Afonso de Albuquerque entre outros, os mais legítimos heróis da história gloriosa do nosso país.
Dom Manuel gostava de exibir-se como soberano e ficaram célebres os serões do Paço da Ribeira, célebres pela suntuosidade, fácil para quem dispunha das riquezas da Índia, e também pelo cunho literário que lhes imprimiram os autos de Gil Vicente.
Tais autos constituíram o prometedor início do teatro português e a êles remontou Garrett, quando no século XIX renovou esse teatro. Eram peças satíricas, equivalentes aos jornais de hoje, quandos estes têm chiste, e nas quais se profligavam as prepotências dos poderosos e os abusos dos fortes. O diabo intervinha para embrulhar as coisas e lá conseguia levar na sua barca um pessoal graúdo, que sem êle ficaria por este mundo a fazer o mal e a aparentar de respeitável. A voz da justiça e da razão lograva, pois, fazer-se ouvir nos salões forrados de tapeçarias de Arraz, por onde El-Rei Dom Manuel passeava sua prosápia de "arrivista" porque, como monarca, não deixou de contar entre os parvenus, sendo um primo, com um irmão diante de si, e ambos com um filho legítimo e um filho natural de Dom João II na linha de sucessão.
Não sei porque me acudiram estas recordações históricas, ao ler a notícia do serão que em Palácio ofereceu aos seus partidários o Sr. Dr. Manuel Borba, governador deste venturoso Estado. Talvez porque um dos melhores autos de Gil Vicente foi representado na Real Câmara para distrair a Rainha, convalescente de parto, e agora também se tratava de um nascimento, como o de Minerva, da cabeça de Júpiter.
Apenas os cortesãos de outrora gozaram de maiores franquias do que os correligionários de hoje, de quem nem sequer se solicita a opinião; pede-se-lhes tão-sòmente que votem em dois tempos no candidato escolhido pelo maioral. Eu diria da chamada convenção — um nome que pegou para traduzir coisas muito diversas — que foi um serão cid usum delphini, se o candidato não fosse tão mitrado que pareceria uma brincadeira tratá-lo de delfim.
El-Rei Dom Manuel não empreendia uma expedição dessas que imortalizariam os portugueses sem ouvir os seus conselheiros e sem que estes se pronunciassem com toda a liberdade, contradizendo e interpelando o monarca, muito embora este depois pudesse resolver as coisas segundo o seu critério. O Sr. Dr. Manuel Borba não convidou nem mesmo pró fórmula a que qualquer dos presentes emitisse sua opinião, se a tinha. É verdade que a favor não era preciso, desde que o governador pedia, isto é, exigia a unanimidade; contra seria o cúmulo da audácia, senão uma ação de mau gosto.
Houve um convencional, presente até à chamada, que pensara ler um protesto, em nome das boas normas republicanas, contra o processo antidemocrático a que se recorrera, para corroborar uma iniciativa errada, emprestando-lhe um ar de festa. Porque realmcn-não passou de uma função divertida, o que já se achava indicado na escolha do local da convenção. Ninguém convida os seus amigos para irem a sua casa fazer guerra às suas deliberações. A boa educação manda em casos tais que se diga amém com o sorriso nos lábios. Nessa convenção sui generis, cada qual trata de ir arranjando para o futuro a sua vidinha. Ninguém pensa em que possa dali sair para a guilhotina. Quem não gostar, que recorra ao suicídio político, que é livre.
Aquele cidadão honesto, único da sua espécie, teve que se retirar, não farto como Aristides de que o tratassem de justo, mas receoso de que o tratassem de doido e lhe fizessem a vida amarga, porque o santo e senha era não se admitir a hipótese de uma voz dissidente. Os mesmos que até ontem combatiam na sombra o nome do candidato designado encararam com verdadeiro horror que alguém houvesse animoso bastante para, como se diria em Portugal e em estilo tauromáquico, saltar à praça e bater as palmas ao boi.
Eu achei que esse senhor fez bem em engolir o seu discurso. Produzirá melhor efeito meditado no seu cérebro, que pensa, de que apelando para cérebros muito capazes de exercerem essa nobre função, mas que moto-próprio, talvez por disciplina partidária, abdicaram dela, o que, sendo por vontade, leva a crer na continuidade da abdicação. Um Gil Vicente do Recife teria que excluir dos seus autos a personagem, que nos autos do século XVI fazia a crítica, a que se insurgia contra os desmandos do poder, a que punha os pontos nos ii, chamando um clérigo sem escrúpulos um simoníaco c uma mulher à-toa uma barregã. E nem por isso a Inquisição perseguiu o dramaturgo. O Rei sabia que êle bem tinha razão e admitia que assim o mostrasse. Esta tolerância só entre os reis de verdade se pode encontrar. Os outros só por curto prazo o são, e não podem estar a malbaratá-lo. Força c aproveitar o breve ensejo de mandar e não consentir cm desaforos. Mandar nestas condições não vale a pena senão às direitas.
Sou, como todos sabem, um observador de fora, que de resto está, senão já com o pé no estribo, pelo menos selando o animal para uma longa jornada c demorada ausência. Não me afetam portanto pessoalmente coisas como essa: vendo-as porém praticadas não lhes pode ficar insensível, pelo menos, o meu senso de moralista. Cada qual é um moralista a seu modo, e quanto a mim cheguei neste caso à conclusão seguinte:
Se o Sr. Dr. Manuel Borba quisesse comprometer o seu candidato aos olhos do público, isto é, da nação, não procederia de outra maneira, e do que apenas me espanto é de que o candidato em questão aceitasse êsse processo de convenção-serão, deixando assim imaginar ser o único por onde podia passar a sua candidatura. Ora, eu o reputo capaz de, como se diz, passar pelo fundo de uma agulha, em tanta conta tenho a finura da sua inteligência. Com as simpatias de que dispõe, com os recursos de que é possuidor, com as idéias de administração que seguramente tem, o Sr. Senador José Rufino Bezerra Cavalcânti rrterecia uma melhor entrada para o governo do seu Estado.
É verdade que o batismo liberta o homem do pecado original: mas será deveras o reconhecimento de um Congresso, ajeitado pelos seus dedos habilidosos, uma purificação?
Fonte: Oliveira Lima – Obra Seleta – Conselho Federal de Cultura, 1971.
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