Oliveira Lima
OS DEVERES DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA*
Minhas Senhoras, Senhores:
Eu só posso atribuir à circunstância de haver regressado há poucos dias de uma demorada viagem à República Argentina a honra que me é feita por profissionais de iniciativa convidando-me para orador desta festa de posse da diretoria da Maternidade Pernambucana que se pretende acertadamente fundar.
A República Argentina é na verdade a única democracia da América Meridional merecedora deste nome porque é o único dos seus países onde as eleições são uma realidade incontroversa, portanto onde existe um regime de opinião manifestando-se calma, legal e dignamente pelo sufrágio, não por alucinados impulsos revolucionários, em que o sangue do povo jorra em borbotões para as coisas continuarem afinal como estavam, com a mudança apenas do rótulo e do nome do farmacêutico: dentro do boião correm a mesma pomada feita com os mesmos ingredientes.
Não se passou tanto tempo desde que a Argentina se elevou a esse alto nível político, oferecendo o espetáculo de um partido, como o radical, galgando o poder após trinta anos de oposição c algumas tentativas revolucionárias dessa vez, entretanto, sem um tiro ou sequer uma violação de urna; assim como do mesmo partido no poder perdendo eleições segundo não há muito lhe sucedeu em Córdova.
Pode contudo dizer-se que a nação se preparou para tão fecundos destinos, desenvolvendo e cultivando no seu seio o espírito social; daí a segurança da sua transformação. A base é sólida sobre a qual assenta o edifício político. Em matéria de assistência pública, de proteção aos doentes do corpo e da mente, não conheço país que se avantaje à Argentina, possuindo mesmo feições que lhe são peculiares e que seria em extremo desejável que se implantassem noutras terras. Se o progresso se deve, como parece, medir pela condição dos estabelecimentos de benificência dc uma sociedade, comparada com as demais, a sociedade argentina acha-sc certamente no primeiro plano da civilização.
* Conferência pronunciada na inauguração da Liga Pró-Matre, em Pernambuco.
O nosso patriotismo, susceptível e melindroso como qualquer outro, ressentiu-se há alguns anos de haver o Professor Pozzi, o celebrado clínico francês, expressado um tanto enfaticamente sua preferência pelos serviços médicos argentinos com relação aos brasileiros. Não quer dizer que a ciência de um dos dois países valha mais do que a do outro. Nós temos grandes médicos e grandes cientistas e não há país, nem mesmo o que lhe foi berço, em que o nome de Osvaldo Cruz seja mais reverenciado do que na Argentina. O seu culto ali é como se fosse o de um Pasteur. O que nos falta por enquanto é capacidade de organização; é sobretudo um ambiente social propício à organização científica, em que não falte também a piedade, sem a qual a ciência corre o risco de ser rude. Li não há muito um livro cruel. Intitula-se Crimes de Caridade e tem por autor um judeu rumaico domiciliado nos Estados Unidos. Suas páginas envolvem a condenação do modo por que é exercida a caridade por funcionários adrede remunerados, processo que resulta o menos caridoso possível e do qual padece sobretudo a gente estrangeira de poucos ou nenhuns recursos, que nem sempre encontra trabalho num meio indiferente, senão hostil, onde os socorros lhe são fornecidos a troco de humilhações, de maus tratos dc um sistema de espionagem e de sujeição em virtude do qual é vedado, em casos de socorros recebidos, auferir dinheiro de outra fonte, mesmo a de um trabalho ligeiro, porque isso já significaria o poder ganhar a vida sem auxílio. Daí a dissimulação em ocultar pequenos lucros; a minguada alimentação dada aos filhos a fim de não trair outros recursos denunciados pelos espias assalariados; ao mesmo tempo a necessidade de manter a prole de forma a não cair sob a alçada das leis protetoras da infância, que nem sempre são leis que respeitam os laços de família e chegam por vezes a dilacerar o coração dos pais.
Não significa isto que nos Estados Unidos se não pratique o bem sob formas muito variadas. A caridade como ramo de administração e origem de burocracia não pode porém deixar de ser deficiente. Recomendando o que êle chamava "humanizar a caridade oficial", um membro da Junta de Beneficência do Estado de Nova York declarava, há um ano, num inquérito aberto pelo Governador Whitman, que sinceramente acreditava ser preferível para as crianças de um certo asilo morrerem do que viverem. O que diria aquele publicista c este síndico- se tivessem conhecimento de que numa terra que se diz civilizada e se gaba de altruística, raparigas órfãs, culpadas de insubordinação, foram pelos provedores da caridade confinadas como castigo em células do hospício de alienados des-
uinadas aos furiosos? Responderiam decerto que essas próprias células constituem um martírio anacrônico, mesmo no caso dos loucos, porque o tratamento destes infelizes, hoje, se procede diversamente — pelo repouso na cama e pelos banhos mornos. Uma das maravilhas da República Argentina é a Colônia de Lujan em que os doentes, como lá se chamam os dementes, vivem soltos, trabalhando, produzindo e distraindo-se, com tantas comodidades, tamanho bem-estar num ambiente tão simpático c tão ameno, que quase dá vontade de lá passar uma temporada.
No caso bárbaro a que me referi e que é infelizmente nacional, a falta não é tanto proveniente de desumanidade quanto de ignorância. A caridade porém não tem mais o direito de ser ignorante. Uma das grandes forças da Igreja Romana consiste na sua fácil adaptação ao progresso dos tempos, na pronta assimilação das con quistas científicas. Longe vai também o tempo em que ser sant era geralmente sinônimo de ser pouco limpo. A humanidade crist" evoluiu como tudo o mais no mundo. Os agiológios do passado encerravam exemplos de cândido desasseio, mas os do futuro conterão exemplos de higiene prática, os quais constituirão outros tantos milagres. São Francisco Xavier, que possuía todas as virtudes, cometeu o grave erro de não se desembaraçar dos parasitas do seu corpo antes de evangelizar o Japão, onde o banho é de rigor duas vezes por dia.
As nossas Santas Casas prestam extraordinários serviços. Não sei o que seria sem elas a assistência pública no Brasil; mas ainda carecem de aprender muito em matéria de profilaxia e de terapêutica. Antes de recorrer ao sobrenatural haverá que esgotar o natural, reservando a religião para aquilo que representa seu campo de ação e seu terreno de eleição, a saber o consolo da alma pelo bálsamo da crença.
A República Argentina resolveu, a meu ver, o problema da caridade oficial, e quem o resolveu foi o seu Presidente Rivadávia, há quase um século, em 1825, entregando às senhoras da aristocracia portenha a direção oficial dos serviços de beneficência pública, a qual elas desde então vêm exercendo gratuitamente. A organização propriamente não variou e essas senhoras dispõem hoje de um orçamento de 20 mil contos, assim subtraídos aos apetites dos políticos e dos seus clientes. Só do Estado recebem elas 11 mil contos, e o atual Presidente Irigoyen, que está dando ao mundo o exemplo, penso que único, de um chefe de Estado que não recebe seus vencimentos, integralmente os transfere à caixa da Beneficência.
O escrúpulo com que aquelas senhoras manejam o seu departamento só tem rival no acerto da sua administração. Não foram lá precisas as experiências da Grande Guerra, para que a mulher argentina desse a medida da sua inteligência e de sua competência. Os médicos do Recife, que entenderam confiar igualmente a um grupo distintíssimo de senhoras a organização da Maternidade pernambucana, tiveram a mesma -inspiração, a mesma intuição que o grande Rivadávia e com certeza não se arrependerão disso.
Nos hospitais e asilos da Argentina a direção técnica cabe, já se sabe, a profissionais; mas estes mesmos andam sujeitos à fiscalização severa das inspetoras da Sociedade, cujo labor meticuloso e excelente me foi dado acompanhar durante semanas de visitas diárias aos estabelecimentos pios da grande capital. Reparei então que ao exercício da caridade nem sequer era mister sacrificar a vaidade. A caridade pode ser praticada com trajes elegantes, fica até mais sedutora, do mesmo modo que as roupas imaculadas dos médicos e das enfermeiras dos hospitais em que há desses requintes como o que prognosticam a cura na sua alva, alegre tonalidade.
As senhoras da alta sociedade de Buenos Aires que tanto timbraram em dar-me a conhecer o resultado admirável dos seus esforços generosos no patrocínio dos enfermos, dos desvalidos e dos órfãos, prestam com suprema distinção, o que quer dizer com simplicidade, e não julgam incompatível com a moda, a sua tarefa humanitária. A observação tem seguramente sua importância, não fossem algumas pensar diversamente e cortar o vôo desta instituição maternal que tão bem se anuncia, reduzindo suas promotoras a personagens de bloco.
Se a resolução dos iniciadores da Maternidade Pernambucana foi previsora e feliz é porque é de ver a sua oportunidade. Não me compete entrar no exame do aspecto restritamente médico da obra projetada, a qual só pelo seu lado social me é lícito encarar. Entretanto, mesmo a um leigo podem falar as estatísticas e estas, como me foram fornecidas, rezam o seguinte: que no Rio de Janeiro, em 1915, o número das parturientes admitidas à Maternidade foi de 1.425, sendo a mortalidade materna de 1 c 1/2 por cento e da prole de 9 por cento, baixando cm 1916 o número cias parturientes a 1.300 c baixando respectivamente a proporção da mortalidade a 1/2 por cento e a 3 e 1/2 por cento. Nos hospitais o número de parturientes foi 419 em 1915, a proporção da mortalidade materna foi de 5 e 1/2 por cento e a da prole de 23,6 por cento: mais do que no estrangeiro em 1840, no caso das mulheres anormais, em que os algarismos proporcionais correspondem a 5 por cento e 16,8 por cento respectivamente.
Incompetência dos cirurgiões? ou falta de condições adequadas? qualquer um formulará a pergunta. A causa só pode ser a segunda — é a única resposta lógica, pois que os médicos do Rio e de Pernambuco saem das mesmas faculdades e estas têm dado provas sobejas da sua eficiência. Agora mesmo, cm Buenos Aires, ouvi da boca de sumidades os mais francos elogios à nossa ciência médica.
Se acreditarmos que no Cemitério de Santo Amaro foram inumadas, em 1918, 807 crianças nascidas mortas — quase tantas como as vítimas da varíola em 1909, que foram 912 — sem falar em 77 falecidas nas primeiras 24 horas de vida, mercê de debilidade congênita e de falta de assistência médica durante a gestação ou de acidentes sobrevindos à nascença, veremos que o problema que nos ocupa tanto tem dc momentoso quanto de urgente.
Faz grande honra à classe médica brasileira a atenção pot ela prestada a essas questões máximas do saneamento, uma vez que se admitiu e reconheceu que o Brasil, por muito bom que seja não é o Paraíso terreal da Bíblia, como acreditou Américo Ves púcio e o propalaram certos cronistas, deslumbrados pela luxurian te vegetação. Ou se o foi os males aí entraram com a explosão da cólera divina. A minha teoria de profano é que como terra tropi cal não há melhor, um sem número de condições a favorecem mas precisa-se de se cuidar muito ao sério em erguer, do seu leito de enfermidades e de privações, uma população degradada. Na Re pública Argentina, a maior preocupação dos profissionais reside em constituir uma raça forte — ainda mais forte que possa explo rar e valorizar os territórios que lhe couberam em partilha. Para isso se oferece rude combate aos males que assaltam a população, desde o impaludismo até a tuberculose. A ciência argentina assim ajuda a a obra da beneficência e ambas entre si disputam, numa santa emulação, a benemerência pública, constituindo os seus tentames combinados um título de honra incomparável e glória bastante para um país.
O que dizer, porém, da obra primordial e essencial de amparar a maternidade, de proteger a fonte da vida? Esta proteção tem que ser ativa e não pode limitar-se a ser passiva. A contemplação mística conduz também ao reino do céu, mas não modifica as condições do campo de ação da humanidade, à disposição da qual o engenho da criatura humana tem ido sempre colocando novos inventos e instrumentos aperfeiçoados de progresso, para exercer a caridade industriosa da forma mais eficaz.
Nem os tempos estão para repouso. Mais do que nunca a humanidade tem que fazer prova das suas virtudes ou dar expansão aos seus vícios e destarte aspirar à recompensa ou merecer a punição. A maior das guerras vai ser causadora da maior das transformações, tendo espalhado por todo o mundo a semente das reivindicações das classes trabalhadoras, que são as classes mais pobres. Os ricos, mesmo os que não forem culpados de iniqüidade ou de ganância, precisam fazer-se perdoar suas riquezas e só o lograrão pondo-se ao serviço da humanidade, lutando para minorar as necessidades e os sofrimentos, que têm sido o melhor quinhão do maior número.
Que soma mais considerável de dores e de angústias do que a consubstanciada na perpetuação da nossa espécie? Uma Maternidade mantida na altura que exige a ciência contemporânea é uma instituição de natureza a atrair mais do que qualquer outra as simpatias gerais, porque pressupõe o aumento da natalidade mediante os cuidados dispensados antes, durante e depois do nascimento e porque exerce um apelo irresistível sobre a nossa mais íntima sentimentalidade.
Fala-se todos os dias na urgência do crescimento da nossa população, com o fim de desenvolver os nossos recursos e no entanto são sacrificadas às centenas, pelo atraso e pelo desmazelo, que nea te caso muito se parecem com um crime, existências preciosas em si, porque cada uma representa uma unidade de cultura e, também, pelo ato de constituírem o fruto de organismos já adaptados ao meio, apenas depauperados pela miséria, freqüentemente associada à ignorância. A tal situação há que resolutamente fazer frente.
Como poderá o cidadão fazer valer o seu direito de trabalho sc não possui saúde para o exercer, se desde o berço tudo se combina para o tornar um enfezado, raquítico, doentio, por vezes anormal e quase sempre infeliz? A chamada indolência nacional é uma das acusações mais injustas que eu conheço e felizmente que tende a desaparecer, desde que se descobriu que o trabalhador nacional não é um preguiçoso, sim freqüentemente um doente e um doente que morre de esfalfar-se, sem possuir energia nem sequer para produzir a sua parte. Êle já nasce doente pela debilidade e pelos estigmas patológicos dos que o procriaram e pela míngua de assistência recebida na sua entrada para o mundo.
É bem tempo de procurar remediar esse estado de coisas, de robustecer os que têm de ser, em suma, os agentes da nossa civilização e forem salvos da morte que os espreita a cada momento, acudindo pressurosa ao seu primeiro vagido. O capital de que vale, sem o trabalho que o faz modificar e, por sua vez, de que vale o trabalho sem a resistência para o afrontar?
No Brasil falta por ora a verdadeira compreensão da questão social que é em boa parte uma questão cuja solução depende do coração. Eu não pretendo dizer que a gratidão seja o sentimento regulador das relações humanas, nem mesmo estou convencido de que seja o homem um animal bondoso; mas o espírito de justiça tem afinal uma influência poderosa sobre os destinos da humanidade. Onde quer que êle impere, serão menos agudas as desavenças, menos odientos os conflitos, mais cordiais os laços da grande solidariedade afetiva que deve constituir o supremo ideal social.
Fonte: Oliveira Lima – Obra Seleta – Conselho Federal de Cultura, 1971.
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