A DESILUSÃO DO REGRESSO – D. João VI no Brasil – Oliveira Lima

D. João VI no Brasil – Oliveira Lima

CAPÍTULO XXX

A DESILUSÃO DO REGRESSO

 

Dom João VI, quando mesmo não possuísse inteligência política, tinha sobrada experiência de
governo para deixar de reconhecer que, na história da monarquia portuguesa, o momento não
podia ser mais de resistência, antes era de concessões. Quando muito lhe seria
lícito, ao representante
do direito divino, tergiversar sobre a extensão das liberdades: negá-las, porém, ser-lhe-ia tão
impossível quanto havia sido aos monarcas da França e da Espanha.

A ele próprio tinha sido dado resistir ao tratar-se
ligeiramente em 1810, depois
de repelida a última invasão francesa, de serem convocadas em Portugal cortes na forma antiga da
monarquia — ”sendo delas apainado", na frase de Funchal,1000 o marquês de
Wellesley, secretário principal dos Negócios Estrangeiros e irmão do marechal Wellington. A
ordem então mandada
para Londres foi clara e terminante, de opor-se o embaixador a semelhante convocação, sempre
que a ele se referisse o Foreign Office.

Agora, contudo, debalde procuraria esquivar-se o monarca,
por mais que tentasse ladear a questão e usar de escapulas. Nesta impressão o
devia ter
necessariamente radicado a presença no Rio de Palmela que, durante sua estada em Portugal,
simultânea com os primórdios da revolução, fora quem mais aconselhara os governadores do reino
a convocarem logo as
cortes como o melhor meio de irem ao encontro das reivindicações liberais.1001

Demorado pela Regência legal e rogado de dar-lhes os
conselhos do seu largo traquejo dos negócios e despreocupada compreensão das
coisas políticas — por isto mesmo posto à margem e mantido em desconfiança pela junta provisional do novo
governo supremo, de que era alma Manoel Fernandes Thomaz —, Palmela seguira afinal para o Rio na
resolução de sugerir
abertamente ao rei que não há nem um só instante a perder para adotar medidas firmes, decisivas,
análogas ao espírito do tempo quanto for compatível com a honra e segurança do trono, e que
este-sistema, adotado sem perda de tempo, deve ser seguido com coerência e com franqueza".1002

Palmela pensava sobretudo em pôr um termo próximo à
revolução de Portugal para evitar outra, que previa pior, no Brasil, e entendia
que àquela só se
poria termo mediante a execução de inteligentes medidas liberais, porque tais movimentos não eram
tanto expressões de descontentamentos locais como manifestações de um estado
de alma geral, ao qual somente se acudiria com a outorga de uma Carta para fugir a uma Constituição elaborada em cortes.

Para
impedir em todo caso que a concessão passasse além de certos limites, o que sem dúvida
aconteceria se os revolucionários fossem deixados sem freio e sem receio, representara o
ministro dos Negócios Estrangeiros e da guerra ao seu soberano que se tornava mister ir para Lisboa
o rei em pessoa
"ou mandar o seu filho primogênito para inspirar respeito, e servir de centro de união
aos bons portugueses". Este segundo alvitre, com que o diplomata se congraçara, tinha
aliás uma vantagem, a de permitir ao monarca resistir melhor ao impulso
popular, o qual poderia querer emprestar à Constituição uma orientação em extremo democrática, ao mesmo tempo que prevenia
quaisquer conseqüências fatais no Brasil,
indo quiçá até à dissolução da monarquia.

Numa eloqüente memória, destinada a Dom João VI e na qual Palmela tachava de perigosos e infrutíferos os alvitres
propostos em discordância
dos seus e em simpatia com a maioria dos votos do conselho régio, por Thomaz
Antônio, tanto num espírito de antagonismo político como de emulação pessoal, dizia o autor
que, em sua opinião, a ida do príncipe real devia precisamente servir para guiar o movimento em ação,
impedindo-o de converter-se em
demagógico.

Se era por um lado tão impossível quanto obrigar o sol a
recuar, despedir as
cortes já reunidas e substituir uma assembléia constituinte por outra consultiva, envolvia por
outro uma fraqueza da coroa confirmar expressamente o governo intruso de Portugal, que aliás
estava de posse da autoridade
e a não compartilharia, sacrificando sua popularidade, com acólitos mandados da corte e
destinados na melhor hipótese a ser figurantes
anódinos.1003

Esforçara-se pois Palmela quanto possível — e Silvestre, menos prático
e mais doutrinário, o acompanharia com igual pertinácia e talvez convicção superior — não por
desvendar a vista ao monarca, que abraçava perfeitamente a teoria da situação,
mas por instigar a sua iniciativa a entrar num caminho a igual distância dos
desmandos dos revolucionários, que queriam reduzir a realeza a uma ficção, e das ilusões dos
retrógrados, que
julgavam possível continuar a fazer pouco da revolução que rompera fremente na Península, "como
se eles escrevessem a dez mil léguas de distância do teatro desses acontecimentos, e trezentos anos
atrás da era em que vivemos".1004

Entretanto propagava-se a insurreição ao Brasil, sem que Dom João VI saísse do seu meio-termo
passivo. "Thomaz Antônio mantinha el-rei na sua inação", escrevia Palmela a Funchal1005
quando, infelizmente, já lhe não era dado mais do que exclamar: "Acabou-se a nossa comédia
ao menos para mim! e
dar-me-ei por muito feliz que não acabe a pau como um entremez, e sobretudo que não acabe como
tragédia."

Palmela antevira, como sempre, as conseqüências e ainda
escrevera ao rei, ao
participar-lhe a insurreição da Bahia, cujas primeiras notícias tinham chegado ao ministro
inglês Thornton por intermédio do cônsul ali residente: "Creio que as
medidas de força e de vigor não se podiam já adotar, por não haver quem queira executá-las, e nem
seriam a propósito no estado de efervescência em que vai achar-se brevemente
esta cidade com a
notícia de hoje."1006 Mais uma vez rogava ao soberano que se pusesse à testa da revolução, como
único meio de atalhá-la e de ditar ele a lei.

No tocante ao Brasil opinara o conde de Palmela no ministério — além da reunião de representantes com
os quais devia el-rei consultar sobre a aplicação ao Brasil e domínios ultramarinos das bases
constitucionais, generosamente
outorgadas aos seus súditos ou estabelecidas de acordo com eles — por algumas medidas
executivas de caráter urgente e inadiável. Importava remover alguns funcionários que, como
Targini,1007 tivessem atraído sobre si a geral animadversão; regular a
administração da Fazenda; pagar a divisão do rio da Prata em atraso; tratar do recrutamento e de um
regulamento para o
exército; examinar a administração da justiça e o procedimento dos
governadores, e acabar com a fatal alçada de Pernambuco.

Assim singela e familiarmente narra1008 Palmela os
acontecimentos que
se desencadearam e carregaram os seus planos: "El-rei em vez de adotar a totalidade destas idéias…
resolveu-se por conselho do Thomaz Antônio a publicar só e isoladamente o
chamamento dos procuradores das Câmaras do Brasil.1009 Daqui seguiu-se o exasperar
o partido europeu que pensou que uma tal medida tendia à separação dos dois reinos. O príncipe
recusou-se a partir imediatamente, não querendo separar-se da sua mulher nem
por poucos meses. Entretanto cresceu a fermentação e eu pedi a minha demissão, vendo que não
podia merecer a plena confiança de el-rei que era necessária em tais circunstâncias:1010
porém não me foi concedida a demissão
(pedida no dia 24) e quando el-rei me tinha ordenado de redigir um manifesto com as bases constitucionais como o meio de evitar a revolução nesta cidade (ordem que recebi no
dia 25 à noite) já não era tempo de
lançar mão nem mesmo desse remédio, porque a tropa instigada por três ou quatro botafogos apareceu
formada no Rocio na madrugada seguinte, e ditou a Lei. Aceitou portanto el-rei
e jurou uma Constituição que ainda
não conhece, e eu entrei como Pilatos na proscrição de todo o
ministério."

Aí transparece o ponto em tudo isto mais doloroso para
Palmela: ver-se arredado
dos negócios públicos, que constituíam o encanto da sua atividade. A 29 de fevereiro
solicitava o ex-ministro dos Negócios Estrangeiros permissão do soberano para
regressar para Portugal, "onde Vossa Majestade sabe que deixei mulher e filhos, antevendo
já desgraçadamente o êxito que a minha jornada poderia ter". Não fora de boa vontade que se
alheara da Europa:
ele próprio confessa em todas as suas cartas particulares.1011 Uma vez, porém, consumado o
sacrifício, não se queria ver fora do poder, numa ociosidade estúpida, em que mais duramente se
lhe faria sentir a falta de distrações
intelectuais e de convívio mundano.

Nesta ordem de idéias entrou Palmela, uma vez afastado do ministério, a advogar de novo contra
Thomaz Antônio — o qual, como eco da regia predileção, optava pela permanência do monarca no
Rio de Janeiro — a
volta de Dom João VI para
Portugal. Deixou assim de considerar melhor alvitre a ida do príncipe real, que entre o
partido europeu encontrava
partidários nos que julgavam Dom Pedro, pela sua mocidade, verdura e posição
secundária na dinastia, mais fácil do que o rei de ser avassalado pelas cortes,
cujos desígnios eram francamente antibrasileiros. O fundamento do raciocínio era
análogo nos que o queriam prender ao Brasil com o plano oposto de dirigi-lo no sentido das
pretensões nacionais

A regência do príncipe podia encerrar perigos, mas o regresso da corte evitaria, argumentava
Palmela, perigos maiores, como o de perder-se para todo sempre a sede
tradicional da monarquia. E já que lhe não tinhi sido permitido figurar na
América como primeiro-ministro poderoso, o Richelieu de um Luiz XIII astuto, junto ao qual continuava
Thomaz Antônio a
exercer como conselheiro confidencial uma espécie de autoridade oculta, nada se
perdia indo tentar outra estréia sobre o novo tablado constitucional, com um
cenário até risonho ao seu espírito. Apenas o sucesso se antolhava mais duvidoso porque a platéia de
democratas destestava particularmente
Palmela, nele enxergando um ator de talento capaz de dominar a revolução, sem a combater estultamente,
antes encarnando-a para dirigi-la ao sabor da conveniência e do
prestígio da coroa.

Tanto pior se a permanência de Dom Pedro no Brasil oferecia o núcleo de
que carecia o movimento contrário à desagregação da monarquia americana,
iniciada pela revolução de Pernambuco e ativada pelas recentes revoltas constitucionais. Ia
verificar-se tarde e inoportunamente quão mais acertado houvera sido ter posto em prática a segunda
parte da sugestão,
feita de Viena por Palmela e relativa à elevação do Brasil a reino, que fora a remoção do príncipe
real para Lisboa como vice-rei, dispondo de
amplos poderes.

Esta lembrança tinham-na arredado em 1815 os conselheiros privados — o singular talvez coubesse
melhor — que de fato dispunham de uma influência de que nunca logrou gozar a
série de ministros moribundos1012 que Dom João VI chamou no Rio para seu despacho, todos falecidos nesse curto período de
treze anos e que eram substituídos provisoriamente pelos colegas, assim
oferecendo ao monarca melhor oportunidade e maior facilidade de governar
diretamente, sem tutelas incômodas nem acompanhamentos ostentosos. Linhares,
Barca e Palmela, por mais
que se tivessem assinalado no governo, aconselhando e esclarecendo o rei com seus talentos, não
possuíram maior autoridade efetiva do que Galvêas, Aguiar e Bezerra, e a tiveram certamente
menos do que Thomaz Antônio.

O resultado desta intimidade espiritual foi, com relação à mutilação dos planos sempre sensatos de
Palmela, que, segundo escreve o autor das Considerações1013 a medida saudável e segura da
União dos Reinos se transformou
em uma medida de perpétuo ciúme, desunião e discórdia, pois que o Brasil ascendia à
graduação de reino enquanto Portugal descia ao caráter de colônia, sofrendo o Erário de Lisboa
repetidas sangrias em benefício
do Erário do Rio, anêmico pelas dilapidações, despesas inconsideradas e até descaminhos. E
para avaliar do efeito daquelas sangrias basta não esquecer que o atraso no pagamento dos soldos
às tropas foi uma
das causas imediatas e determinantes da Revolução do Porto, logo propagada a Lisboa.

Se mais tarde do que 1815, nos críticos momentos de
1821, Dom João VI não seguiu
resolutamente os conselhos de Palmela, não foi porque lhe faltasse a consciência nítida da
situação, sim a fibra precisa para arrostá-la. É verdade que preferia, porque estavam muito mais na
sua natureza, os
rodeios e artifícios políticos inventados pelo gênio conservador de Thomaz Antônio, mas não há melhor
prova de que para o soberano do Reino Unido era inevitável com sua partida a separação, do que
a frase tão conhecida
ao filho sobre a necessidade de não deixar escapar a coroa americana.

Nem pode sua autenticidade ser contestada, visto
achar-se reproduzida
na carta de Dom Pedro, regente, ao pai, de 19 de junho de 1822. Os termos são
os seguintes: "Eu ainda me lembro e me lembrarei sempre do que Vossa Majestade me disse, antes
de partir dois dias, no seu quarto: Pedro, se o Brasil se separar, antes
seja para ti, que me hás de respeitar, do que pa
ra algum desses aventureiros. Foi chegado o momento da quase
separação, e
estribado eu nas eloqüentes e singelas palavras de Vossa Majestade, tenho marchado adiante do Brasil, que
tanto me tem honrado."1014

Dom João VI esperara,
contudo, até a última que o forçassem a ficar. O seu ouvido estava sempre alerta, a pressentir uma
manifestação que não
chegava e que, quando se esboçou, foi para tornar mais amarga sua partida, maculando de sangue os últimos dias da sua
estada no Brasil. O povo não estava em
condições de lutar com a tropa. Maler escrevia com exatidão para Paris1015 que a
população do Rio via afastar-se o rei com pesar e também com inquietação; mas
que, quando alguns intitulados facciosos
quiseram dar corpo a esses sentimentos e afixaram cartazes ameaçadores, falando em oporem-se pelas armas à
partida da família real, as tropas
protestaram contra o alarme e juraram — a época era dos juramentos — manter com fidelidade o sossego público e
velar com dedicação pelo embarque dos augustos personagens, sãos e
escorreitos.

Disfarçadamente era um mandado de despejo, a que os acontecimentos iam fornecer uma cruel sanção. Ao
mesmo tempo que o decreto que anunciava a ida do rei para Lisboa, ficando o príncipe no
Rio, com que se punha
cobro às súplicas, intrigas e suspeitas originadas no boato de acompanhar o
herdeiro o soberano, outro decreto, do mesmo dia 7 de março, mandava proceder à escolha dos
eleitores de paróquia para a eleição final dos deputados brasileiros às cortes portuguesas,1016
que deveriam seguir no
mais curto espaço de tempo a tomarem assento nessa assembléia deliberativa e constituinte.

Estas primeiras eleições estimularam a rivalidade acalmada entre os dois grandes partidos e
levaram-nos a virtualmente definir suas atitudes, de forma que os eleitores
fluminenses se reuniram em más disposições de espíritos na tarde de 21 de abril, no edifício da
Bolsa, na rua do Sabão, em convocação extraordinária para lhes ser apresentada a lista do ministério do príncipe lugar-tenente.1017

 

A Regência estava então iminente. A nova trasladação da
corte assumia porém proporções e circunstâncias imprevistas. Comerciantes e
capitalistas
portugueses, dos mais importantes e em crescido número, iam na frota com receio
dos sucessos a vir, realizando seus negócios, carregando seus bens, drenando o ouro e
valores do Banco e, ao que se propalara, eles e os representantes da administração limpando das
últimas migalhas os
cofres públicos. Pesava sobre o espírito nacional uma atmosfera de desconfiança, produzindo uma mal
contida irritação, que por um nada se mudaria
em violência.

Toda reunião naqueles tempos pretendia tomar ares de
parlamento, e os
eleitores do Rio, aos quais para mais completa imitação até se deliberara comunicar o programa do
futuro governo, não se furtaram a fazer vezes de convenção. Tudo lhes serviu de tema de
discussão, as teses atropelaram-se, os debates acaloraram-se e a breve trecho,
depois de ordenar
o desembarque dos cofres públicos, reputados a bordo, sob pena das fortalezas não deixarem a
esquadra transpor a barra, a sessão se declarou em permanência até que o rei
jurasse provisória e imediatamente a Constituição espanhola de 1812 — ideal político, como a
chama Handelmann, de todas as nações
latinas do meio-dia.

À meia-noite foram acordar o rei. Este, que almejava provocar uma demonstração de lealdade, não
uma manifestação de liberalismo, mal veio a si do espanto, estremunhado e desiludido, anuiu a
tudo: concedeu a Constituição
espanhola, concedia até o cetro se o tivessem reclamado. As ruidosas
aclamações com que em toda a cidade foi pelos patriotas recebido o resultado desse seu exclusivo
pronunciamento civil, despertaram todavia da primeira indiferença as tropas portuguesas, que
se congregaram logo, como já se fizera
costume, no largo do Rocio.

Daí ao pronunciamento militar, distava um passo. Ao
romper do dia, enquanto
se enfiavam na Bolsa os discursos congratulatórios, à sombra da prometida
proteção de liberdade de palavra por parte do comandante das armas, general Caula, um
regimento de caçadores cercou o edifício, intimou a dispersão da reunião, deu
uma descarga de mosquetaria contra as janelas e penetrou no recinto de baioneta calada,
dissolvendo o ajuntamento sedicioso, matando três pessoas, ferindo mais de
vinte, prendendo uma porção e pondo em
fuga o maior número.1018 O
arremedo de convenção vivera… l’espace d’une nuit.

De novo neste episódio se quer ver, com bastante aparência de razão, a participação do príncipe. É
muito pouco provável que os caçadores tivessem agido de motu próprio; o rei com certeza — ninguém
mesmo o acusou —
esteve alheio à violência empregada; os oficiais do regimento seriam por si
capazes de ter ordenado a debandada e matança de uma assembléia, cuja reunião era legal
pois que a convocara o juiz do distrito, se bem que estivessem sendo exageradas suas pretensões e
que se houvesse aumentado
seu pessoal com bom número de indivíduos sem título para se acharem presentes?

O interesse do ato revertia em todo caso a favor de Dom Pedro e do seu
mentor Arcos, que temiam, pelo menos tanto quanto Dom João a desejava, uma pressão contrária à
partida da corte; e se o príncipe, conforme rezam alguns depoimentos, depois de provocar a
carnificina a sustou, não fez mais do que zelar sua nascente e então geral
popularidade. As ordens,
é claro, foram dadas em nome do rei, o pobre rei que já não mandava e a quem, no dia 22, fizeram
revogar tudo quanto outorgara na noite anterior e confiar de Vez a seu filho, assistido de um
gabinete de quatro membros,
a direção autônoma dos negócios brasileiros.1019

Há ainda a versão, perfilhada por Mrs. Graham, verdade é
que testemunha muito parcial a Dom Pedro, de um mal-entendido, ou melhor ainda, da descarga haver
resultado de uma precipitação, natural senão justificável, em momentos de* fácil pânico. Os
que assim querem pensar, invocam em seu abono a imprudência que havia em irritar o povo da
capital quando tanto dependia da sua calma, esquecendo, porém, que a tropa portuguesa tinha a
persuasão e até se jactava de poder manter perfeita a tranqüilidade pública, contanto que a
deixassem agir com relativa decisão.

O acontecimento da Bolsa teve enorme repercussão, desproporcionada mesmo à sua importância, e não
só tornou impossível qualquer alteração em que ainda se pudesse pensar da combinação
dinástica assentada, como
cavou mais fundo o fosso de prevenções que moralmente separava as duas metades
da monarquia lusitana. Seu efeito imediato foi despir de todo brilho, de todo alarido, de
todo calor, de toda expressão de saudade a
partida do rei que a 24, à noitinha, embarcou na nau D. João VI e
a 26 de abril saiu do porto, acompanhado por
duas fragatas e nove transportes,
levando milhares de pessoas — quatro mil ao que se diz — pertencentes e não ao serviço real, e 50 milhões de
cruzados. A maré carregava o que a
maré trouxera. O Erário ficava de fato vazio do numerário, em troca do qual e
para pagamento de dívidas do governo se tinham dadc letras, que não eram aceitas, sobre as tesourarias
provinciais da Bahia, Pernambuco e
Maranhão, e se entregaram ao Banco os diamantes do monopólio e jóias da
coroa.1020

 

Dom João VI veio e realmente fundou na América um império, pois merece bem assim ser classificado
o ter dado fpros de nacionalidade a uma imensa colônia amorfa, para que o filho, porém, lhe
desfrutasse a obra. Ele
próprio regressava menos rei do que chegara, porquanto sua autoridade era
agora contrastada sem pejo. Deixava contudo o Brasil maior do que o encontrara.

As últimas disposições de Dom João VI com relação à Cisplatina foram tendentes à definitiva
incorporação ao país dessa província, fechando-se o ciclo de guerras a que dera origem a
fundação da Colônia e recentemente resultará, a última delas, da recusa de Elio, ditada por
fidelidade dinástica e nacional, em acompanhar os autonomistas de Buenos Aires.
A Banda Oriental,
que Elio anteriormente resguardara da ambição portuguesa, de que foi expressão a
missão Curado, encontrou, porém, no seu seio um caudilho para personificar sua própria autonomia
em frente à invasão brasileira e à
reivindicação portenha.

Poucas histórias há tão agitadas, nesta agitada América do Sul, como a
desses dois lustros de luta, e com um resultado tão inevitável, nas
circunstâncias de então, quanto a verificada conquista estrangeira. A pequena
província não podia escapar a cobiças tão poderosas como as que pelo norte e pelo sul a
espreitavam, e delas a mais fraca cedeu à mais forte. Buenos Aires, no próprio
interesse, segundo acreditava, favoreceu Artigas contra as autoridades legalistas, ajudando-o a
sitiar Montevidéu, e Alvear
logrou em 1814 impor a Elio uma capitulação depois que Brown, ao serviço argentino como
almirante, destruiu a esquadrilha do vice-rei espanhol. Foi neste período que a corte do Rio, a
pretexto de proteger o livre comércio costeiro entre os portos do sul e os do Prata,1021
serviu contra
Vigodet o governo das Províncias Unidas, não podendo este mais tarde, quando Artigas só em campo,
obstar a que fosse cobrado aquele serviço
a Montevidéu com o preço da independência uruguaia.

Buenos Aires calculara ainda que tal sacrifício, que Artigas quisera arrostar
desajudado, lhe aproveitaria e à causa do seu federalismo, mas a previsão provou errada e vimos que
foi o imperialismo português que, como era natural, lucrou com as operações
militares do ano de 1816, em que as três colunas de Curado, Manoel Marques de Souza e Lecor
penetraram por caminhos
diferentes no território disputado, e em que Abreu (Cerro Largo), Menna Barreto e Oliveira Álvares
desmancharam o plano de invasão do Rio Grande pelas forças irregulares do caudilho e seus
subordinados.

Culminou a rápida campanha de defesa da fronteira no combate de Catalão (4 de janeiro de 1817),
que vingou as armas brasileiras das vantagens obtidas por Artigas em 1814-1815, quando chegou a
tomar um par-

 

que
de artilharia. A devastação e a pilhagem ocuparam essas forças vencedoras ao tempo que Lecor
derrotava Fructuoso Rivera e, protestando querer apenas destruir a tirania,
avançada por Maldonado sobre Montevidéu, que sabemos com quanta facilidade ocupou, após
repelir no caminho as guerrilhas de
Lavalleja, e de Oribe.1022

Em 1820, a situação apresentava-se satisfatória para o
exército de ocupação,
a qual não veio por isso a sofrer com os sucessos constitucionais. As
tentativas de Artigas para interceptar as comunicações brasileiras entre Montevidéu e o Rio Grande
tinham falhado, sendo derrotados seus auxiliares e ele próprio levado de vencida até o Uruguai.
Aí a retaguarda, com
Entre-Rios, lhe ficou livre até conseguirem cortar-lhe tais comunicações as
forças portuguesas, constantemente reforçadas, e pelo combate de Taquarembó (22 de janeiro de
1820), lançar o inimigo para além do Uruguai.

Traído por Fructuoso Rivera e suplantado na sua
autoridade pelo caudilho de Entre-Rios, Ramirez, entregou-se Artigas a Francia
enquanto Curado,
descendo a margem esquerda do Uruguai, realizava afinal sua junção com Lecor, abraçando a tutela
portuguesa capital e campanha. Em Montevidéu entretanto, cuja guarnição se
desmoralizara pela inação, dando-se largas a devassidão dos chefes, bem como os desmandos inferiores,
surpreendera o comandante em chefe e atalhara uma conspiração destinada a eliminar pela
expulsão o domínio estrangeiro, que odiavam os bons espanhóis e contra o qual se levantariam mais
tarde os patriotas partidários da
independência local.

Durante sua curta passagem pelo poder quis Silvestre
Pinheiro Ferreira
cuidar da questão ainda em aberto da Cisplatina, não obstante ser para ele inçada de asperezas e
pejada de dúvidas, nem o seduzindo a ane-xação pura e simples pelo fato de lhe
parecerem muito diversas a natureza, estrutura e tradições da província vindoura, nem
considerando politicamente
razoável, apesar do seu desinteresse, que se perdesse o fruto de tantos trabalhos e despesas tão
avultadas. A expressão — os povos querem — que alguns avançavam para
justificar a incorporação, afigurava-se-lhe, malgrado o seu doutrinarismo, oca de sentido
real, falsa e absurda mesmo
por não existir jamais a concordância que a expressão faz supor, e ser a
orientação de um qualquer corpo social invariavelmente imposta por um ou muito poucos indivíduos.1023

A idéia que Silvestre tinha por melhor, era a de congregar o general comandante de Montevidéu e do
exército de ocupação os comícios eleitorais para formar uma assembléia provincial do Uruguai, a fim
dos deputados

 

franca e livremente
decidirem o que mais lhes convinha e aos seus constituintes: se a ereção da Banda
Oriental em estado independente, se a reunião a Buenos Aires, se a incorporação ao Brasil.
Opinava ao mesmo tempo o último ministro dos Negócios Estrangeiros de Dom João VI na América que se acreditasse um agente
como cônsul-encarregado de negócios nas Províncias Unidas, no intuito de manifestar as intenções
amigáveis do governo
português com relação aos países circunvizinhos da sua nova anexação — caso
tivesse esta lugar —, entrando-se com eles em proveitosas relações comerciais e
respeitando-se mutuamente as bandeiras.

O que a Silvestre se afigurava com razão impossível era
prolongar mais o status
quo,
representado por uma exibição militar dispendiosíssima, sem se decidir coisa alguma
definitiva, nem sendo mesmo possível fazê-lo ao ponto de reconhecer, no decorrer das negociações,
a soberania do rei católico
sobre o território avassalado pelas armas portuguesas. Nunca se houvera contudo aquela corte
declarado pronta a restituí-lo sem compensação, conforme o exigia o gabinete
de Madri, arguindo que a devolução seria apenas a conseqüência natural de tal
reconhecimento de soberania, e que portanto ao governo brasileiro cumpria declarar-se disposto a
retroceder o território invadido, em virtude da mera reclamação do seu legítimo soberano.

As últimas ordens de Dom João VI, antes de se retirar para Lisboa,
foram no sentido das formas preconizadas por Silvestre e na direção do seu próprio constante pensamento,
que neste assunto se concretizou numa ação perseverante e feliz. Convidados os habitantes
da Banda Oriental a
deliberarem sobre seu futuro, resolveram a 31 de julho de 1821 da maneira que
era dado prever nas condições em que se fazia a consulta, anexando sua terra ao Brasil, como Província Cisplatina.

Tanto
tivera de alegre a chegada, como teve de soturna a partida de Dom João VI. Com o monarca foram-se numa
última peregrinação oceânica dois dos mortos da família, a rainha D. Maria I e o infante de Espanha Dom Pedro Carlos,
transportados na antevéspera, à noite, dos seus túmulos no Convento da Ajuda e no Convento de Santo Antônio para bordo da fragata armada em capela ardente, num
duplo e aparatoso préstito fúnebre que foi o último cortejo do reino americano
e no qual figuravam o rei, a filha viúva e o netinho órfão.

Em 1808, por ocasião do desembarque, Dom João estava jubiloso e Dona Carlota Joaquina
desesperada. Agora dava-se o oposto, como era de regra nas suas relações conjugais: pensar e
agir um sempre em discordância do outro. O rei partia vergado à aflição. Não acreditava muito na
eficácia da sua
presença em Portugal para abrandar a revolução e restabelecer a autoridade do trono, a
ordem e a confiança abaladas. Pairavam sobre o seu espírito timorato e bom o receio dos
acontecimentos previstos e imprevistos nas duas partes do mundo, trazidos pela separação fatal
do Brasil e pela
degeneração do movimento constitucional em frenesi jacobino, e o receio da
vindita popular, exercendo-se cruamente não tanto sobre ele como sobre os seus protegidos e validos.

A rainha ia pelo contrário delirante: nesses momento
toda ela era amores
pela Constituição. Ao passo que o marido, à cautela, embarcava ao luscofusco lá
longe, em São Cristóvão, para ir tomar a dianteira da frota que de torna-viagem o
transportava, envergonhado e saudoso, a sofrer com resignação os desaforos das
cortes, D. Carlota saía em pleno dia do Paço da cidade para o escaler amarrado ao cais
fronteiro, despedindo-se com ruidosa alegria da sua comitiva e despejando nas últimas palavras que
pronunciava — afinal
vou para terra de gente!
— todo o seu aborrecimento à terra hospitaleira em
que vivera treze anos, podendo satisfazer todos os seus caprichos libertinos, mas
nenhuma das suas ambições políticas.

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